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Exposição

O Brasil que é mais do que quinhentos

Mostra Brasil 50 Mil Anos, em Brasília, recupera o passado nacional pré-colonial

MIGUEL BOYAYANApesar de nascido há 10 mil anos atrás, ele não podia afirmar, como se vangloriou na música, que não havia nada deste mundo que ele não soubesse demais. Prova disso está na exposição Brasil 50 mil Anos: Uma Viagem ao Passado Pré-Colonial, mostra organizada pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE-USP), aberta no dia 3 de setembro (fica em cartaz até o dia 2 de dezembro), em Brasília, no Salão dos Espelhos do Superior Tribunal de Justiça. Os 50 mil do título são uma saudável provocação à badalada mostra “Brasil+500”. “São, em verdade, 12 mil anos de história que mostraremos, mas a referência à exposição do ano passado serve para deixar clara a intenção de ajudar o público a repensar esse tipo de organização da nossa história”, explica Paula Montero, diretora do MAE e uma das curadoras da exibição.

“Em geral, só se conhece a história colonial de conquista, o lado dos vencedores. As pessoas precisam descobrir que, quando os brancos chegaram por aqui, já existia uma população que conhecia bem o seu território, que mantinha rotas de comércio, etc. e que foi graças à experiência desses povos, aproveitada pelos conquistadores, que a colonização foi possível”, observa a pesquisadora. “Eles não se apropriaram apenas dos braços dos nativos como força de trabalho, mas de seu conhecimento”, avisa. Para contar essa história mal contada, a mostra utilizou uma área de 2 mil metros quadrados, que será dividida em seis módulos (o custo da exposição foi de R$ 2 milhões), um túnel do tempo arqueológico e etnológico.

“Mas não se trata de uma história evolucionista, sem a idéia de um progresso crescente entre as diversas sociedades nativas. Há mesmo várias que são contemporâneas. Afinal, mais importante do que o tempo é a geografia dessas populações, que se reflete na forma em que a exposição foi organizada”, fala. “Em cada ambiente, o público poderá ver o artefato inserido em seu ambiente e perceber as razões que levaram a sociedade, dado aquele contexto, a criar tal ou tal objeto”, explica. E, também como resposta à mostra “Brasil +500”, a curadoria de “Brasil 50 mil Anos” acabou com o fetiche do objeto. “O que se viu no ano passado, na exibição, era a peça sacralizada. Aqui, a peça não fala por si, antes, ela é importante porque é o gesto do homem deixado na história e só pode contar algo em relação com outros objetos”, avalia Paula.

Assim, não espere maquetes e caixas de vidro com longas plaquetas explicativas. O grupo também pretende inovar na forma de apresentação. “A mostra exige um esforço cognitivo do público, é dinâmica, faz as pessoas caminharem por entre os objetos para tentar apreender o seu significado total, não se restringindo ao entendimento parcial de peças com cartazes”, conta a professora. Acreditando na inteligência dos seus espectadores, os organizadores da exposição permitiram-se a licença de reunir passado e presente continuado. “Você vê, ao lado de pontas de flechas antigas, cestos feitos hoje, na mesma região, por pessoas que ainda têm ligações com aqueles povos do passado. Essa reunião de arqueologia e etnologia, tão necessária, bem como o fato de que a mostra se concentra na história antes da chegada dos portugueses, só foi possível porque queremos que o público seja capaz de, sozinho, fazer o link entre o passado e o presente”, fala a diretora do MAE.

Além disso, a mostra igualmente servirá como “prestação de contas” entre a moderna arqueologia brasileira, seus profissionais e a sociedade. “Da mesma forma que os enganos da Brasil+500 geraram o nosso desejo de fazer essa mostra, os seus acertos igualmente nos motivaram a usar a nossa exposição para entender o novo papel ocupado pela arqueologia brasileira”, diz. “Após um período em que estávamos numa posição marginal, hoje, por causa até daquele evento, temos maior visibilidade e respeito da comunidade. Isso, por um lado, é positivo, mas traz novas responsabilidades”, avalia.

Para Paula Montero, visibilidade precisa vir acompanhada de qualidade. “A profissão ainda não é regulamentada, seu projeto está na Câmara dos Deputados. Além disso, a conquista feita pela Constituição de 1988, que exigia a salvaguarda do patrimônio, mostra uma lacuna perigosa: a lei quer salvar o passado, mas não temos pessoal especializado suficiente para levar a cabo essa missão”, conta a pesquisadora. Mas, na mostra, não apenas a comunidade científica será exposta ao desafio de se pôr nos sapatos de um arqueólogo.

