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SOCIOLOGIA

Injustiça com as próprias mãos

Banco de dados mostra painel trágico dos linchamentos no Brasil

Em julho de 1998, enquanto a seleção do Brasil buscava o título da Copa, em Paris, e 160 milhões de brasileiros balançavam a bandeira com a inscrição “ordem e progresso” por aqui, o placar da violência em São Paulo ficou inalterado. Durante os dias da maratona, as delegacias policiais do Centro não registraram um único crime grave, assim como não houve um linchamento em todo o país (ao contrário do que ocorria a cada 2,5 dias). A explicação para o fenômeno pode ser simples: as pessoas estavam com uma rara sensação de segurança.

“Isso é emblemático. Nesse momento se reforçam os laços comunitários, pois é justamente a ausência deles que motiva os linchamentos. Quando os vínculos comunitários se dilaceram, se produz medo e insegurança”, explica José de Souza Martins, professor titular do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

Martins acaba de concluir uma pesquisa patrocinada pela FAPESP para a criação de um banco de dados com 1.999 casos de linchamentos em todo o país. O estudo, com base em notícias de jornal, focaliza um período de 54 anos: de 1.º de janeiro de 1945 a 31 de dezembro de 1998 (a FAPESP financiou apenas o período de 1995 a 1998).O pesquisador, entretanto, não se limitou à elaboração de um arquivo. O estudo inclui a análise de três regiões que foram palco para linchamentos no país: o sertão da Bahia, o oeste de Santa Catarina e Ribeirão Preto (SP). “Quando se faz um estudo de caso em um corpo de pesquisa como esse, ele baliza a pesquisa. Ele permite trabalhar qualitativamente as ocorrências”, afirma o professor, que pretende publicar um livro sobre o tema no ano que vem.

O pesquisador procurou compreender melhor o universo do linchamento. No sertão da Bahia, por exemplo, Martins investigou duas agressões motivadas por assassinatos simbólicos: o de uma professora do povoado rural por um aluno e o de um padre de família local. Os dois linchamentos são indicadores dos principais estimulantes a esse tipo de agressão. Dos crimes que causam maior indignação estão violações ou assassinato de mulheres jovens, solteiras e virgens, mulheres grávidas e crianças. Raramente se lincha uma pessoa quando a vítima do linchado é do sexo masculino.

Por outro lado, as características mais vulneráveis para o linchamento são ser homem, jovem e estar entre 15 e 30 anos de idade. “Há pouquíssimos linchamentos de mulheres e os que ocorreram foram porque elas estavam no lugar errado e na hora errada”, diz o professor. Segundo ele, já houve muitos casos em que mulheres cometeram delitos similares aos de homens linchados e elas não foram agredidas. Isso ocorre porque os linchamentos não são contra as pessoas em si. Eles estão relacionados ao estereótipo da vítima.

Um dos casos mais impressionantes relatados na pesquisa mostra bem a dimensão do problema. Dois bóias-frias que trabalhavam em um canavial de Ribeirão Preto sofreram uma tentativa de linchamento por serem os principais suspeitos da morte de uma garota de 4 anos. Mais tarde, porém, uma autópsia revelou que a menina não havia sido violentada e assassinada, como supunha a população local. Sua morte havia sido provocada por desidratação após cinco dias perdida na plantação.

O caso adquiriu cores ainda mais fortes dois anos depois, quando foi preso, em São Paulo, um rapaz acusado de estupro e assassinato de uma criança de 4 anos. No interrogatório, ele confessou espontaneamente que havia sido responsável pela morte daquela criança de Ribeirão Preto. Mesmo com essas revelações, permaneceu na cidade um movimento pela canonização da criança e os participantes do linchamento não se demonstraram culpados pela agressão contra inocentes. “Não houve arrependimento porque o que caracteriza o linchamento é a isenção de culpa. O linchador não age em nome próprio, mas em nome da sociedade.

Ele nunca acha que o golpe dele foi o que matou. Não dá para trabalhar na linha do que, pela justiça, é considerado crime”, analisa o pesquisador.De acordo com o professor, o linchamento é uma reação autodefensiva em que só opera a partir da multidão. “Não existe um número que defina multidão. É um comportamento. Ele existe quando ninguém individualmente é responsável e consciente por aquilo.” No estudo realizado em Santa Catarina, entretanto, Martins investigou dois casos de linchamentos cujos participantes foram julgados, condenados e presos. Esses exemplos são pouco comuns, pois o Código Penal brasileiro não reconhece o linchamento especificamente como crime. Existe, apenas, uma pequena insinuação do chamado crime coletivo, que ainda tem atenuante.

