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QUÍMICA FINA

Reagentes em destaque mundial

Grupo sintetiza compostos de selênio e telúrio para remédios e agroquímicos

Métodos brasileiros de síntese orgânica para produzir reagentes com atividade biológica – que possam ser usadas, por exemplo, em medicamentos e agroquímicos – ganharam destaque com a publicação de um artigo numa revista internacional. Os reagentes químicos, à base de selênio e telúrio, foram desenvolvidos por um pesquisador do Instituto de Química (IQ) da Universidade de São Paulo (USP) e entraram para o catálogo de produtos da maior empresa de química fina do mundo, a norte-americana Aldrich. Também se formalizou um acordo entre a empresa e o IQ-USP para a comercialização de vários desses reagentes no mercado internacional.

O artigo, Add a Little Tellurium to Your Synthetic Plans! (Acrescente um Pouco de Telúrio a seus Planos de Síntese), do pesquisador João Valdir Comasseto e seu doutorando Rafael E. Barrientos-Astirraga, foi publicado na revista trimestral da empresa, Aldrichimica Acta (vol. 33, nº 2, 2000), que tem 130 mil exemplares distribuídos entre indústrias do ramo e cientistas de todo o mundo. É a primeira vez, em seus mais de 40 anos, que essa revista publica um trabalho brasileiro.

Para Comasseto, o fato mostra que o trabalho do instituto, reconhecido internacionalmente com centenas de citações em publicações científicas, desperta interesse comercial. E destaca que isso também resulta das condições técnicas do laboratório, que, graças a constantes investimentos, está equipado como os das grandes universidades do mundo. No projeto que ele coordena (Reagentes de Selênio e Telúrio em Síntese Orgânica) e que deu origem ao artigo, por exemplo, a FAPESP investe R$ 326 mil e US$ 353 mil.

Arquitetura molecular
Comasseto trabalha há mais de 20 anos em métodos de síntese orgânica para desenvolver reagentes ou “blocos de construção” que servem para construir moléculas bioativas (medicamentos, agroquímicos, aromas). Os reagentes sintetizados atuam como os blocos pré-moldados da arquitetura, que podem ser montados para se construir o “edifício”, que são estruturas moleculares complexas com propriedades biológicas. O método em destaque usa blocos com átomos de selênio ou telúrio (ver quadro). Uma reação especial, a hidroteluração de acetilenos, dá origem a blocos chamados teluretos vinílicos. Esses compostos, por serem estáveis na água e no ar, têm a vantagem de poder ser facilmente armazenados e transportados e, portanto, comercializados.

Exemplos notáveis
Um exemplo é a macrolactina A, produzida naturalmente por bactérias marinhas em pequeníssimas quantidades. Essa substância despertou interesse no mundo por revelar uma potente atividade antiviral, inibindo a replicação dos vírusHerpes simplex (da herpes) e HIV (da Aids), além de atividade anticancerígena. Sua síntese teve a colaboração de pesquisadores da Universidade de Michigan, Estados Unidos.Outra molécula bioativa que o laboratório sintetiza é a isocicutoxina, identificada em 1999 por cientistas japoneses como componente do veneno cicuta (o que matou Sócrates).

Por ter se mostrado citotóxica (causadora da morte de células), ela pode ser usada no combate ao câncer. O mesmo reagente usado na síntese da macrolactina A serve para sintetizar a isocicutoxina. Várias outras substâncias bioativas estão sendo obtidas no laboratório do IQ por meio desses blocos de construção, chamados teluretos vinílicos, que podem ter diferentes estruturas. O laboratório pode fornecer esses reagentes para o setor industrial ou para outros centros universitários por meio da Aldrich, revela Comasseto. Ele salienta que a importância do trabalho está justamente no desenvolvimento de métodos gerais de síntese que possam ser aplicados por grupos de pesquisa do mundo inteiro, inclusive indústrias farmacêuticas, para sintetizar compostos bioativos.

Exportando idéias
O artigo na Aldrichimica Acta rendeu muitos e-mails para Comasseto: pesquisadores dos Estados Unidos, Europa e Japão fazem comentários e mostram interesse em trabalhar na área. “Esse interesse de laboratórios por nosso trabalho mostra que o Brasil já exporta idéias em um campo extremamente importante, que é o da química fina.” Aliás, o país sediou este ano o mais importante evento internacional da área, a 8ª Conferência Internacional sobre a Química do Selênio e do Telúrio, realizada em Águas de São Pedro (SP).

Por fatos como esses, Comasseto acha que é hora de derrubar o mito de que o Brasil sempre copia o que se faz lá fora: “Na verdade, hoje são eles que estão de olho no nosso laboratório”. E a política do instituto é justamente a de promover um intercâmbio constante com centros de pesquisa do mundo todo. Desde 1986, o laboratório promove encontros entre químicos daqui e do exterior para uma semana de palestras e debates com estudantes brasileiros. O Encontro Brasileiro sobre Síntese Orgânica (BMOS), por exemplo, já é consagrado como evento internacional e tem 300 participantes por ano em média. “Geralmente esses encontros acabam culminando numa série de trabalhos em conjunto e, freqüentemente, nossos alunos passam pelo menos um ano estudando em países como EUA, Canadá e Inglaterra”, diz ele.

Além das relações com centros do exterior, o instituto acrescenta à sua função acadêmica a atuação com a comunidade local. Criada em 1986, a Central Analítica do IQ-USP presta serviços para outras universidades e para o setor industrial. Desde 1997, produz em média 11 mil análises por ano. O IQ também participa de um programa de capacitação para Micro e Pequenas Empresas Paulistas, em convênio com o Sebrae e a Fiesp.

