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FÁRMACOS

Gene bovino dá medicamentos

Estudos com fator de crescimento de fibroblasto (FGF) indicam ações terapêuticas potenciais

Uma pesquisa do Instituto Butantan aponta possibilidades terapêuticas para o composto FGF (fibroblast growth factor ou fator de crescimento de fibroblastos), produzido a partir de um gene bovino. As funções terapêuticas abrangem desde o tratamento de queimaduras de segundo grau até a recuperação de lesões da medula espinhal. O composto tem sido usado também em meio de cultura de células-tronco para a produção de tipos celulares com uso clínico potencial. O biólogo Paulo Lee Ho, coordenador da pesquisa, estuda as aplicações do FGF desde 1989. O projeto Fator de Crescimento de Fibroblasto-2 (FGF-2): Humanização, Expressão e Possível Aplicação Clínica, financiado pela FAPESP, resulta de uma consulta feita a ele pelo Instituto do Coração (Incor) da Universidade de São Paulo (USP).

Ho conta que o FGF “foi descoberto na década de 1970 por um brasileiro”, o professor do Instituto de Química da USP Hugo Aguirre Armelin, e que o gene bovino correspondente já havia sido expresso numa bactéria – Escherichia coli – por outro professor desse instituto, Ângelo Geraldo Gambarini. Parte de uma família de fatores de crescimento estruturalmente parecidos, o FGF é multifuncional – pode provocar respostas diferentes, conforme o tipo de célula com que tem contato. Nos laboratórios do Butantan se testaram efeitos de um dos membros dessa família, o FGF-2. “Testamos algumas ações importantes, justamente para explorar os casos clínicos: cicatrização de tecidos, queimaduras de segundo grau, reconstituição de vasos sanguíneos do miocárdio e recuperação funcional do sistema nervoso”, diz Ho.

No caso da cicatrização, avaliou-se a capacidade do FGF-2 de induzir a proliferação de células – ação mitogênica -, uma resposta celular que participa da ação cicatrizante. Outro ensaio avaliou a capacidade de induzir a formação de vasos sanguíneos – ação angiogênica, exatamente a que despertou o interesse do Incor pela pesquisa. O terceiro ensaio buscou descobrir se o FGF-2 pode induzir a diferenciação de certas células em neurônios, ou manter a viabilidade de neurônios já diferenciados – ação neurotrófica.

Método inédito
A possibilidade de uso clínico do FGF-2 já era conhecida. Mas a sua obtenção a partir do gene bovino “humanizado” é a inovação do projeto, que contou com o trabalho da pós-doutoranda Maria Leonor Sarno de Oliveira.

A equipe observou que a diferença entre o FGF humano e o bovino era de só dois aminoácidos, que ficam bem perto um do outro na cadeia molecular. Para chegar ao FGF humanizado, partiram do cDNA bovino. DNA é o ácido desoxirribonucléico, que contém o código genético e está em todas as células, enquanto cDNA é o DNA complementar, obtido a partir do RNA mensageiro – ácido ribonucléico mensageiro, que transmite dados do código genético – do FGF-2 bovino. Para isso, fizeram duas mutações de uma vez, “humanizando” o FGF bovino: o processo consistiu em modificar o cDNA bovino para que fosse capaz de produzir um FGF igual ao humano, trocando os dois aminoácidos diferentes. Com o cDNA bovino humanizado, puderam expressá-lo numa bactéria, a Escherichia coli.

Os testes para avaliar a ação mitogênica do FGF-2 foram feitos em cultura de fibroblastos – células características do tecido conjuntivo – mantida com soro fetal, cuja função é induzir o crescimento das células. No teste, os pesquisadores retiraram o soro da cultura, para que as células parassem de crescer, e então adicionaram o FGF purificado. O resultado foi a indução da mitose – processo de crescimento por divisão celular -, com uma resposta que varia conforme a dose administrada.

Para testar a ação neurotrófica, usaram células com capacidade de diferenciação neuronal e as puseram em contato com o FGF-2. Então, elas se diferenciaram em neurônios – células que formam o sistema nervoso. No terceiro e no quarto teste, feitos em conjunto com Joaquim Coutinho Netto, da USP de Ribeirão Preto, foi mostrada a capacidade de cicatrização e revascularização. Os pesquisadores usaram amostras retiradas da orelha de coelhos para testar as ações cicatrizante e angiogênica do FGF-2. Foi feita uma punção na orelha do coelho até atingir a cartilagem e posto no local um tampão com FGF-2.

