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Projeto Resgate

Um olhar renovado para a história do Brasil

Pesquisadores apresentam seus achados no Anfiteatro de História da USP

Um capitão-mor maldizendo seus domínios, a lenda que ganha status de realidade, o mistério da riqueza mineira depois do fim do ouro, os desconhecidos escravos vaqueiros, o Estado fantasma na dominação holandesa, a denúncia anônima contra um governante corrupto… São fatos que pesquisadores do Projeto Resgate relataram no seu encontro: nos dias 25, 26 e 27 de setembro, o Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) abrigou uns 90 estudiosos – 30 portugueses, 60 brasileiros – no congresso A História que Nasce do Projeto Resgate (ver Suplemento Especial, Pesquisa FAPESP nº 57) e no colóquio Agenda para a História do Milênio.

O objetivo foi consolidar o projeto, que recupera, em microfilmes e CDs, toda a documentação sobre o Brasil colônia existente em outros países, em especial no Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal – onde estão 80% dos documentos sobre o assunto, o que terá impacto já a curto prazo nas pesquisas. Nas primeiras sessões, discutiram-se aspectos gerais, como as novas tecnologias, que aceleram o acesso às fontes e a troca de informações. Depois, houve sessões por blocos temáticos: Amazônia, Nordeste, Capitania da Bahia, Centro-Oeste, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Partes Meridionais. O colóquio Agenda do Milênio encerrou o encontro.

A voz do súdito
Paulo Knauss, da Universidade Federal Fluminense, que trabalhou na documentação do Rio de Janeiro, enfocou o pensamento de Capistrano de Abreu e Oliveira Viana, para dizer que eles fizeram “uma leitura angustiada acerca de nosso destino coletivo”. Para eles, “aqui não havia sociedade, porque não havia vida social”. Depois, Gilberto Freyre inverteria essa visão: se para Capistrano e Viana o passado colonial responderia por nossas mazelas, para Freyre, ao contrário, “traduziria nossas virtudes, na aproximação da casa-grande à senzala pelo universo da intimidade da vida social”. Em reforço a essa revisão, diz Knauss, o projeto revelou um tipo de documento extraordinário, que dá voz ao súdito da colônia: “Ali o súdito se manifesta, ele reclama ao rei. Não é um súdito qualquer, porque não é o súdito metropolitano, é o súdito do universo colonial”.

Caio César Boschi, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais, tem uma abordagem semelhante. Para ele, a documentação relativa à Capitania de Minas deixa clara uma necessidade de revisão, especialmente das teses de Oliveira Viana e Raimundo Faoro, que viam a presença do Estado se antepondo à sociedade. “O Estado”, diz Boschi, “só se vai fazer presente na região das Minas quando ela já está mais do que em ebulição, apresentando movimentos no seu corpo social que não podem prescindir da presença do Estado.” Enquanto os primeiros achados de ouro datam de 1693, é só em 1710 que o Estado português se faz presente, para pacificar a Guerra dos Emboabas e criar as primeiras vilas.

Minas sem ouro
Boschi expôs ainda um dado intrigante sobre Minas. Ao longo do século 18 e na virada para o 19, o número de escravos em Minas equivalia a 20% do total da América portuguesa. Essa virada de século, contudo, é o período apontado como o da decadência da região, já que os primeiros 30 a 40 anos do século 18 foram o auge da exploração aurífera. Boschi questiona: como pode ser decadente uma região que mantém esse contingente de escravos? Isso indica que havia outras atividades produtivas a sustentar essa economia.

“Imaginar Minas calcada exclusivamente na exploração aurífera é uma inverdade histórica”, sustenta. E sugere que se substitua a palavra decadência por declínio, já que a exploração do ouro era aluvional e assim apresentava necessariamente uma curva descendente. Daí as famosas derramas, com que a coroa exigia o complemento do pagamento de impostos mesmo com a produção declinante, até que se atingissem as costumeiras 100 arrobas anuais.

Boschi vai além, no que chama de “Civilização Mineira”: se Aleijadinho, os poetas árcades, a música, a pintura de Manuel da Costa Athaíde floresceram na virada do século 18 para o 19 e início deste, quando a extração de ouro entrara em declínio inexorável, “como explicar esse intervalo de tempo se não por uma consistente atividade produtiva que não a exploração mineradora?” É tarefa que o Projeto Resgate entrega aos historiadores mineiros.

