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Física

O relevo da memória

Equipe de Pernambuco elucida um fenômeno essencial dos computadores

EDUARDO CESARDisco rígido: rugosidade entre as camadas metálicas determina a capacidade de armazenar informaçõesEDUARDO CESAR

Os computadores realizam uma de suas habilidades básicas – o armazenamento de informações – sem que se consiga entender exatamente como. Mas houve um avanço. Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) explicou um fenômeno essencial para o funcionamento das novas cabeças de leitura dos discos rígidos (hard disks), que, embora descoberto há 40 anos e usado há três, sobrevivia com escassa fundamentação teórica.

A equipe coordenada por Sergio Rezende, do Departamento de Física da UFPE, comprovou que a rugosidade tem uma importância crucial na interação entre as camadas metálicas da cabeça de leitura do disco – é essa interação que determina, diretamente, o desempenho dos computadores. A descoberta permite compreender melhor o fenômeno que viabiliza a compactação de informação num momento em que, no mundo todo, buscam-se memórias com maior capacidade, mais rápidas e de menor consumo de energia.

Como um pião
A ponta das cabeças de leitura do disco rígido usadas atualmente, tecnicamente chamadas de magnetorresistivas, é um conjunto de camadas metálicas de poucos átomos. Como em um sanduíche, são intercaladas: uma primeira, feita de material ferromagnético (normalmente, uma liga de ferro e níquel ou cobalto), se sobrepõe a uma segunda, de material antiferromagnético (geralmente, óxido de níquel), e assim sucessivamente. Na superfície e no interior de cada camada, os elétrons agem como um pião: giram em um sentido, como os ponteiros de um relógio, ou no sentido oposto.

Desse movimento de rotação do elétron, que os físicos chamam de spin , nasce o campo magnético – ou magnetização – que permite o armazenamento de informações da memória permanente do computador, gravada em cada ponto das trilhas dos discos rígidos, que também são feitos de camadas de materiais magnéticos. Em cada ponto, a magnetização em um sentido representa o bit 0, e no outro o bit 1 – esse é o código binário, a partir do qual todo texto, gráfico ou imagem são construídos. Já as informações da memória rápida, chamada RAM (random access memory ou memória de acesso randômico), são armazenadas em semicondutores na forma de carga elétrica positiva ou negativa, representando 0 ou 1.

Limites ampliados
Para entender melhor a pesquisa desse grupo de Pernambuco, é inevitável recorrer a um pouco de história e a mais algumas explicações. Até os anos 90, a leitura do disco rígido era feita por um processo físico chamado indução magnética: a magnetização do bit produzia uma corrente elétrica na cabeça de leitura, depois processada, por outros dispositivos do computador. Era um recurso limitado porque a área de armazenagem tinha de ser grande para ser interpretada pela cabeça de leitura.

Nos anos 90 ocorreu um salto, com as novas cabeças de leitura, chamadas magnetorresistivas, e com elas foi possível diminuir a área e, assim, aumentar a capacidade de armazenamento de informações dos discos rígidos. Dessa virada tecnológica, por sinal, participou outro brasileiro: Mário Baibich, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1989, quando estava na França, Baibich descobriu a magnetorresistência gigante, o fenômeno que deu origem às atuais cabeças de leitura dos discos rígidos e que associa a resistência do material ao campo magnético criado pelo bit de informação do disco rígido.

Ao comprovar a importância da rugosidade, Rezende chegou, de certo modo, a resultados perseguidos pelos pesquisadores teóricos da IBM, a empresa que desenvolveu o primeiro disco rígido em 1956 e não parou de buscar como ampliar a memória desses dispositivos.

Nesse tempo, o conhecimento acumulado sobre as propriedades das camadas ferromagnéticas e antiferromagnéticas permitiu que a capacidade de armazenamento aumentasse 3 milhões de vezes: dos iniciais 2 kbits por polegada quadrada no primeiro disco para 20 gigabits por polegada quadrada na versão mais recente, de 1999. Mesmo assim, havia apenas hipóteses sobre como funcionava a interação entre as camadas – fenômeno conhecido como exchange bias ou polarização por intercâmbio – permanecia carente de sustentação teórica e experimental.

“Os cálculos teóricos de Alex Malozemoff, da IBM, mostraram em 1987 que a rugosidade poderia ser a responsável pela enorme redução do campo magnético de exchange bias, originado pela interação dos elétrons superficiais entre as camadas ferromagnéticas e antiferromagnéticas”, comenta Rezende. “Nossas experiências e o modelo teórico que desenvolvemos comprovam que é esse realmente o caso.” O grupo de Pernambuco apresentou as medidas experimentais em novembro do ano passado na Conferência Anual de Magnetismo, realizada em Seattle, Estados Unidos, e publicou os estudos teóricos em dois artigos recentes, um em março deste ano na Physical Review B e outro em abril no Journal of Applied Physics.

Embora não se achasse que fosse tão importante, a rugosidade entre as camadas já era conhecida. É uma propriedade ainda inevitável das camadas magnéticas que forma a memória permanente dos computadores, já que atualmente é impossível produzir uma superfície absolutamente plana. O que a um simples olhar parece perfeitamente liso assume, na escala atômica, contornos que lembram os altos e baixos de uma cadeia de montanhas. Duas camadas são como suas cadeias montanhosas encaixando-se perfeitamente, já que o processo de fabricação elimina qualquer espaço vazio entre elas.

Os estudos da equipe de Rezende detalham exatamente o modo pelo qual a rugosidade – a variação de relevo – interfere na interação entre as camadas. É por causa desses altos e baixos que os elétrons da camada ferromagnética interagem ora com elétrons com spin num sentido (situados, digamos, num pico da cadeia montanhosa), ora com elétrons com spin em outro sentido (no vale) da camada oposta. O problema é que a rugosidade causa fenômenos indesejados, que os físicos denominam comportamentos complexos, originados por desordens físicas, conhecidas como frustrações, agravadas pelas variações de temperatura. “Esses fenômenos eram observados há anos e havia especulações sobre suas causas,mas não um comprovação como agora”, comenta Rezende.

Sem perdas
A rugosidade interfere também, já num plano macroscópico, na redução da interação magnética entre as camadas e, em última instância, no desempenho da cabeça de leitura. Seu efeito não é nada desprezível: o campo efetivo que o filme antiferromagnético cria sobre a magnetização do filme ferromagnético é 100 a 1000 vezes menor que o campo previsto para uma interface perfeitamente plana. “O desafio agora é eliminar a rugosidade”, diz Rezende. “Se, usando um método ainda não conhecido, alguém conseguir fazer uma camada dupla ferromagnética e antiferromagnética com interface perfeitamente plana, o campo que prende a magnetização da camada ferromagnética será muito maior.” Em conseqüência, o computador vai funcionar melhor.

A compreensão da interação entre as camadas poderá ganhar aplicações ainda mais refinadas. O exchange bias, junto com outro fenômeno, o chamado tunelamento magnético, é um dos conceitos essenciais na construção de uma memória RAM magnética e duradoura, não mais volátil como a usada hoje nos semicondutores. A IBM anunciou há dois anos o protótipo dessa nova memória, com a qual se pretende algo simples: um computador que ao ser desligado abruptamente não perca mais informações da tela e, ao ser ligado outra vez, retome o trabalho no exato ponto em que estava.

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