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Meteorologia

Caçadores de raios

Equipe do Inpe sai a campo durante tempestades para filmar os relâmpagos do Sudeste e mapear sua incidência

Diz-se que uma imagem vale por mil palavras. Mas de que vale filmar e fotografar raios, fenômeno já monitorado por detectores em terra e até por satélites? Vale muito para o físico Odim Mendes Júnior, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Certo de que a lente de uma câmara flagra detalhes que não seriam registrados ou passariam despercebidos entre os dados dos sensores, ele esclarece: “Parâmetros importantes como a trajetória, a tortuosidade e a ramificação de um raio não são captados pelos instrumentos convencionais. Portanto, filmagens, mesmo por leigos, ajudam a entender melhor o fenômeno”.

Há dois anos, ele coordena o projeto Via-Lux, com uma equipe multidisciplinar, para traçar uma radiografia dos relâmpagos do Sudeste, especialmente do Estado de São Paulo, com fotos e sobretudo imagens em movimento. Já reuniu mais de 100 horas de filmagem e 300 imagens de raios. A maior parte do material é composta de descargas que atingiram a região de São José dos Campos, onde fica o Inpe, mas também há registros obtidos em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul.

O projeto fez a equipe adotar hábitos incomuns. Para eles, tempo ruim é tempo bom para o trabalho. Assim que seu computador – ligado a um sistema desenvolvido no projeto para monitorar o tempo no Sudeste – fornece indícios de tempestade nas redondezas, os pesquisadores saem rapidamente para mais uma missão como caçadores de raios. Munidos de uma filmadora de alta resolução que flagra mais de 400 quadros por segundo, de uma filmadora convencional para registro de 30 quadros por segundo e de uma boa câmara fotográfica, eles saem com um lema: correr atrás dos raios para registrá-los e correr deles para escapar das descargas. “Uma vez, cheguei a ficar a 8 metros de onde caiu um raio, mas nunca me machuquei”, conta o coordenador.

Documentado o raio com a câmara, o caçador pega um aparelho de GPS (Sistema de Posicionamento Global) e anota as coordenadas geográficas do local, para saber com precisão onde caiu. “Dessa forma”, explica, “podemos verificar como os sistemas de detecção de descarga registraram o evento filmado, pois pretendemos contribuir também para um novo entendimento dos importantes sistemas já em atuação”.

Em alguns casos, uma incursão atrás de raios pode se resumir a menos de 2 segundos de filmagem útil. Mas, tratado em computador e desmontado quadro a quadro, o filme pode render uma rica seqüência de imagens. Numa obtida em São José, às 19h18 de 4 de janeiro, vê-se que o relâmpago produziu dez descargas distintas, algo pouco comum.

As duas primeiras foram extremamente rápidas (menos de 17 milissegundos) e fizeram o mesmo caminho quase vertical da nuvem ao solo. Já a terceira foi bem diferente, a começar pela duração: 238 milissegundos, 14 vezes mais que as anteriores. Eseucanal de ionização – o percurso do raio – foi mais inclinado e tortuoso, diferente das anteriores e com uma peculiaridade: antes de atingir o solo, ficou visivelmente perpendicular. Isso indica que o lugar atingido deve ser bom condutor de eletricidade. As outras descargas repetiram o traçado dessa terceira, embora durassem menos.

Mas que tipo de informação sobre esse filete tortuoso de luz que se viu apagar e acender duas ou três vezes ficou arquivado nos sensores que monitoram os céus do país? Deve haver um registro desse raio, já que é justamente o Sudeste a única região inteiramente coberta por um sistema regular de sensores. Esse registro deve conter algumas características: intensidade e polaridade da carga elétrica – se positiva, negativa ou bipolar -, número de descargas produzidas (no caso, dez) e local aproximado onde caiu. Mas a reconstituição exata do caminho, da nuvem ao solo, bem como o flagrante de situações inusitadas só podem ser feitos por meio de imagens como as obtidas no projeto.

Bases de dados
Além de produzir e obter de terceiros imagens de raios, a equipe desenvolve um software, o ThoR-SLA, para organizar grandes bases de dados de relâmpagos, classificados por vários parâmetros. Isso permitirá, entre outras coisas, a automatização dos relatórios. Embora ainda não concluído, o ThoR já fornece resultados: verificou-se que, em relâmpagos com várias descargas, o valor da segunda pode ser maior que o da primeira. “É um dado importante para o projeto de sistemas de segurança. A partir dessa informação, podemos esperar mais freqüentemente que uma segunda descarga mais forte incida sobre um equipamento ou instalação, cuja proteção deve estar preparada para recebê-la”, diz o pesquisador.

Outro módulo do programa permite simular o caminho e o comportamento das descargas elétricas. O resultado da simulação e os caminhos de uma descarga filmada podem ser vistos nas imagens obtidas.

Mistério brasileiro
Contudo, os raios ainda estão envoltos em mistério. No Brasil, as incertezas são maiores, mas há razões de sobra para o interesse pelo tema. O tamanho e a posição do país favorecem os fenômenos geradores de tempestade e há uma grande atividade elétrica atmosférica – só coberta regularmente por sensores no Sudeste e em partes do Sul e mais do Centro-Oeste. Outro complicador: os satélites que poderiam rastrear relâmpagos ficam “cegos” ao passar sobre o Sudeste e circunvizinhanças devido à interferência da chamada Anomalia Magnética do Atlântico Sul.

“Os satélites têm ainda outro problema: registram a quantidade total de raios produzida, sem fazer distinção entre os que ficam no ar e os que chegam à superfície do planeta”, acrescenta o pesquisador Osmar Pinto Júnior, colega de Mendes no Inpe e autor de um estudo sobre os raios que caíram no Estado no último verão.

O Projeto
Análise Observacional e Modelagem Numérica de Relâmpagos do Sudeste do Brasil (Projeto Via-Lux) (nº 98/03860-9); Modalidade
Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenador Odim Mendes Júnior – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe); Investimentos R$ 12.860,00 e US$ 49.647,00

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