Direto ao rei
Maria do Socorro Ferraz Barbosa, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), destacou uma novidade que o projeto trouxe para a história da ocupação holandesa em Pernambuco no século 17. A documentação confirma que, mesmo no período de domínio holandês, a correspondência jurídica e institucional com Portugal não só continuou como foi permanente, como se houvesse um Estado por baixo do outro – “o que significa que o Estado Português nunca se afastou, sempre esteve presente de forma sub-reptícia”.Ainda sobre Pernambuco, Virgínia Maria Almoedo de Assis, também da UFPE, localizou uma carta anônima dirigida ao rei, assinada “Pernambuco Afligido”, que denuncia desmandos da autoridade local. É um bom exemplo da voz do súdito, usado por Virgínia em sua tese de doutorado sobre as relações com a Metrópole entre 1650 e 1720. Datada de 28 de julho de 1653, diz a carta:

“Sr., Queixa-se Pernambuco à Vossa Real Majestade do governo que hoje o está governando para que Vossa Real Majestade com a pressa possível remedeie as grandes faltas e misérias destas capitanias que padecem e mais padecem. (…) por mui diferentes modos se furta muito com capa de virtude (…) não guarda respeito nem jurisdição a ninguém (…) o escrivão da fazenda e matrícula é criado particular de portas adentro e consigo tem os livros para melhor fazer seu negócio (…) os míseros moradores, todos pagam e repagam por todas as vias que seja, suas fintas [uma espécie de taxação] e donativos (…) seis moças donzelas tem deflorado, não se nomeiam os pais por não escandalizar honras, e muitas casadas: tudo conclui a força, acuda Deus”

A carta mostra que, em que pese a natureza político-administrativa dos documentos levantados, pode-se captar neles não só aspectos da administração colonial, mas da vida cotidiana. A vertente que lida com a chamada história das mentalidades e do cotidiano terá ali um rico manancial. Também Mozart Vergetti de Menezes, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), mostrou-se impressionado com as manifestações dos súditos nos requerimentos, documentos em que se solicita algo à autoridade: “Na leitura deles você vê que tanto pessoas ligadas à elite como pessoas comuns faziam solicitações e mercês diretamente ao rei. Parecia que pela primeira vez eu via as pessoas comuns se expressando. E com problemas diversos, que iam desde o trato cotidiano, de questões mais prosaicas, até as de fundo administrativo”.

Vaqueiros escravos
A equipe nordestina pinçou grandes novidades no Arquivo Ultramarino. Clássicos da historiografia econômica, como Caio Prado Júnior e Celso Furtado, sustentaram que as zonas de pecuária, tanto no Nordeste como no Sul, praticamente desconheceram o escravismo. O argumento parecia razoável: por ser atividade extensiva e que não requer grande contingente de mão-de-obra – ao contrário do engenho de cana ou da mineração -, optava-se pela mão-de-obra livre que, em geral, era paga com gado.

Até hoje é isso que se diz nas escolas e consta da maioria dos livros aprovados pelo MEC. Entretanto, a julgar pela documentação inventariada no Arquivo pela equipe do Nordeste, esses argumentos terão de ser revistos. Segundo Lourival Santana Santos, da Universidade Federal de Sergipe, a documentação sobre o Piauí não só mostra a criação de gado como principal atividade econômica, mas revela que mais da metade da mão-de-obra empregada nessa atividade era composta por escravos!

“Anexos e combativos”: assim Fátima Martins Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, referiu-se aos súditos de sua terra, que foi anexada à capitania de Pernambuco. Segundo ela, a história potiguar vinha sendo feita em cima de documentos que o poeta Gonçalves Dias preparou em meados do século 19, quando foi a Portugal a pedido do imperador para “copiar documentos interessantes”. Neles, convenientemente, os conflitos da colônia não apareciam e, além da duvidosa seleção, havia muitas lacunas.