Métodos limpos
Foi a partir da década de 80 que Comasseto começou a desenvolver métodos de síntese de compostos de telúrio, que resultaram em vários teluretos vinílicos. Hoje se dedica também a implementar no IQ uma nova linha de trabalho que, entre outros objetivos, visa a reduzir o grande volume de subprodutos tóxicos gerados nas reações químicas.

“Estima-se que, para cada quilograma de medicamento sintetizado, são produzidos 100 quilogramas de poluentes”, afirma. Por isso, um dos grandes desafios da química é substituir métodos tradicionais altamente poluentes por métodos “limpos”, que utilizem menos solventes, substituam solventes orgânicos por água, usem reagentes em menores quantidades e que sejam biodegradáveis.

O pesquisador sugere o desenvolvimento de métodos de síntese orgânica a partir de enzimas produzidas por microrganismos, seguindo um princípio natural: “O açúcar da cana ou da uva, por exemplo, passa por um processo de fermentação provocado por microrganismos, para ser transformado em etanol. Podemos imitar esse método natural no laboratório para sintetizar outras substâncias sem gerar poluentes. Com isso, pretendemos ensinar novas gerações de químicos a trabalhar de maneira ecologicamente correta, de forma a eliminar os poluentes dos processos produtivos”.

– João Valdir Comasseto, 50 anos, é professor titular do Instituto de Química da USP desde 1992. Formou-se em Química (1972) na Universidade Federal de Santa Maria (RS). Fez mestrado em Química Orgânica e doutorado em Química de Selênio no IQ da USP (1973-1977) e pós-doutorado (1980) na Universidade de Colônia (Alemanha) e obteve o título de livre-docente (1984) na USP.

Os malcheirosos
Descoberto em 1782 pelo mineralogista austríaco Franz Joseph Muller von Reichstein, o telúrio (Te) só foi reconhecido e nomeado 16 anos depois pelo alemão Martin Heinrich Klaproth (1743-1817). Em 1817, o sueco Jöns Jakob Berzelius (1779-1848) descobriu um elemento com propriedades semelhantes: o selênio (Se). Semimetais do grupo do enxofre, ambos são elementos raros, encontrados sobretudo como subprodutos da mineração de cobre.

O curioso na história desses elementos é que por muito tempo foram rejeitados pelos químicos por causa de seu mau cheiro. Isso também ajudou a nutrir noções equivocadas dos efeitos de ambos sobre o organismo humano (mais tarde se descobriria que alguns de seus compostos podem ser praticamente inodoros). Por várias décadas, foram considerados muito tóxicos e sem utilidade bioquímica, de modo que seu uso ficava praticamente restrito à indústria de materiais.

Assim, o selênio, por ser bom condutor elétrico na presença de luz, há tempos é usado em células fotoelétricas (que convertem luz em eletricidade), esteve presente nas pesquisas de transmissão de imagem que culminaram na criação da televisão e também participa de processos de reprodução xerográfica, coloração de vidros e recuperação de monumentos e abóbadas encobertos pelo esverdeamento produzido por impurezas no ferro. O telúrio é usado na fabricação de transformadores e aparelhos termoelétricos, produção de aditivos antidetonantes para a gasolina, processos de vulcanização e coloração de vidros.

Tradição brasileira
A química de selênio e do telúrio é uma tradição no Instituto de Química da USP desde sua fundação, em 1933. Foi introduzida por Heinrich Rheinboldt (1891- 1955), seu fundador, por ser uma área pouco explorada na época. Nas décadas de 30 e 40, quando poucos laboratórios se dedicavam a esses elementos, o IQ-USP, que se firmava como primeiro centro de excelência internacional em química no Brasil, centralizava o desenvolvimento da química de selênio e telúrio.

Foi só a partir da década de 60 que os dois elementos despertaram o interesse dos laboratórios internacionais, incentivados por grandes companhias exploradoras de cobre, que acumulavam montanhas de selênio e telúrio nas minas. A criação da Associação Internacional para o Desenvolvimento da Química de Selênio e Telúrio, patrocinada pelas mineradoras, contribuiu para que, nos 20 anos seguintes, a química orgânica do selênio se consolidasse como um dos campos de maior atividade em síntese orgânica.

Nutrientes básicos
Então, ao contrário do que se pensava, descobriu-se que os compostos de selênio são micronutrientes essenciais: sua falta provoca disfunções musculares e cardíacas, ele é necessário ao bom funcionamento do sistema imunológico e protege as membranas celulares contra alterações oxidativas associadas ao câncer e ao envelhecimento precoce. Estudos mais recentes mostraram que a ingestão de selênio acima das quantidades mínimas recomendadas – 0,1 miligrama por grama da dieta – reduz a incidência de câncer no cólon retal, no pulmão e na próstata. E descobriu-se que exerce papel fundamental na fertilidade: sua ausência na dieta de ratos provocou lesões nos espermatozóides, enquanto a atividade deles foi consideravelmente aumentada com uma elevação na dose de selênio.

Hoje existem vários suplementos alimentares à base de selênio, que também pode ser obtido numa dieta natural: muitos alimentos contêm pequenas doses de selênio e os cientistas procuram saber quais as fontes naturais mais ricas desse elemento.O malcheiroso elemento está definitivamente reabilitado. Quanto a seu parente, a carreira de sucesso apenas começa, segundo Comasseto: “Em relação ao telúrio, esse tipo de estudo está bem menos avançado, mas há algumas evidências de que ele poderia ajudar no controle do colesterol”.

O Projeto
Reagentes de Selênio e Telúrio em Síntese Orgânica (nº 00/01011-6); Modalidade Projeto Temático; Coordenador João Vladir Comasseto; Investimento R$ 326.896,69 mais US$ 353.142,25

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