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Memória

Chagas

Há 100 anos o médico brasileiro descobria o ciclo completo da doença que leva seu nome

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ-CASA DE OSWALDO CRUZ-DAD, IMAGEM FOC (F)7-3Chagas observa a menina Rita em Lassance, um dos primeiros casos identificados da doença. Ao fundo vê-se o vagão que servia de alojamento e laboratórioFUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ-CASA DE OSWALDO CRUZ-DAD, IMAGEM FOC (F)7-3

O médico Carlos Ribeiro Justiniano Chagas chegou a Lassance em junho de 1907 com a missão de debelar um surto de malária que havia interrompido os trabalhos de prolongamento da ferrovia Central do Brasil no norte de Minas Gerais. A região era das mais pobres, com a maioria da população morando em casas de pau a pique. Nos períodos em que passava no local, Chagas usava como acomodação um vagão estacionado num desvio da estação de trem que servia também como consultório e laboratório. Interessado não só na profilaxia, mas também nos insetos e parasitas causadores de doenças, o médico coletava espécies de animais e investigava pacientes que, aparentemente, exibiam sintomas que não tinham a ver com a malária.

Como resultado de suas pesquisas, em 14 de abril de 1909 ele publicou uma nota no periódico Brazil Medico comunicando a descoberta de uma nova doença, do parasita que a provoca e do inseto que o transmitia. O achado é considerado, desde então, um feito único na história da medicina por ter descrito o ciclo completo da moléstia – a doença de Chagas – e sido realizado por uma única pessoa.

Carlos Chagas, mineiro de Oliveira, sempre se interessou pela malária. Orientada por Oswaldo Cruz no então Instituto Soroterápico de Manguinhos (atual Instituto Oswaldo Cruz), no Rio, sua tese de doutorado foi sobre essa doença. Em 1905 houve uma epidemia em Itatinga, no interior de São Paulo, e Cruz, que também chefiava a Diretoria Geral de Saúde Pública, recrutou Chagas para combater a moléstia. “Foi a primeira campanha antimalárica realizada no Brasil com base nos conhecimentos sobre o papel dos mosquitos como transmissores”, conta Simone Petraglia Kropf, professora e pesquisadora em história das ciências e da saúde da Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz.

Em fevereiro de 1907 o jovem médico foi novamente convocado para debelar um surto na Baixada Fluminense junto com o entomologista Arthur Neiva. E em junho partiu para o norte de Minas com o mesmo objetivo, desta vez com Belisário Penna, médico da Diretoria Geral de Saúde Pública. Os dois estabeleceram base em Lassance e começaram a trabalhar. Entusiasta do estudo das doenças tropicais, Chagas aproveitava o pouco tempo livre para analisar o sangue de espécies animais locais. Em um desses exames identificou em um sagui um novo protozoário do gênero Trypanosoma, que chamou de Trypanosoma minasense. A espécie não era patogênica.

Foi o chefe dos engenheiros da ferrovia, Cantarino Motta, quem apresentou aos pesquisadores um percevejo hematófago comum na região. Como as noites naquela área são frias, a única parte do corpo não coberta é o rosto, picado pelo inseto. Daí o apelido de barbeiro, que se esconde nas frestas das paredes das casas de pau a pique durante o dia e à noite sai para se alimentar. Chagas conhecia a importância dos insetos hematófagos como transmissores de doenças parasitárias e começou a dissecar barbeiros. Encontrou neles um protozoário que poderia tanto ser um parasita natural do inseto quanto a fase evolutiva de um tripanossomo capaz de causar doenças.

Sem um bom laboratório em Lassance para tirar a dúvida, ele despachou alguns insetos para experimentos em Manguinhos. Oswaldo Cruz fez a infecção experimental com animais de laboratório e avisou a Chagas que achara formas do tripanossomo em um dos animais que adoecera. Chagas voltou ao instituto e confirmou suas suspeitas: o protozoário era novo, com uma morfologia diferente da do T. minasense. Em homenagem a Cruz, o parasita foi chamado de Trypanosoma cruzi.

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ-CASA DE OSWALDO CRUZ-DAD, IMAGEM FOC (VPCC-F) 4-11A última foto de Oswaldo Cruz (sentado, no centro), ladeado por Adolfo Lutz (à esq.) e Chagas (à dir.), em 1916FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ-CASA DE OSWALDO CRUZ-DAD, IMAGEM FOC (VPCC-F) 4-11

Faltava achar os doentes. Chagas voltou a Lassance e descobriu o tripanossomo no sangue de uma menina de 2 anos, chamada Berenice, que estava doente, com febre. Com ela, o médico montou o primeiro quadro clínico da doença: anemia aguda, edemas generalizados, aumento dos gânglios, entre outros. Foi esse o trabalho que gerou a nota publicada no Brazil Medico em abril e, em seguida, no Archiv für Schiff und Tropenhygiene, da Alemanha, e no Bulletin de la Société de Pathologie Exotique, da França.