O levantamento do Projeto Resgate, ao contrário, revela muitos conflitos entre os capitães-mores do Rio Grande do Norte e os governadores gerais de Pernambuco, principalmente quanto à doação de sesmarias. Dessa papelada do poeta, diz Fátima, “muitas vezes só tínhamos o documento ascendente” – a consulta, que partia da colônia para Portugal -, “mas não o descendente, que é a ação administrativa correspondente para resolver os problemas”. O Projeto Resgate trouxe o complemento.

Fátima revelou ainda a estranha história da Mina da Serra do Cabelo Não Tem, há muito contada por uma família potiguar, de geração em geração. Na dita serra haveria uma mina de ouro, que os índios locais teriam tomado num ataque ao colonizador. Era considerada só uma lenda. Pois bem: a documentação mostrou que a mina existiu de fato e a família, que pôde confirmar sua velha história, foi redimida da fama de mentirosa.

Vazio paraibano
Quanto à Paraíba, capitania também anexada à de Pernambuco, diz a coordenadora Rosa Maria Godoy (da UFPB): “A importância do pau-brasil paraibano – que é ressaltada por todos os cronistas de época, uma vez que dava mais tinta que o de outras capitanias – está agora confirmada”, bem como a forte resistência indígena regional, uma das maiores de que se tem notícia na colônia. Rosa ressaltou a importância que a Paraíba teve na expansão portuguesa, servindo de retaguarda para assegurar a cultura da cana-de-açúcar em Pernambuco.

A presença holandesa em Pernambuco produziu um nó na história da Paraíba que resultou, segundo Rosa, “num vazio historiográfico, uma vez que, após a expulsão dos holandeses, a Paraíba entra numa crise sem precedentes e acaba sendo anexada à Capitania de Pernambuco durante 44 anos”. Esse vazio, que a documentação vem sanar, também está ligado “ao tardio aparecimento, em 1905, do Instituto Histórico e Geográfico, que estava mais preocupado em legitimar o jovem regime republicano, descuidando muito da documentação colonial”.

“Escabrosa capitania”
A documentação relativa ao Ceará, segundo Gisafran Nazareno Mota Jucá, da Universidade Federal do Ceará, revela uma série de conflitos nas relações entre as autoridades coloniais e o clero. Referências à seca também já apareciam, bem como ao comércio do couro e do charque. Gisafran estranha a escolha de Fortaleza como capital, uma vez que a geografia – e a documentação aponta isso – não oferecia boas condições para a instalação de um porto. Aliás, o descaso para com a Capitania do Ceará se revela no modo como os administradores a ela se referiam. Diz o capitão-mor João Batista de Azevedo Coutinho, que a governou de 1762 a 1789, num documento que Gisafran recolheu: “Desde que cheguei a esta desgraçada e escabrosa capitania e tomei posse de seu infeliz governo…” Noutro documento, o mesmo capitão-mor refere-se “à indolência dos habitantes do Ceará, cujo pão vinha de Pernambuco por preguiça de cultivar a mandioca” (eles se dedicavam basicamente à pecuária).

Bahia comunicativa
Onildo Reis David, da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA), e Avanete Pereira de Souza, doutoranda da USP, desmentiram a tese de que as capitanias não se comunicavam entre si: a Bahia mantinha “uma relação muito estreita” com Pernambuco, Paraíba e Piauí. Ambos acham que a documentação estimulará pesquisas sobre mineração, cobranças fiscais, problemas de abastecimento, migrações e doenças. E assuntos já relativamente estudados, como extração e contrato de pau-brasil, construção naval, atividades comerciais e independência da Bahia terão, para Avanete, “a chance de ser reinterpretados e acrescidos”. A historiografia baiana produziu uma série de trabalhos sobre a escravidão, por exemplo, mas quase toda ela se reporta ao século 19. O Projeto Resgate permitirá, ainda que de forma panorâmica, trabalhar o tema da escravidão no século 18.

Falso extermínio
Juciene Ricarte Apolinário, da Universidade do Tocantins (que até há poucos anos pertencia a Goiás), ressaltou que “mesmo em documentos considerados de cunho jurídico-administrativo ou oficial, nas entrelinhas percebem-se exatamente as intrincadas relações sociais que ocorriam no mundo da Capitania de Goiás”. Temas sobre o relacionamento entre colonos, missionários, militares, comerciantes, índios e não-índios poderão ser apreciados.

