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Química

O triunfo dos canhotos

Estudo da Unicamp explica como os aminoácidos se organizam no momento de formar as proteínas de qualquer ser vivo

MIGUEL BOYAYANNos cilindros, as moléculas são isoladas, pesadas e identificadas: laboratório completo de análises clínicasMIGUEL BOYAYAN

A incessante busca de explicações científicas para a origem da vida apenas começou com Louis Pasteur, o químico francês que, há um século e meio, provou que os seres vivos nascem necessariamente de sua própria espécie – no século 19 acreditava-se que fungos, insetos e escorpiões poderiam surgir espontaneamente do lixo ou de animais em decomposição. As dúvidas sobre a origem da vida que hoje persistem remetem, curiosamente, a uma propriedade química descoberta pelo próprio Pasteur: há moléculas formadas pelos mesmos elementos e ligações químicas, mas se apresentam em dois tipos distintos, que apontam para direções opostas – um para a esquerda, outro para a direita -, como se estivessem diante da própria imagem refletida no espelho.

Um fenômeno que envolve essas formas espelhadas e ainda intriga os cientistas é a formação das proteínas, moléculas formadas por blocos menores, os aminoácidos, e essenciais a qualquer ser vivo. Fazem parte da estrutura dos cromossomos, controlam a expressão dos genes, viabilizam a divisão celular, regulam a produção de energia, atuam na diferenciação das células que vão formar os tecidos, participam do desenvolvimento embrionário e determinam, enfim, como os organismos vão se formar, crescer e morrer.

Pois da formação de proteínas participam apenas os aminoácidos canhotos, quimicamente chamados levógeros ou simplesmente L. As moléculas destras, conhecidas como dextrógeros ou D, são simplesmente eliminadas do jogo, embora as duas formas se apresentem juntas e em proporções iguais na natureza. Mas como os aminoácidos se separam, antes de formarem as proteínas, e por que apenas os canhotos triunfam? O químico Marcos Eberlin, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tem algumas respostas para a primeira parte da pergunta.

Por meio da espectrometria de massas, uma técnica de análise química que permite visualizar com precisão o universo molecular, as equipes de Eberlin e do norte-americano Robert Cooks, da Universidade de Purdue, nos Estados Unidos, detectaram um processo nunca antes observado: a atração de aminoácidos canhotos (L) e destros (D) por seus semelhantes. Essa forma de organização, que permite compreender a separação entre essas moléculas no momento anterior à síntesede proteínas, deve-se principalmente à geometria: os encaixes são tão seletivos que impedem que os aminoácidos L se misturem com os D. Tanto os aminoácidos canhotos e destros formam estruturas cilíndricas, diferenciadas apenas pelo fato de serem espelhadas, com oito aminoácidos do mesmo tipo.

São os chamados octâmeros, como o da ilustração desta página, que representa a serina, um dos 20 aminoácidos essenciais que, em diferentes combinações, formam milhares de proteínas das plantas e dos animais. Os octâmeros conectam-se entre si por meio das chamadas ligações hidrogênio, como as que mantêm unidas as moléculas de água, e formam estruturas cada vez maiores. “Foi literalmente um achado, um primeiro passo para entender por que apenas as moléculas L participam da formação das proteínas”, comenta Eberlin, que coordena o Laboratório Thomson de Espectrometria de Massas do Instituto de Química.

As informações fornecidas pelo espectrômetro e as simulações computacionais realizadas por Fábio Gozzo, químico da equipe do Laboratório Thomson, permitem ver os aglomerados de serinas como se as moléculas estivessem brincando de roda, dando-se apenas a mão esquerda, no caso dos L, com os encaixes ajustados nas laterais da estrutura cilíndrica. Se um dos membros sai do grupo e o substituto só pode dar a mão direita, quebra-se o encadeamento. “O processo de seleção química dos aminoácidos é uma conseqüência desse arranjo tridimensional perfeito”, ressalta Eberlin. “Todas as moléculas apontam para a mesma direção. Se alterar a dinâmica, o círculo não se fecha com perfeição. Por isso é que as diferentes são excluídas.”

