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Geofísica

Brilho oculto

Grupo brasileiro identifica rara emissão de luz na alta atmosfera sobre o Nordeste disparada ­por passagem da Lua diante do Sol

Lua cobre o Sol durante eclipse em 2017, em composição de imagens obtidas por câmera fotográfica acoplada a um telescópio

Michael S. Adler / Wikimedia Commons

Por volta de 21h de 21 de agosto de 2017, uma segunda-feira, uma câmera fotográfica ultrassensível instalada no sertão nordestino detectou uma variação de luminosidade incomum na alta atmosfera brasileira. Alojado em uma fazenda nos arredores de São João do Cariri, no interior da Paraíba, o equipamento registrou uma oscilação de brilho na frequência do infravermelho em uma região do céu a 87 quilômetros (km) acima do solo. A intensidade dessa luz invisível ao olho humano aumentou durante vários minutos antes de diminuir e voltar a aumentar em uma faixa estreita e arqueada do céu que se estendeu do Ceará a Pernambuco. Em um artigo publicado em agosto na revista Geophysical Research Letters, um grupo de pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos propôs uma explicação para a origem do fenômeno: ele teria sido gerado por perturbações em uma camada mais baixa da atmosfera disparadas por um eclipse total do Sol que ocorreu no hemisfério Norte e foi parcialmente visível no hemisfério Sul.

Geofísicos e especialistas em clima espacial entendem a atmosfera do planeta como sendo um fluido de múltiplas camadas, cada uma com densidade e composição diferentes, constantemente perturbadas pela propagação de ondas, semelhantes às que se formam ao se atirar uma pedra na água parada. Algumas dessas ondulações recebem o nome de ondas de gravidade, porque a atração gravitacional do planeta é o elemento que faz o fluido retornar ao equilíbrio depois de uma perturbação inicial. Na atmosfera, elas se caracterizam por oscilações que podem apresentar de dezenas a centenas de quilômetros entre um pico e outro e se deslocam a velocidades variando de dezenas a centenas de metros por segundo. Sua propagação, no entanto, só ocorre em meios materiais (formados por partículas), como a água ou o ar. Essas ondas não existem no espaço e são diferentes das ondas gravitacionais, oscilações no espaço-tempo provocadas pela colisão de corpos de massas muito elevadas, como estrelas ou buracos negros, que se propagam no vácuo à velocidade da luz.

Na Terra, ondas de gravidade atravessam a atmosfera com frequência e, na maior parte das vezes, são geradas pelo movimento de nuvens de tempestade ou ainda tsunamis e terremotos. As que causaram alterações na luminescência naquela noite de 2017, porém, tinham origem distinta. Foram produzidas pelo deslocamento na atmosfera da sombra provocada pela passagem da Lua diante do Sol, concluiu a equipe coordenada pelo físico Igo Paulino, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba. “Essa é a primeira vez que se observam no Brasil os efeitos na atmosfera de ondas de gravidade geradas por um eclipse”, afirma o pesquisador, que coordenou a campanha de observação.

Naquele dia, a Lua se colocou por algumas horas entre a Terra e o Sol e projetou um pequeno cone de sombra – a chamada umbra – que se deslocou de um extremo a outro dos Estados Unidos. Ele se iniciou às 12h46 do horário brasileiro sobre o oceano Pacífico, entrou em território norte-americano pelo estado de Oregon e percorreu um estreito corredor ao longo de outros 14 estados.

Analisando características como posição e duração da oscilação de brilho em infravermelho detectados a 87 km de altitude, Paulino e colaboradores no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) chegaram às propriedades das ondas de gravidade que os teriam ocasionado. Eram perturbações que se repetiam a cada duas horas e meia e se deslocavam à velocidade de 634 quilômetros por hora (km/h), com um dos maiores comprimentos de onda já mensurados para esse tipo de fenômeno: 1.618 km entre um pico e outro. Com base nessas informações e no sentido de propagação, o físico da UFCG traçou o caminho reverso dessas perturbações e verificou que sua fonte coincidia com a última posição ocupada pela umbra do eclipse no Atlântico, a pouco mais de 2,2 mil km de São João do Cariri e a 34 km acima da superfície do oceano.

É nessa região da atmosfera que ocorre a maior concentração de ozônio (O3), gás que absorve parte da radiação ultravioleta do Sol. Ao bloquear momentaneamente a incidência de luz, a umbra do eclipse reduz em cerca de 1 grau Celsius a temperatura em uma pequena área da camada de ozônio. Ainda que modesto e momentâneo, esse resfriamento rápido do ozônio altera a distribuição das moléculas do gás, que se tornam mais próximas antes de voltarem a se afastar com o retorno da luminosidade. Esse movimento de contração e expansão do gás gera uma perturbação que pode dar origem às ondas de gravidade, que se propagam para outras camadas da atmosfera. As ondas produzidas ao fim do eclipse de 2017, ao chegarem a 87 km de altura, modificaram a densidade e a temperatura naquela região, alterando a emissão de radiação infravermelha pelas moléculas de hidroxila (OH) – eis a origem da oscilação de brilho detectada pelo equipamento na Paraíba.

“As ondas de gravidade são um mecanismo importante de transferência de energia das camadas mais baixas da atmosfera para as mais elevadas”, explica o físico japonês Hisao Takahashi, do Inpe, um dos autores do estudo, que contou com a colaboração de pesquisadores das universidades do Texas e de Illinois, nos Estados Unidos. “Elas alteram o sistema de ventos na alta atmosfera”, conclui.

“Poucos trabalhos permitiram caracterizar tão bem as propriedades das ondas de gravidade como esse”, comenta o físico Cosme Figueiredo, coautor do trabalho e pesquisador em estágio de pós-doutorado no Inpe. Conhecer melhor os mecanismos que geram as ondas de gravidade e as propriedades delas deve levar ao aprimoramento dos modelos de previsão de como a atmosfera se comporta a diferentes altitudes, algo importante até para voos espaciais.

Projeto
Distúrbios ionosféricos propagantes observados sobre a cordilheira dos Andes utilizando mapas/keogramas de conteúdo eletrônico total perturbado (nº 18/09066-8); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Cristiano Max Wrasse (Inpe); Beneficiário Cosme Alexandre Oliveira Barros Figueiredo; Investimento R$ 651.187,54

Artigo científico
PAULINO, I. et al. Atmospheric gravity waves observed in the nightglow following the 21 August 2017 total solar eclipse. Geophysical Research Letters. 19 ago. 2020.

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