No terreno da etno-história, muita coisa deve mudar. Juciene lembra que alguns autores aceitaram de pronto o extermínio de certos grupos indígenas locais. Ela assegura, contudo, que a documentação mostra a resistência de alguns grupos e, ao contrário do que se supunha, eles sobreviveram ao migrar para outras capitanias. A consulta aos CDs do Projeto Resgate permitirá cruzar dados para identificar esses grupos e sua movimentação.Os documentos sobre Goiás permitirão pesquisar a presença da Igreja na região, pois tratam de algumas irmandades e confrarias, além de registrarem muitas queixas dos eclesiásticos contra o governo civil e vice-versa. Um destaque apontado por Antonio Cesar Caldas, da Universidade Católica de Goiás, é a documentação cartográfica e iconográfica, que preenche muitas lacunas.

Amazônia em polêmica
O diretor do Museu Amazônico, Francisco Jorge dos Santos, levantou uma polêmica. Depois de lembrar que, quando jovem, indignava-se com o fato de os historiadores não tratarem da história colonial do Amazonas, sustentou: “Mas eles estavam certos, porque a Amazônia constituía uma unidade colonial que era independente do Brasil”. Acrescentou que a documentação levantada no Arquivo Ultramarino confirmaria isso, pois os temas que verificou até 1808 não apontavam qualquer documento que se reportasse à Bahia ou ao Rio de Janeiro, as duas sedes administrativas coloniais. Isso só teria mudado com a vinda da Corte para o Brasil em 1808. Se a partir de então os documentos amazonenses se reportam ao Rio de Janeiro, isso não se deveria ao fato de ser o Rio “a sede do Brasil”, mas ao de ser “a sede do Reino”.

A pernambucana Maria do Socorro se contrapôs: “Ao contrário do que sugere a posição do meu colega, o Nordeste quer ser Brasil. Nos Estados Unidos, aquela imensidão, tudo é história nacional! Nós somos todos brasileiros, com as nossas especificidades”.Juciene Apolinário, da Universidade do Tocantins (que faz parte da Amazônia Legal), contradisse diretamente o amazonense: na documentação relativa a Goiás, ela constatou que na verdade havia uma intensa comunicação entre os capitães-generais de Goiás e do Amazonas, especialmente sobre o intrincado problema, à época, da navegação no rio Tocantins. Sua descoberta exemplifica o potencial dos documentos resgatados, que permitem cruzar facilmente, pelos CD-ROMs, as informações de várias capitanias.Numa das sessões, Caio Cesar Boschi, da PUC de Minas, comentou que, em termos da quantidade de documentos inventariados, havia “pequenas e grandes capitanias”. Sem querer, acendia outra polêmica.

João Eurípedes Franklin Leal, da Universidade Federal do Espírito Santo, replicou: “No final do século 16, o Espírito Santo era superior à Capitania de São Vicente em produção e qualidade do açúcar. Era superior ao Rio de Janeiro em população e em comércio! Então, como era uma pequena capitania?” E prosseguiu, veemente: “Até o século 17, o Espírito Santo ia muito bem, e os documentos o comprovam. De repente descobre-se, desculpem, o maldito ouro de Minas Gerais! Aí viramos um forte, um forte natural. Tudo para defender as Minas Gerais!”

Outro momento de descontração foi proporcionado por Sérgio Conde Albite, da Universidade Rio-Grandense: disse que falaria de algo “que não é nem grande, nem pequeno, nem capitania e nem está no Brasil”. É que ele trabalhou na documentação da Colônia do Sacramento (atual Uruguai), parte dela levantada em Montevidéu. Os documentos confirmam que a Colônia servia sobretudo como posto avançado da Metrópole para resguardar seus domínios mais ao norte.

O projeto certamente provocará muitas polêmicas, pois vem sacudir a historiografia colonial. Além disso, brasileiros e portugueses se resgataram e reencontraram na tarefa de reunir os milhares de documentos, não só do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, como também dos arquivos públicos brasileiros, que já foram microfilmados e estão em Portugal, no que é informalmente chamado de “Retorno” – o equivalente português ao projeto.

Colaborou: Adilson Augusto

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