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História

A raiz da cultura do fim do mundo

Estudo da Unicamp encontra paralelo inesperado entre a pregação dos "beatos" e os "conselheiros", até pouco tempo atrás presentes no sertão brasileiro, e os missionários que pregavam no médio São Francisco nos séculos 17 e 18

O sertão vai virar mar ou o mar vai virar sertão? A professora Maria Cristina Pompa resolveu investigar o mistério em sua tese Religião como tradução: missionários, tupi e “tapuia” no Brasil Colonial, que contou com o apoio da Fapesp. No estudo, ela analisou como, no período colonial, se deu a construção da cultura do fim do mundo do sertão, a partir da dialética entre cosmologia indígena e pregação missionária. A pesquisadora observou um paralelismo impressionante entre a pregação dos “beatos” e “conselheiros”, ainda ativos até pouco tempo atrás, e a dos missionários “itinerantes”, jesuítas e capuchinhos, que pregaram no sertão do médio São Francisco nos séculos 17 e 18. “Os conteúdos dessas pregações estavam marcados por uma religiosidade moralizante e penitencial, que se utilizava de uma espetacularidade barroca, a mesma de um padre Vieira,” explica Maria Cristina.

Para a maioria dos autores que trataram desse tema, a religião camponesa está atrelada ao “atraso” do sertanejo. “Falar em sertão é falar no seu ‘misticismo’: em Pedra Bonita, Canudos ou Juazeiro, nas procissões de penitentes e no fim de mundo,” diz. “No entanto, as manifestações ‘messiânicas’ do Nordeste são incompreensíveis fora do sistema simbólico sertanejo – o que defino como a cultura do fim do mundo, em que a religiosidade apocalíptica e penitencial é uma das formas de leitura do mundo. É por meio desse imaginário que passa a possibilidade de transformar a história e inaugurar um mundo novo, de justiça e irmandade.” E muitas vezes esses movimentos apresentam-se na forma de uma “guerra santa” do bem contra a maldade.

Os encontros sincréticos entre as religiosidades missionárias dos católicos e indígenas estão presentes desde o início de nossa colonização. Maria Cristina Pompa partiu da análise do chamado “profetismo tupi-guarani”. Para ela o profetismo indígena não é intrínseco à cultura tupi-guarani, mas é o produto do encontro entre as culturas na América, uma “construção negociada”. “E essa negociação começa pela própria categoria de ‘profeta’, utilizada nas fontes quinhentistas para indicar os grandes xamãs tupinambá: os caraíbas, como os brancos eram chamados pelos indígenas. Isso já mostra o esforço, de um lado e de outro,do encontro colonial, de ‘traduzir’ a alteridade em termos compreensíveis no interiorde um universo semântico conhecido: a linguagem religiosa é terreno de mediação onde cada cultura pode encontrar o sentido da ‘diversidade’ da outra”, analisa a pesquisadora.

Em sua investigação, Maria Cristina abordou a documentação missionária sobre a evangelização dostapuias (como no Brasil colonial eram chamados todos os índios não tupis do interior). Nesses registros, há relações de aproximação e afastamento entre missionários e índios nas aldeias. “Quando aparece o esforço de absorção da alteridade dos brancos e sua tradução em termos nativos: personagens míticos considerados ancestrais dos brancos, mitos cosmogônicos ‘reinventando’ o Gênese bíblico; a flagelação praticada com entusiasmo pelos índios, que tinham esta prática nos rituais de puberdade, e assim por diante.” A documentação descreve a atividade catequética nas aldeias, mostrando às vezes com crueldade o verdadeiro “fim do mundo” que foi para os índios o encontro com o Ocidente, católico e colonial.

O mundo até então mantido em ordem pelos mitos e ritos dos tapuias desmorona nesse encontro; as cerimônias tradicionais são proibidas, o casamento monógamo é imposto e o castigo divino é invocado, sob a forma de morte e doença, como castigo contra os costumes tradicionais, agora definidos como “infames superstições” e “operadores do mal”. “Entre recusa e aceitação, entre fuga para conservar as tradições e escolha de submeter suas existências a um poder extra-humano sentido como maior (o do Deus cristão e de seus agentes), se dá a construção do catolicismo tapuia, no qual apenas alguns rituais são escolhidos por fazerem sentido: as penitências públicas, as rezas para a seca e a varíola, os rituais da Semana Santa”, conta a professora.

Sua análise termina, cronologicamente, com a expulsão dos jesuítas e a transformação das aldeias em vilas, com a política pombalina que ordena a integração dos índios à população da colônia, estimulando até mesmo os casamentos entre brancos e indígenas. Certamente houve a imposição da religião católica, freqüentemente com violência, segundo Maria Cristina, como quando os kracuí se converteram em massa sob a ameaça de escravização de Domingos Jorge Velho. Mas essa religião foi, também, “uma recriação original indígena, a partir de seus sistemas simbólicos e de suas práticas”.Os missionários pregavam em suas prédicas um penitencialismo exacerbado, numa visão apocalíptica, de herança medieval e milenarista, no qual “a chegada do evangelho aos últimos povos da Terra era, conforme a profecia de Mateus, o sinal do fim dos tempos e a realização do Reino de Deus na Terra”. A partir dessa visão os indígenas releram seus mitos e seus rituais, incorporando essa nova realidade, “a do fim de seu mundo e de sua história e o começo de uma nova história”.

O Novo Mundo vai sendo transformado de Paraíso em Purgatório, local onde as provações e sofrimentos se fazem necessários para alcançar-se a salvação das almas. Essa formação histórica formou “a raiz cultural daquela história sem resgate, permanentemente ameaçada pelo Apocalipse, que permeia hoje a religiosidade popular sertaneja, em que a salvação não é dado a priori pelo sacrifício de Jesus Cristo, mas algo a construir, mediante a pregação dos conselheiros. Por isso, o título da tese parafraseia o historiador Sérgio Buarque, mostrando o outro lado do “paraíso” colonial.

Para seu pós-doutorado a pesquisadora pretende voltar à catequese no sertão do século 19, “àquela religiosidade popular em cujo cerne nasceram os movimentos sócio-religiosos como o de Canudos”. A professora explica que desde o escritor Euclides da Cunha, em sua descriçãoda guerra de Canudos, a cultura letrada brasileira viu os chamados movimentos messiânicos de uma forma ambígua,”entre a atitude de estranheza piedosa frente ao incompreensível ‘fanatismo religioso’ e o esforço de definição ‘científica’, da antropologia física de Nina Rodrigues até a abordagem sociológica revelando desigualdades econômicas e sociais”.

Maria Cristina Pompa lembra ainda que a religião e a simbologia não têm o mesmo estatuto explicativo de categorias como a política, a sociologia ou a economia. “A terminologia utilizada e a explicação elaborada não fazem senão definir um outro bárbaro e incompreensível, sertanejo e atrasado, incapaz de utilizar a linguagem da razão e condenado a se expressar em formas ‘alienadas'”, analisa. Aguardemos, então, a continuação desse estudo notável.

O projeto
Religião como tradução: missionários, tupi e “tapuia” no Brasil Colonial; Modalidade Tese de doutorado; Orientador John Manuel Monteiro – Unicamp; Pesquisadora Maria Cristina Pompa – Unicamp

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