“Já houve casos de pessoas que, sabendo disso, participaram de linchamentos. Estavam cientes de que com a participação de mais de sete pessoas não seria caracterizado crime. No momento, um sujeito que se seguraria, vai em frente e lincha”, diz Martins.Essa questão já foi muito debatida e ganhou muita força no linchamento de Danatto Carreta, diretor da prisão de Regina Celli, em Roma, em 1945. Trata-se do primeiro a ser completamente filmado (por ninguém menos do que Lucchino Visconti, que começava a carreira de cineasta). Carreta seria testemunha em um julgamento que não houve e, quando estava saindo do tribunal, uma mulher apontou para ele dizendo: “Esse era o diretor da prisão onde meu marido foi preso”.

Sua frase foi considerada uma senha para o linchamento. “Esse é um caso clássico. Carreta era inocente e, por causa do filme, conseguiram identificar os agressores, mas foi complicado, pois é um crime coletivo. É difícil se identificar um instigador. Há um impulso motivado pela raiva e pelo ódio, que leva a uma participação sem clara avaliação do que está acontecendo”, diz Martins.A definição de um perfil de linchadores, de acordo com o pesquisador, é mais difícil de ser determinada do que a das vítimas do linchamento. Em geral, são homens e adultos, mas é possível verificar, eventualmente, a presençade mulheres, crianças e adolescentes. “Os linchamentos comunitários envolvem todos, assim como o crime cometido pelo linchado”, analisa o professor.

As características do linchamento indicam que o ato é, na realidade, um rito de sacrifício e funciona como forma de punição. “Se não existisse uma motivação de praticar um rito sacrificial, o criminoso seria entregue à justiça. Há um rito sacrificial no modo como o sujeito é morto. Sempre lentamente”, diz. O rito do linchamento sofre variações em virtude das motivações, mas o pesquisador definiu um padrão brasileiro: uma aproximação vagarosa com pedradas em relação à vítima e, em geral, concluída com a pessoa sendo queimada viva. Se o linchado cometeu um crime sexual, ele é castrado ou mutilado no rosto. “Isso porque há uma dimensão sagrada importante que indica ser a desfiguração facial um impedimento para a ressurreição”, observa Martins.

A pesquisa revela que um linchador pode estar na maior parte das castas sociais, com exceção da elite. Nas áreas metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, a massa popular mais pobre é a grande responsável pelos linchamentos. Em geral, isso é conseqüência da instabilidade de bairros de populações recentes, migrantes, cujas referências estruturais do ponto de vista sociológico ainda não estão construídas na cidade. Nas cidades do interior, porém, a maior parte dos linchadores é da classe média.Em contrapartida, o linchamento inclui vítimas integrantes da elite (mais de 10%). A explicação está na violação de um estereótipo da sociedade. “Houve um caso no interior do Paraná de um médico linchado porque sua enfermeira havia movido uma ação trabalhista contra ele e, por vingança, ele encomendou seu assassinato. As pessoas não toleraram. O médico foi apanhado na cadeia junto com o policial pago para matá-la e os dois foram mortos”, conta Martins.

Em Santa Catarina, há outro relato de uma tentativa de linchamento contra um juiz do Tribunal Superior do Trabalho porque ele estava com a família, em período de férias, utilizando carro oficial: uma multidão depredou o automóvel e o juiz teve de fugir com a família. “Você tem no linchamento uma definição negativa do que é propriamente social, mas você tem uma expressão da consciência social, o que são os direitos e os deveres”, afirma.

Essa questão pode ser uma explicação para o aumento dos linchamentos no final da ditadura militar, pois o momento é caracterizado por uma certa consciência da desordem. “Há um questionamento da população: quem é que manda nisso aqui? Onde está a autoridade? Isso é bastante claro”, avalia Martins. Para ele, o linchamento é uma condenação à justiça institucional e uma manifestação de descrença nos mecanismos de justiça e poder. “É uma justiça direta, com as próprias mãos”, afirma.

No entanto, a degradação do sistema judiciário, cujas funções foram desviadas pela ditadura militar, teria criado uma representação associada mais à dominação do que à justiça em uma sociedade que deveria ser baseada no princípio da igualdade. “Isso desperta muito medo, que tende a se manifestar coletivamente. Individualmente, as reações são de outro tipo”, afirma.