“Enquanto o público caminha pelo túnel do tempo, poderá ver, no chão e nas paredes dos corredores da exposição, respectivamente, como a partir de cacos de um jarro se pode contar a história e de que forma a terra, por meio das suas camadas, nos conta como o tempo passou.” O espectador chega a um cenário que reproduz, em detalhes, um laboratório de arqueologia, com seus instrumentos, microscópios, etc. “Será a chance de as pessoas entenderem como funciona o nosso trabalho”, avisa Paula.

No fim do túnel, uma cobra. Ou melhor, a reprodução do esqueleto da mítica Cobra Grande, que, narra a lenda indígena, nadava pelo Amazonas e a cada vez que tirava a sua cabeça fora da água criava um novo povoado. É a ciência se reencontrando com o universo cosmogônico. Mas com razão de ser. “Para todos os momentos da mostra havia um acervo disponível, menos para a Amazônia. Após pensarmos a razão, vimos que a explicação estava no caráter daquelas populações, uma marca, aliás, que permanece em vigor: são povos filosóficos, míticos e nisso reside o seu fascínio”, analisa. “A interação entre sociedade e natureza se fazia por meio do mito. Daí, então, a Cobra Grande que fecha a mostra. Também uma forma de nos lembrar de que, para aquelas populações, não houve uma ruptura tão grande entre o passado colonial e o presente”, fala. Daí, igualmente, o prazer de se fazer a mostra em Brasília. “A capital é um espaço de reunião de raças, local ideal para que os vários tipos de brasileiros possam se reconhecer numa herança passada comum”, completa. Mesmo para quem não nasceu há, no mínimo, 10 mil anos atrás.

Tese analisa tendência de teatralização das exposições
A imagem que ilustra esta página é um exemplar tímido de uma série de recursos cênicos usados na mostra “Brasil + 500 Anos”, que comemorou os 500 anos dos descobrimentos no ano passado. Paredes coloridas, intervenções feitas por meio de objetos e até a criação de um ambiente especial, como foi o módulo de arte barroca – em que milhares de flores de papel feitas por presidiários ladeavam santos e estátuas -, são reflexo de uma tendência mundial: a dramatização das exposições de arte.

O assunto, embora tenha ganhado evidência junto ao público a partir daquela mostra, já vinha sendo analisado pela professora Lisbeth Rebollo Gonçalves desde 1994, quando ela assumiu a direção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Feito com apoio do programa USP/Cofecub, um convênio realizado entre a USP e o governo francês, o projeto incluiu palestras sobre o assunto, realizadas com apoio da Fapesp em 97, 98 e 99, e ainda a realização de duas mostras no MAC-USP, “Modernismo, Paris – Anos 20” (95) e “Arte e Paisagem: A Estética de Roberto Burle Marx” (97). Em junho, o resultado da extensa pesquisa realizada por Lisbeth foi apresentado na defesa de sua tese de livre-docência, “Entre Cenografias: O Museu e a Exposição de Arte no Século XX”, na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). A professora pretende transformar o trabalho em livro.

Colocando sua lente de historiadora da arte sobre o assunto, Lisbeth fez um retrospecto de como a cenografia foi tratada em exposições de arte desde o início do século 20. Conforme ela demonstra, os salões de arte do início do século ocorriam em grandes palácios. Os quadros e esculturas eram expostos aleatoriamente, nem sempre obedecendo à prerrogativa de isolar cada obra, para sua melhor apreciação.

Foi em 1939, com a inauguração do então novo prédio do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que surgiu o conceito de “cubo branco”, em que os quadros são pendurados na altura dos olhos do espectador em ambientes completamente neutros. “Esse conceito revolucionou a forma de ver a arte moderna e a própria história dessa arte”, comenta a pesquisadora. Embora ainda seja referência para a maior parte do público de museus, o cubo branco passou a ser revisto a partir de 1968, após a chamada “revolução romântica” da França. “Os museus começaram a repensar o seu papel”, diz a professora.

Tudo começou com a inauguração do Centro Georges Pompidou, em Paris, em 1977. O Beaubourg, como ficou conhecido, marcou o início de uma era em que os museus queriam popularizar o acesso à arte. Hoje, conforme diz Lisbeth, o cubo branco e a dramatização são recursos usados pela museologia nos quatro cantos do mundo. “Conforme a opção do curador, um ou outro recurso pode ajudá-lo a expressar o que quer com a mostra, principalmente quando ele usa a dramatização”, diz Lisbeth. Para ela, a cenografia nas exposições de arte faz com que o espectador se sinta um ator dentro do palco.

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