Outra surpresa foi observar que o cilindro de serina L, colocado em contato com as formas L e D de outro aminoácido, capturava somente as moléculas L. Descrito em um artigo publicado em maio na edição internacional da revista alemã Angewandte Chemie, esse processo – também inédito – ganhou o nome de transmissão de quiralidade. Quiralidade (de chiros, mão, em grego) é o fenômeno descrito por Pasteur com o ácido tartárico: as moléculas, quando sobrepostas, formam um desenho parecido com o que aparece quando colocamos uma mão ao lado da outra, com a palma e os polegares voltados para a frente. “Observamos também um mecanismo inédito de propagação de quiralidade da serina para outros aminoácidos naturais quirais, como cisteína, asparagina, leucina, aspartato e metionina”, informa Eberlin.

Poluentes e sangue
As descobertas só se viabilizaram com os aperfeiçoamentos da espectrometria de massas, uma técnica versátil, aplicada, por exemplo, em exames antidoping, no controle de qualidade de combustíveis e até mesmo no seqüenciamento do conjunto de proteínas de um organismo (proteoma). Com ela, a equipe de Eberlin não desvenda apenas a organização das moléculas essenciais à vida. Também amplia o uso da técnica, com sucessivas inovações. Uma das mais recentes é um método de análise de poluentes, derivado da espectrometria de massas convencional, mas com uma inovação: usa uma fibra recoberta de silicone que, depois de uma exposição de apenas um minuto, absorve os poluentes do ar, do vapor e de líquidos. A fibra facilita a captação, transporte e avaliação das substâncias, depois transferidas para o espectrômetro, no qual são examinadas. A descrição dessa técnica, chamada espectrometria de massas por introdução via fibra (Fims), será publicada em breve na Analytical Chemistry.

A Fims é a filha mais nova de outras técnicas para análise de poluentes desenvolvidas no próprio laboratório. A primeira delas é a espectrometria de massas por introdução via membrana com aprisionamento criogênico (CT-Mims), que se vale de uma membrana de silicone acoplada ao espectrômetro para separar os poluentes e reter a água. Esse processo aumenta a sensibilidade em até cem vezes e em poucos minutos se conhece a concentração em água de clorofórmio, benzeno e tolueno, por exemplo.

Há também inovações ligadas diretamente à saúde humana. No ano passado, uma parceria com Nelci Fenalti Höehr, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, resultou no uso de uma derivação de uma técnica criada no próprio laboratório para determinar a quantidade de cisteína e de homocisteína no sangue. Os dois aminoácidos, que, em concentrações elevadas, representam fator de risco para doenças cardiovasculares, são capturados do plasma sanguíneo pela membrana de silicone. Nelci envia as amostras de sangue ao Instituto de Química e, em minutos, o espectrômetro dá o resultado. “Nossa meta é oferecer esse serviço como rotina no complexo hospitalar da Faculdade de Ciências Médicas”, afirma Nelci.

“Vencidas as limitações, hoje podemos trabalhar com qualquer tipo de molécula, desde as pequenas até os polímeros, sais, açúcares, peptídeos, proteínas e moléculas gigantescas como até mesmo um vírus intacto”, afirma Eberlin. Sem dúvida, um avanço e tanto para uma técnica criada no início do século passado pelo físico britânico Joseph John Thomson (1856-1940), o mesmo que inspirou o nome do laboratório da Unicamp. Indispensável nos laboratórios de química e física desde que surgiu, a espectrometria de massas permite isolar estruturas atômicas e moleculares desde que estejam isoladas, portanto em forma gasosa, e ionizadas (com carga positiva ou negativa). Desse modo, torna-se possível medir suas propriedades, como massa, ligações químicas, acidez, reatividade e estruturas.

