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Genética

Ataque no escuro

Resíduos da melanina formados horas após exposição ao sol podem danificar o DNA e provocar câncer de pele

062-foto eduardo cesar / ilustração sírio cançadoSob a ação da luz solar, o pigmento da pele, a melanina, pode se fragmentar e formar compostos químicos muito reativos que podem danificar a estrutura da molécula de DNA, mantida no núcleo das células, e provocar o desenvolvimento de câncer de pele, de acordo com um estudo publicado na revista Science de 20 de fevereiro, com a participação de pesquisadores brasileiros. Segundo esse trabalho, o ataque ao DNA pode persistir por mais de três horas após a exposição direta à luz do sol, indicando mais uma limitação da ação dos cremes protetores aplicados à pele para proteger contra os efeitos prejudiciais da radiação ultravioleta da luz solar.

“O protetor solar não vai prevenir totalmente os danos ao DNA, que continuam mesmo depois da exposição ao sol”, diz o químico Etelvino Bechara, professor sênior da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do estudo, pesquisador responsável por vários projetos temáticos financiados pela FAPESP sobre os impactos de radicais livres (ver entrevista). Este trabalho está ligado também ao Instituto Nacional de Ciência de Tecnologia (INCT) de Processos Redox em Biomedicina, coordenado por Ohara Augusto, do Instituto de Química da USP, com apoio da FAPESP e do governo federal.

Com base nesse trabalho, Bechara recomenda ainda mais cuidado com o bronzeamento artificial e alerta para a necessidade urgente de formulações, na forma de cremes, que possam impedir a formação dos compostos lesivos ao DNA mesmo depois da exposição ao sol. Uma possibilidade de reduzir esse tipo de dano, apresentada no estudo, é o uso de ácido sórbico, um aditivo de alimentos, embora sua eficácia, dosagem e forma de aplicação ainda não tenham sido estabelecidas. Outra possibilidade de minimizar as lesões solares, além de filtros de radiação ultravioleta, é utilizar a vitamina E, já empregada em alguns cosméticos.

Bechara recebeu no início de 2012 um e-mail de Douglas Brash, da Universidade Yale, perguntando se ele poderia colaborar na solução de alguns problemas relacionados a danos ao DNA de melanócitos, as células produtoras de melanina. Os danos estavam associados ao desenvolvimento de melanoma, uma forma agressiva de câncer. Como as dúvidas e o assunto estavam relacionados ao doutorado de Camila Mano, sob sua orientação, no Instituto de Química da USP, ele pediu para ela entrar no trabalho e, logo depois, para se preparar para ir a Yale. Camila, também coautora do artigo publicado na Science, foi no final de 2012 e ficou quase seis meses, até fevereiro de 2013. Sua primeira tarefa foi conhecer melhor o problema que não conseguiam resolver.

“Eles viam alterações no DNA que pareciam geradas pela radiação solar, mas ocorriam depois da radiação”, diz Camila. Depois de entender o problema, ela aprendeu a lidar com células de camundongos e começou a fazer os experimentos que poderiam dar uma resposta. Os primeiros testes não deram certo, mas depois ela concluiu que a própria melanina poderia estar gerando as alterações no DNA.

Controle de Qualidade
Normalmente, nas células produtoras de melanina, a radiação ultravioleta do sol forma os chamados dímeros (compostos químicos com duas unidades) de timina e citosina, dois componentes básicos do DNA. Os dímeros podem alterar o funcionamento do DNA no momento da multiplicação celular. Por sorte existe um controle de qualidade rigoroso, que desfaz parte dos dímeros. Já durante a replicação do DNA, algumas proteínas – as enzimas de reparo – verificam se a cópia saiu de acordo com o original, como um corretor ortográfico que substitui as letras trocadas tão logo as palavras terminam de ser escritas. Outras enzimas permanecem em alerta para soldar o DNA nos pontos em que se romper.

“O estudo é muito interessante e provocativo”, disse David Fisher, biólogo especializado em câncer de pele do Massachusetts General Hospital, em Boston, EUA, que não estava envolvido no trabalho, em um comentário à revista The Scientist. “Ele salienta ainda mais o que sabíamos: que a bioquímica da melanina é uma espada de dois gumes.” A melanina, o pigmento escuro da pele, pode impedir a formação dos dímeros. Pode também, como se mostrou nesse estudo, levar a um efeito oposto, induzindo a formação de dímeros de pirimidina (timina e citosina) por pelo menos três horas após a exposição direta à radiação ultravioleta do sol, desse modo reduzindo a eficácia dos mecanismos de reparo da molécula de DNA e facilitando a propagação de mutações genéticas prejudiciais.

Por meio de experimentos feitos em Yale e na USP, os pesquisadores verificaram que a radiação ultravioleta dispara a produção de uma série de enzimas, que vão gerar espécies reativas de oxigênio, como o superóxido e o óxido nítrico. Estes últimos se combinam e formam peroxinitrito, um composto reconhecidamente reativo, que degrada as moléculas com que interage no interior das células. A reação entre peroxinitrito e a melanina ou seus precursores gera compostos de alta energia, que é transferida para o DNA, formando os dímeros.

“A radiação ultravioleta apenas inicia essas reações, que podem prosseguir por horas, mesmo depois de apenas 10 minutos de exposição das células ao ultravioleta”, diz Camila. Ela observa que a formação de compostos reativos é mais intensa com o precursor da melanina chamado feomelanina, encontrado nas células de pessoas ruivas ou loiras, do que com o eumelanina, que forma a melanina das peles negras. Esse resultado explicaria por que as pessoas de pele clara são mais suscetíveis ao câncer de pele. Nesse experimento, os pesquisadores verificaram também que os dímeros de pirimidina formados na ausência de luz compõem cerca de 50% dos dímeros responsáveis por possíveis alterações no DNA.

Esse tipo de fenômeno é chamado de fotoquímica no escuro e, enfatiza Bechara, havia sido proposto na década de 1970 por Emil White, da Universidade Johns Hopkins, e por Giuseppe Cilento, do Instituto de Química da USP. “A fotoquímica no escuro amplia as reações lesivas ao DNA iniciadas pela radiação ultravioleta”, diz ele. Segundo o pesquisador, esse tipo de reação tem sido identificado em fenômenos biológicos, mediados por compostos químicos de alta energia, em raízes de plantas e órgãos internos de animais.

​A melanina também absorve luz visível e depois transfere parte de sua energia para ​moléculas de oxigênio, gerando formas altamente reativas, o chamado oxigênio singlete. O oxigênio excitado pode reagir com moléculas como o DNA e organelas (compartimentos) das células, danificando-as, conforme estudo recente de pesquisadores de São Paulo e do Paraná (ver Pesquisa FAPESP nº 227).

Projeto
Espécies excitadas tripletes em sistemas biológicos (n. 09/02062-8); Modalidade Bolsa no País – doutorado; Pesquisador responsável Etelvino José Henriques Bechara (USP e Unifesp); Bolsista Camila Marinho Mano (IQ-USP); Investimento R$ 156.227,65 (FAPESP).

Artigo científico
PREMI, S. et al. Chemiexcitation of melanin derivatives induces DNA photoproducts long after UV exposure. Science. v. 347, n. 6224, p. 842-47. 2015.

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