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genoma humano

Genética e Genômica: 135 anos de investigação científica

O que o futuro nos reserva são amplos horizontes e não becos sem saída

00Tudo começou na parte final do século 19, com um padre austríaco que tinha grande interesse pela história natural, e as ervilhas, que ele cultivava no jardim de seu mosteiro. Daí surgiram as chamadas “leis de Mendel”, que forneceram as bases para todo o edifício da Genética e da Biologia Molecular. Infelizmente, esses princípios permaneceram ignorados até 1900, quando então seu significado foi finalmente compreendido. Ao longo dos 35 anos seguintes estabeleceu-se, então, um sólido corpo de doutrina que lançava luz sobre os enigmas da herança biológica.

Independentemente do que ocorria nos laboratórios de genética, um médico londrino, Frederick Griffith, observou em 1927 um fenômeno curioso, a transformação de pneumococos que possuíam uma determinada cápsula de proteção contra o sistema imunológico de seu hospedeiro (neste caso camundongos) em outra. Novamente, a importância da descoberta passou despercebida (inclusive ao próprio Griffith), e foi apenas 17 anos depois que Oswald T. Avery e colaboradores verificaram, nos Estados Unidos, que o “princípio transformante” era uma substância denominada ácido desoxirribonucléico, cuja sigla, DNA, está agora na boca de todo o mundo.

Não se pense, no entanto, que a aceitação de que o DNA seria o material genético foi pacífica. Houve muita discussão (a alternativa é que ele seria a proteína). Um dos experimentos considerados importantes para a aceitação foi desenvolvido, em 1952, pelos norte-americanos Alfred Hershey e Martha Chase, que utilizaram, para isso, um instrumento tão simples quanto um liquidificador!

E então, no ano seguinte, foi publicado o trabalho seminal de James D. Watson e Francis M. Crick sobre a estrutura helicoidal dupla do DNA, seguida, em 1961, pela elucidação do código genético. O resto é história recente. Mais detalhes são apresentados na tabela.

Cabe, agora, uma breve reflexão sobre o progresso da ciência. Thomas S. Kuhn, em 1962, estabeleceu convincentemente que o desenvolvimento científico se faz por meio de revoluções, que causam a destruição de paradigmas anteriores, seguida de períodos de “ciência normal”. O não-reconhecimento imediato de descobertas fundamentais como as de G. Mendel e F. Griffith é explicado por uma frase do físico Max Planck, Prêmio Nobel em 1918: “Uma nova verdade científica não triunfa pelo convencimento de seus oponentes, e porque eles viram a luz, mas, ao invés disso, porque esses oponentes eventualmente morrem e surge uma nova geração que se desenvolve familiarizada com ela”.

Na primeira metade do século 20, a nossa espécie era considerada como de pouco valor para a compreensão dos mecanismos da herança biológica. Geração longa, tamanho reduzido da prole e impossibilidade de cruzamentos dirigidos eram indicadoscomo obstáculos a trabalhos de ponta. Foi somente devido ao desenvolvimento espetacular dos métodos celulares e moleculares que a elite intelectual voltou-se para si própria, e o estudo do Homo sapiens ganhou novo ímpeto.

No meu caso específico, obtive meu doutoramento em 1955, na Universidade de São Paulo, trabalhando com a mosca-das-frutas, Drosophila; e foi graças a conversas mantidas com Antonio R. Cordeiro que decidi me voltar para a genética humana. Desloquei-me, em 1956, para um pós-doutoramento no Departamento de Genética Humana da Faculdade de Medicina da Universidade de Michigan, localizado em Ann Arbor, Estados Unidos, onde já estagiava outro colega brasileiro, Newton Freire-Maia.

E para se ter uma idéia do progresso notável alcançado pelo conhecimento genético de nossa espécie, menciono que o Newton, após regressar do 1º Congresso Internacional de Genética Humana, realizado em Copenhague, Dinamarca, naquele ano, comentou “Imagina que Fisher (Sir Ronald A. Fisher, uma das principais figuras na formulação de conceitos básicos de genética e evolução) iniciou sua conferência dizendo – o homem, com seus 46 cromossomos… – não pode, não está ainda provado!” E eu, em 1957, quando realizei uma série de visitas a centros de genética humana nos Estados Unidos e Canadá, fiz questão de, em Baltimore, contar pessoalmente sob o microscópio o número cromossômico de um indivíduo de nossa espécie.

Foi publicado recentemente nos Estados Unidos um livro de um divulgador de ciência inglês, Matt Ridley, no qual cada capítulo corresponde a um cromossomo (complexo DNA-proteína responsável pela transmissão, na divisão celular, dos genes). Em cada capítulo (com exceção do último) foi escolhido um gene para a discussão de assuntos tão complexos quanto vida, espécie, destino, inteligência, instinto, saúde-doença, sexo, imortalidade e política. Ao longo de todo o livro, a questão dialética básica da determinação biológica versus história de vida está presente. Somos um produto de nossos genes ou do ambiente em que vivemos? A resposta, em termos quantitativos, será diferente dependendo da característica a ser considerada. O que deve ser salientado, no entanto, é a importância da interação entre esses dois conjuntos de fatores.

Em 1989 o Gustavus Adolphus College de Minnesota, Estados Unidos, organizou um simpósio com um título provocador “O fim da ciência?”. E o tema foi retomado por John Horgan (conferir O Fim da Ciência. Uma Discussão Sobre os Limites do Conhecimento Científico, Companhia das Letras, São Paulo, 1998). Após a finalização do Projeto do Genoma Humano, resta ainda algo realmente importante para investigar? Na verdade, estamos apenas no início da era da genômica, na qual a totalidade do material genético de diferentes espécies será identificado e comparado. Para o alívio de geneticistas e biólogos moleculares, o que o futuro nos reserva são amplos horizontes, e não becos sem saída.

Francisco M. Salzano é professor do Departamento de Genética do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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