Piloto em perigo
No início, a ordem dos procedimentos adotados durante as análises limitava as aplicações: a observação só pode ser feita quando as moléculas são volatilizadas e recebem uma carga elétrica positiva ou negativa. Esse procedimento é essencial porque só podem ser separadas ou direcionadas as moléculas cargas positivas ou negativas – as neutras fogem ao controle. Até o início da década de 90, no entanto, era preciso que a molécula primeiro vaporizasse dentro do equipamento, a uma temperatura de até 300ºC, para só depois ser ionizada. As análises se restringiam a substâncias orgânicas volatilizáveis e relativamente pequenas. Nem pensar em açúcares ou proteínas, que se decompõem quando aquecidos, antes de atingir a fase de vapor.

Para avançar, era preciso inverter a ordem – primeiro ionizar e depois volatilizar. Foi o que fez, no final dos anos 80, o químico norte-americano John Fenn, atualmente na Virginia Commonwealth University, Estados Unidos, ao criar a técnica de Electrospray, que permitiu aos pesquisadores da Unicamp e de Purdue descobrir as formas de organização dos aminoácidos. Primeiro, eles colocaram as moléculas de serina em água. Com a solução, fizeram um spray eletrolítico (uma espécie de aerossol formado por gotas minúsculas e carregadas com carga elétrica positiva ou negativa). Com o aquecimento e a evaporação da água, as gotas diminuíram de volume – e os octâmeros de serina passaram a se repelir tão fortemente, que, em determinado momento, foram literalmente ejetados das gotas para a fase gasosa – sem se decomporem, como certamente ocorreria na técnica anterior de ionização. “É um processo que tem certa semelhança ao que acontece quando um piloto de avião pressente o perigo e ejeta-se da aeronave para o espaço”, compara Eberlin.

Tanto as versões canhotas quanto as destras da serina participaram do experimento. Como ambas apresentam a mesma massa molecular, à serina L se adicionou um isótopo de carbono de massa 13, de modo a se diferenciar as duas formas. Colocadas em água, de maneira aleatória, as moléculas surpreendentemente reconhecem suas semelhantes e originam dois conjuntos de oito moléculas, os octâmeros, um contendo somente serinas D e outros reunindo apenas as L. Os pesquisadores observaram ainda a ligação entre octâmeros gêmeos, que origina estruturas que reúnem 16, depois 32 e na seqüência 64 aminoácidos – e assim sucessivamente. “Para a serina, oito é um número mágico”, afirma Eberlin.

Os avanços da espectrometria de massas poderão também solucionar a segunda parte da pergunta: por que os organismos vivos selecionam apenas o conjunto de aminoácidos esquerdos na construção das proteínas, deixando os destros apenas assistindo ao jogo? Em busca da resposta, a equipe de Arnaldo Naves de Brito, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), trabalha em colaboração com o Laboratório Thomson. Confiante e animado, Brito diz que os resultados do estudo devem ser conhecidos em breve.

A dificuldade não é apenas reproduzir o ambiente terrestre primitivo, quando a separação e a seleção teriam ocorrido pela primeira vez. O obstáculo maior são as propriedades químicas e físicas das moléculas L e D – são quase idênticas e não indicam, com clareza, os caminhos de investigação a serem seguidos. Cogita-se até mesmo outro cenário para os encaixes primordiais. “A seleção de aminoácidos podem ter ocorrido na Terra ou em outra região do universo, como meteoritos ou cometas, chegando depois aqui”, afirma Ricardo de Carvalho Ferreira, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que já na década de 50 se dedicava a estudar os sistemas quirais. Apesar das armadilhas, a tarefa pode ser gratificante. “Estamos tentando entender a arquitetura química dos seres vivos”, diz Eberlin.

O Projeto
Técnicas Modernas em Espectrometria de Massas e suas Aplicações em Química e Bioquímica (nº 00/11176-2); Modalidade Projeto temático;
Coordenador Marcos Nogueira Eberlin – Instituto de Química da Unicamp; Investimento R$ 1.211.117,27

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