A descoberta da tripanossomíase americana, como Chagas a chamou, teve um impacto extraordinário na vida científica, institucional e política do médico. Já em 1910 ele foi admitido como membro titular na Academia Nacional de Medicina (ANM) e ganhou o concurso, por mérito, para “chefe de serviço” de Manguinhos. Em 1912 foi agraciado com o prêmio Schaudinn, do Instituto de Medicina Tropical de Hamburgo, Alemanha. A cada quatro anos o Schaudinn era dado à mais importante contribuição em protozoologia.

Quando Oswaldo Cruz morreu, em 1917, aos 54 anos, Chagas foi nomeado diretor de Manguinhos três dias depois, cargo que ocuparia até sua morte, em novembro de 1934, aos 56 anos. Em 1918, com a gripe espanhola grassando no Brasil, ele organizou um serviço especial de criação de hospitais de emergência e apelou aos médicos e estudantes de medicina para que trabalhassem no socorro à população do Rio. Sua atuação foi um dos fatores que o levaram à direção do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), em 1920.

“Chagas já vinha falando sobre as más condições sanitárias do interior do Brasil desde 1909, quando começou a estudar a doença, e continuaria a chamar a atenção para esse tema por toda a sua vida”, diz Simone Kropf, que lançou recentemente Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação (1909-1962), da Editora Fiocruz. O cientista ficou no cargo até 1926 e são de sua administração o extenso código sanitário, que modernizou a legislação sanitária brasileira, e as ações de combate às endemias rurais. “Também foram importantes a instalação da primeira escola profissional de enfermagem do país e o investimento na formação de médicos especializados em saúde pública, que depois do curso tinham emprego garantido na área.” Como integrante do Comitê de Saúde da Liga das Nações, a partir de 1922 sugeriu a criação do Centro Internacional de Leprologia, inaugurado em 1934, que funcionou no Instituto Oswaldo Cruz até 1939. Em 1925 tornou-se catedrático de medicina tropical da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, por notório saber.

Se a produção científica e de gestão da saúde pública de Chagas eram aplaudidas por um lado, por outro não faltaram críticas. Em 1919, o pesquisador Henrique Aragão sugeriu que a doença de Chagas não era tão grave e difundida e que eram poucos os infectados realmente comprovados, ao contrário do que dizia seu descobridor. Em 1922, Afrânio Peixoto, escritor e catedrático de higiene, disse em plenário da ANM que ninguém conhecia esses doentes e chamou a moléstia de “doença de Lassance”. Ofendido, Chagas pediu à academia a formação de uma comissão para avaliar seus estudos. Em 1923 o parecer final foi favorável ao cientista de Manguinhos.

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ-CASA DE OSWALDO CRUZ-DAD-IOC(AC-E) 6-33.1-1À beira do rio negro: expedição à Amazônia, em 1913 (o cientista está de gravata)FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ-CASA DE OSWALDO CRUZ-DAD-IOC(AC-E) 6-33.1-1

Questões como essas poderiam ter causado menos dissabores a Chagas se ele houvesse ganhado o Prêmio Nobel de Medicina. Em 1999, Marília Coutinho, então na Universidade da Flórida, Olival Freire Jr., da Universidade Federal da Bahia, e João Carlos Pinto Dias, do Centro de Pesquisas René Rachou, de Minas Gerais, publicaram artigo contando a história das indicações, desconhecidas no Brasil. A primeira indicação formal foi solicitada pela comissão do Nobel, em 1911, a Pirajá da Silva, cientista com trânsito na Europa, e era válida para a premiação de 1913. O escolhido, no entanto, foi o francês Charles Richet. A segunda indicação oficial ocorreu em 1920 para nomeação de 1921 e foi realizada por Manoel Augusto Hilário de Gouvêa, da ANM. Embora tenha sido o único cientista da área indicado, também daquela vez Chagas foi ignorado, o que deixou vago o Nobel de Medicina daquele ano. Houve ainda duas indicações informais, mas não há detalhes delas.

Não se sabe até hoje por que o brasileiro foi preterido. “Chagas teve sucesso e reconhecimento muito cedo, ocupou cargos públicos que eram cobiçados por outras pessoas e atraiu muita indisposição”, diz João Carlos Pinto Dias. Existe a hipótese, não comprovada, de que a comissão do Nobel teria consultado adversários do cientista e sido desaconselhada a laureá-lo. Para o bioquímico Walter Colli, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, estudioso da doença de Chagas, não há dúvida quanto ao merecimento. “Tenho a convicção de que ele não ganhou porque o Brasil está na periferia. Teria sido diferente se o mesmo trabalho tivesse sido feito nos Estados Unidos ou na Europa”, acredita.

“Quando apresentei o nosso artigo em Manguinhos em 1999, o mais interessante foi a surpresa e a emoção de Carlos Chagas Filho, então aos 89 anos, e de outros pesquisadores muito idosos que não sabiam nada sobre as indicações”, diz Marília Coutinho. Quando terminou de falar, ela conta ter tido a sensação contrária à da perda do prêmio. “Parecia que Carlos Chagas havia ganhado o Nobel, tal a alegria daqueles senhores.”

Artigos científicos
Todos os trabalhos de Carlos Chagas estão disponíveis no site http://carloschagas.ibict.br/

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