A presença do composto induziu a reposição do tecido retirado e a formação de novos vasos. Notou-se, contudo, que o uso exclusivo do FGF-2 não basta para completar o processo de cicatrização. A ferida provocada pela punção continuou, mesmo depois da reconstituição dos tecidos: o FGF-2 sozinho não foi capaz de promover eficientemente o crescimento das células epiteliais que compõem a pele. Para resolver o problema, a equipe tenta associar a ação do FGF-2 à de outro composto, o fator de crescimento de queratinócitos.

Noutro ensaio, o FGF-2 foi posto na córnea de coelhos, um tecido naturalmente sem vascularização, mas sua presença induziu a formação de vasos também ali.Os testes de laboratório terminaram. A próxima fase do projeto depende da construção de uma planta piloto que permita produzir FGF em escala maior, cerca de 80 litros, em condições GMP – adequadas para uso em humanos, segundo a legislação. Essas condições têm, primeiro, o objetivo de garantir a qualidade. Além disso, como usa bactérias recombinantes – geneticamente modificadas -, o processo produtivo é conduzido de modo que essas bactérias não se espalhem, mesmo no caso da E. coli, que não é estranha ao homem. A equipe pretende patentear o FGF-2 humanizado a partir de gene bovino. O mesmo FGF produzido similarmente por tecnologia de DNA recombinante tem preço médio de US$ 100 por 10 microgramas. Espera-se que a produção possa começar em meados do ano.

Esquistossomose
Da planta piloto depende a conclusão de outro projeto, desenvolvido em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro: nele, o grupo trabalha para desenvolver uma vacina anti-helmíntica – contra a esquistossomose ou barriga d’água, doença endêmica no Brasil. Causada pelo verme Schistossoma mansoni, é contraída pela penetração da larva na pele quando a pessoa entra em contato com água contaminada. O projeto também está em fase avançada. A vacina será produzida com base numa proteína que está presente também na superfície do verme, a Sm-14. A equipe de Paulo Lee Ho e de Ana Lúcia T. Oller do Nascimento, do Laboratório de Biotecnologia Molecular do Butantan, concentrou-se na melhoria das técnicas de obtenção da Sm-14 por engenharia genética.

Até o momento, a vacina foi testada pela Fiocruz em camundongos e coelhos com resultados considerados excelentes. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), só antígenos com índices de proteção acima de 40% em testes com animais devem ser ensaiados em humanos. Nos camundongos inoculados com a forma ativa da doença, obteve-se um índice de proteção em torno de 50% e, nos coelhos, 100%. Esses animais, porém, não são os melhores modelos para o teste de proteção: não são os alvos naturais, pois não têm o hábito de entrar na água.

“Sempre se usa um modelo animal para testar uma vacina de uso humano, mas nem sempre esse modelo tem paralelo com a resposta que ocorre no homem: temos de realizar os testes em humanos para saber se funciona ou não”, avisa Ho. Os testes iniciais visam a descobrir se o antígeno é inócuo ao homem. Para fazê-los, o grupo precisa produzir a vacina em condições adequadas, o que requer a planta piloto em funcionamento. Ho acredita que, uma vez iniciados, os testes com humanos sejam concluídos em cinco a dez anos. A importância da vacina, para ele, está na possibilidade de usá-la tanto no tratamento como na prevenção da doença.

Os Projetos
1.
Fator de Crescimento de Fibroblasto-2 (FGF-2): Humanização, Expressão e Possível Aplicação Clínica (nº 99/08600-8); Modalidade
Auxílio a projeto de pesquisa; Coordenador Paulo Lee Ho – Instituto Butantan da Secretaria da Saúde do Estado; Investimento R$ 5.000,00 e US$ 6.000,00
2. Desenvolvimento de uma Vacina Anti-helmíntica: Melhoramento da Vacina e o Desafio de seu Scale-upem Condições GMP para Testes Clínicos de Fase I/II em Humanos (nº 98/14961-0); Modalidade Auxílio a projeto de pesquisa; Coordenador Paulo Lee Ho – Instituto Butantan da Secretaria da Saúde do Estado; Investimento R$ 83.600 e US$ 95.785,86

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