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OPINIÃO

Serpentes e indústria farmacêutica

Como mostra o Butantan, venenos podem originar medicamentos

Como entender por que as serpentes, uma das espécies animais mais temidas pelo homem desde a pré-história, exercem em nós tão irresistível atração. Essa atração é uma das principais razões que têm feito do Butantan uma instituição conhecida mundialmente. A fascinação pela serpente é milenar. Para os sumérios, há 4.000 anos, a imortalidade ou a cura das doenças era uma atribuição do deus Ningishzida, representado pelas cobras gêmeas. Essas são até hoje o emblema da medicina. Os romanos herdaram dos etruscos o culto às serpentes antes de cederem à influência da medicina grega. Já entre os hebreus, simbolizavam maldição. No Butantan, elas são tratadas com respeito e admiração, pois seu veneno tem ajudado o homem a entender e a curar doenças.

Como o poder mortal do veneno das serpentes pode ser convertido em remédio. Na Antigüidade, muitos curandeiros, feiticeiros, médicos e cientistas buscavam nos venenos o remédio para as doenças por acreditar que “o mal com o mal se cura” (equivalente ao aforisma médico “similia similibus curantur”). Foi buscando no veneno da serpente o remédio para a cura dos males por ele causado que o médico Vital Brazil, fundador do Instituto Butantan, fez companhia a dezenas de personagens famosos da história da medicina. Sua admiração por esses animais ajudou a desenvolver no país o soro antiofídico e ainda despertou em nossos cientistas o interesse pelas suas toxinas. Os venenos são também uma fonte de cobiça pelo potencial de gerar riquezas que têm, por servirem de modelo para novos remédios e pesticidas.

É notório que nós, brasileiros, não sabemos valorizar nossas riquezas naturais. Exemplos existem também no uso farmacêutico dos venenos. Poucos sabem que foi a partir das pesquisas feitas em laboratórios brasileiros, com o veneno da jararaca, que a indústria farmacêutica multinacional desenvolveu o captopril, o remédio mais usado para tratar a hipertensão arterial. As pesquisas que levaram ao desenvolvimento desse remédio por multinacionais farmacêuticas geram um faturamento de cerca de US$ 10 bilhões por ano. Essa quantia é de três a quatro vezes superior à que nosso presidente quer investir no combate à pobreza no Brasil, ou cem vezes superior àquela que gastamos na fabricação de vacinas para todo o país.

Que obstáculos nos impedem de utilizar nosso imenso potencial de recursos naturais e humanos na geração de produtos e evitar que fatos semelhantes se repitam? Citamos aquele que é uma das mais visíveis características do subdesenvolvimento, traduzida pelo fosso que separa o laboratório de pesquisa (mantido com recursos públicos) da iniciativa privada. Na área farmacêutica temos, numa ponta, recursos humanos qualificados provenientes do meio científico e, na outra, uma indústria farmacêutica brasileira desenvolvida em muitos aspectos, mas com pouquíssima capacidade de aproveitamento das pesquisas biomédicas.

Passos importantes para a necessária aproximação entre a bancada dos laboratórios e a iniciativa privada têm sido dados pela FAPESP, criando iniciativas que ajudam a contornar a dificuldade do governo para enfrentar as engrenagens emperradas de muitas instituições públicas. Mas é fundamental que tais instituições se associem à iniciativa privada para ganhar competitividade e eficiência, desonerando o Estado e beneficiando a sociedade.

Artigo publicado originalmente na íntegra na Folha de São Paulo de 24/08/2000

Antonio Carlos M. de Camargo, médico, é professor da USP e diretor do Centro de Toxinologia Aplicada do Instituto Butantan.

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