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Fisiologia

Ritmo perdido

Falha em terminais de neurônios mantêm o coração acelerado

Um modelo animal recém-concluído na Universidade de São Paulo (USP), baseado em camundongos geneticamente modificados, indica uma das causas da insuficiência cardíaca grave – distúrbio em que o coração deixa de bombear o sangue de forma eficiente. Com o tempo, o modelo poderá acenar com caminhos para a busca de alternativas de tratamento e prevenção desse problema – uma das formas de doenças do coração, que matam no mundo duas vezes mais que todos os tipos de câncer juntos: cerca de 15 milhões de pessoas por ano – e, apenas no Brasil, 250 mil.

Patricia Chakur Brum, coordenadora do estudo, aceito para publicação na revista American Journal of Physiology, desativou nos camundongos duas proteínas que regulam os batimentos cardíacos e se localizam nos terminais de neurônios situados próximos do coração – os receptores alfa 2a e alfa 2c adrenérgicos, assim chamados por controlar a liberação do neurotransmissor noradrenalina, essencial à regulação da atividade do músculo cardíaco. O enfoque é inovador por interferir somente na atividade dos terminais nervosos, sem alterar as proteínas produzidas no interior do músculo cardíaco.

No ano passado, durante o pós-doutoramento na Universidade de Stanford-Beckman, nos Estados Unidos, Patricia suspeitou que a falta conjunta das duas proteínas poderia causar problemas ao coração. “Já se sabia que o receptor alfa2a-adrenérgico inibia a liberação de noradrenalina, mas sua falta não causava insuficiência cardíaca”, diz ela. “Testei então o que aconteceria se os dois receptores não funcionassem.” Ela suprimiu – ou nocauteou, como dizem os geneticistas -, no genoma dos camundongos, os genes a partir dos quais eles são feitos. Como resultado, os animais apresentaram insuficiência cardíaca grave semelhante à de seres humanos. “A maioria das pessoas com insuficiência cardíaca crônica também apresenta um aumento excessivo da atividade do coração, causada pela liberação de quantidade maior de noradrenalina no músculo cardíaco”, diz ela. No experimento, dos 90 animais estudados, todos com os receptores nocauteados, metade morreu após seis meses de vida.

Patricia completou a descoberta da importância dos dois receptores alfa com a implantação, no laboratório em quefez o pós-doutorado, de um modelo de cultura das células nervosas simpáticas e das do músculo cardíaco. “Esse modelo vai facilitar bastante o estudo dos receptores que atuam fora ou mesmo dentro do coração”, comenta Brian Kobilka, chefe do laboratório na Universidade de Stanford em que a pesquisadora brasileira trabalhou. Com essa técnica, Patricia descobriu que os receptores alfa 2a e alfa 2c se encontram em pontos diferentes dos terminais nervosos, em vez de se concentrarem em apenas um local, como se imaginava. Esse fato sugere mecanismos distintos de regulação do nervo e das células do coração.

Evitando excessos
Para entender os avanços desse trabalho, é preciso olhar além do coração e entrar nos meandros do sistema nervoso. É um sistema formado por dois grandes braços: o sistema nervoso central (SNC), composto pelas estruturas neurais dentro do crânio e da coluna vertebral, e o sistema nervoso periférico (SNP), constituído pelos nervos espalhados pelo corpo. O primeiro controla nossas funções vitais, como os batimentos cardíacos e a respiração, e o segundo conduz as informações para o SNC tomar as ações necessárias ao andamento da vida diária.

Quando sentimos medo, diante de uma situação de perigo, os terminais nervosos simpáticos, que fazem parte do sistema nervoso periférico, situados a milímetros do coração, liberam no músculo cardíaco uma substância chamada noradrenalina. A noradrenalina é produzida tanto nas terminações dos nervos quanto nas glândulas supra-renais – localizadas sobre os rins, que fabricam também a adrenalina – com efeitos similares: ambas preparam o corpo para fugir ou lutar, aumentando os batimentos cardíacos e o ritmo da respiração, de modo que o oxigênio transportado pelo sangue chegue rapidamente aos músculos. Quando produzida pelos terminais nervosos, a noradrenalina age como neurotransmissor, repassando informações de um neurônio a outro, e em segundos chega ao músculo cardíaco, acelerando os batimentos. Nos camundongos com os receptores desativados, a quantidade de noradrenalina liberada no coração foi o dobro da encontrada nos camundongos normais.

Os receptores alfa e a noradrenalina trabalham em conjunto, como se fossem um par de chave e fechadura: a noradrenalina, quando liberada nos terminais nervosos, liga-se aos receptores alfa 2a e alfa 2c, que, por sua vez, inibem a liberação de mais noradrenalina, evitando que sua concentração chegue às alturas. Na falta dos dois receptores, não há como deter a liberação exacerbada de noradrenalina. Conseqüência: ocorre um aumento exacerbado na atividade do músculo cardíaco, gerando as chamadas cardiomiopatias graves, que podem levar à insuficiência cardíaca. Foi exatamente esse desgaste do músculo cardíaco que se verificou nos camundongos usados no experimento, nos quais se bloqueou a produção dos receptores.

O trabalho de Patricia inovou ao testar os efeitos da falta de receptores situados fora do coração: os estudos anteriores concentravam-se na alteração da expressão de receptores localizados no órgão, como os beta 1 e beta 2 adrenérgicos. Segundo a pesquisadora, os trabalhos com receptores internos do coração apresentam limitação, pois é difícil distinguir o efeito da falta de uma proteína na regulação dos batimentos cardíacos, pois outras proteínas produzidas pelo órgão podem reagir a essa falta e compensar o efeito. Reinstalada desde o início do ano na Escola de Educação Física e Esporte da USP, Patricia prepara-se para estudar, em camundongos com os receptores desativados – algo impossível de ser feito em humanos -, como as alterações genéticas se relacionam com a atividade física – especificamente, quais moléculas são acionadas, desativadas ou substituídas. “A atividade física regula os batimentos cardíacos, mas ainda não conhecemos profundamente os mecanismos moleculares e celulares que fazem isso acontecer”, comenta Patricia.

O Projeto
Papel dos Receptores Alfa2-Adrenérgicos, Subtipos a e c, na Regulação da Liberaçãode Neurotransmissor dos Terminais Nervosos Simpáticos Cardíacos
Modalidade
Bolsa de pós-doutorado no exterior
Coordenadora
Patricia Chakur Brum – Escola de Educação Física e Esporte da USP
Investimento
R$ 108.619,47

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