Para ratificar a análise, Martins aponta que um outro ciclo de linchamento no país também começou a se intensificar no fim de outra ditadura, a de Getúlio Vargas. Durante seu austero governo, no entanto, houve poucos linchamentos. A análise do rito sacrifical e da quebra do sagrado indica que há a emergência de uma consciência oculta dos linchadores, que quando os mecanismos de controle social não funcionam o “véu” protetor desses códigos caem e as pessoas começam a ter atitudes de épocasmais antigas. “É como se a consciência fosse formada por camadas. Ao se deteriorar a camada protetora e moderna, vem uma mais antiga”, diz Martins.

Segundo algumas pesquisas experimentais, quando as regras de um grupo humano são quebradas, em uma fração de segundos surgem outros códigos. Na realidade, esses códigos já estavam presentes na estrutura de comportamentos, mas escondidos. Isso explicaria alguns ritos medievais usados no linchamento, que não por acaso se evidenciam em momentos de trevas.

A crueldade popular com sotaque ianque
A crueldade dos ritos de sacrifício nos Estados Unidos foi, recentemente, tema da exposição “Without Sanctuary”, encerrada em julho, na New York Historical Society. A mostra apresentava uma série de fotografias e cartões-postais do colecionador americano James Allen, que durante 25 anos viajou pelos Estados Unidos em busca de registros de linchamentos. O material, hoje apresentado como raridade, era comercializado como uma espécie de suvenir. A coleção de Allen também foi editada em livro (Without Sanctuary, Twin Palms Publishers, 212 páginas, US$ 48). “Fotografar fazia parte do rito de sacrifício. Quem havia participado daquilo queria guardar as fotos e os cartões-postais como lembrança, assim como os dedos e as orelhas do linchado”, diz o professor José de Souza Martins, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

O registro de linchamentos nos Estados Unidos tornou-se freqüente por um período de cerca de 50 anos (de 1880 até 1930). As vítimas eram, em geral, negros que haviam acabado de ser libertados. “Foi a forma de enquadrar o negro americano nos limites inferiores de uma sociedade de classes”, avalia o professor. “Historicamente, o linchamento aumenta dentro de uma conjuntura de exacerbação do conflito étnico social, que resulta na morte das pessoas”, diz. No prefácio de Without Sanctuary, o líder de direitos civis na década de 60, John Lewis, diz que o livro traz à tona um dos períodos mais horríveis e doentios da história da americana. “As fotografias tornam reais os crimes hediondos que foram cometidos contra a humanidade. Atrocidades que aconteceram na América não muito tempo atrás. Temos de nos prevenir para que nada igual a isso aconteça novamente”, afirma.

O pretexto para o linchamento naquele período era quase sempre relativo à conduta sexual do negro, na maioria das vezes acusado de ter estuprado uma branca. Algum tempo depois, graças à atuação de um movimento feminino, verificou-se que o argumento era uma falácia. O movimento de mulheres era formado por brancas, protestantes e da elite dos Estados Unidos. O grupo foi criado justamente para denunciar os próprios maridos das integrantes, que se baseavam no fato de que a maioria dos casos de violação de mulheres brancas era de responsabilidade dos próprios brancos. “Era a saída para limpar a honra e culpar o negro”, diz Martins.

De acordo com o professor, está havendo um revigoramento dos linchamentos nos Estados Unidos, sobretudo no norte do país. “No ano passado, houve um linchamento de um negro por um grupo de negros, ou seja, o linchamento deles está ficando parecido com o nosso, que apresenta um limite da transgressão: é possível transgredir, mas tem um limite”, avalia.

No Brasil e em outros países, entretanto, não foram produzidos materiais com essa característica. “Aqui, teve um ou outro caso de fotografia, como o caso de Matupá (MT), filmado e exibido na TV. As fotos americanas não têm nada a ver com nosso linchamento”, diz Martins.

José de Souza Martins graduou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde fez o mestrado e o doutorado e da qual é professor titular. É professor titular também da Cátedra Simon Bolívar da Universidade de Cambridge.

 

Os Projetos
Linchamentos no Brasil e Linchamentos no Brasil II – As Condições do Estudo Sociológico dos Linchamentos no Brasil
Investimento
R$ 4.311,02 e R$ 11.725,73

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