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O alvo é a saúde humana

Começam os testes em seres humanos da primeira vacina gênica desenvolvida no Brasil que em laboratório se mostrou eficaz contra câncer e tuberculose

MIGUEL BOYAYANMycobacterium tuberculosis cultivado em laboratório: transmitida pelo ar, bactéria mata 2 milhões de pessoas por anoMIGUEL BOYAYAN

No máximo em três meses, começa um capítulo decisivo da história da primeira vacina gênica desenvolvida no Brasil: os testes em seres humanos. A formulação criada e aperfeiçoada ao longo de dez anos pelo bioquímico Célio Lopes Silva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, originalmente para prevenção e tratamento da tuberculose, será aplicada em um grupo restrito de 18 pessoas, em fase avançada de câncer de cabeça e pescoço, que não respondem mais a nenhum outro tratamento.

Nessa fase, cuja execução foi aprovada em agosto pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), pretende-se avaliar se o composto apresenta efeitos tóxicos, ainda não verificados em animais de laboratório, qual a melhor dosagem e se realmente pode conter o avanço de tumores. “Os resultados, se positivos, devem servir para guiar outros estudos clínicos (em humanos) da vacina gênica”, comenta Silva.

Planejada detalhadamente ao longo deste ano, a próxima etapa da pesquisa pode representar uma evidência mais concreta de que essa vacina de DNA, como também é chamada, funciona como medicamento, atuando quando uma doença já se instalou no organismo, e não apenas como uma tradicional vacina, de caráter preventivo. Na verdade, os estudos mais recentes nessa área ampliam o significado da palavra vacina, que hoje não representa só algo que evita uma doença, mas também algo que pode curar.

Os resultados, à medida que surgirem, provavelmente depois de seis meses do início do teste, podem ajudar a viabilizar uma nova abordagem de tratamento de câncer, com menos efeitos indesejados que as tradicionais rádio e quimioterapia. Em outros países, há testes clínicos em andamento com vacinas gênicas contra Aids, hepatite e malária, além de vários tipos de câncer. Segundo Kald Ali Abdallah, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP em São Paulo e um dos coordenadores do teste, não há relatos de que tenham surgido reações graves além de febre moderada e inchaço no local da aplicação, típicas de qualquer vacina.

Os próximos testes criam expectativa também por outra razão: se bem-sucedidos, podem comprovar que a formulação sobre a qual Silva trabalha intensamente há dez anos tem um raio de ação maior do que o inicialmente buscado: proteger contra o Mycobacterium tuberculosis, a bactéria causadora da tuberculose humana, transmitida pelo ar, que a cada segundo infecta uma pessoa. Instalado em um terço da população mundial, sobretudo nos países pobres, mata 2 milhões de pessoas – só no Brasil, há 130 mil novos casos por ano. Resultados preliminares obtidos com animais de laboratório indicam que a vacina, por meio de pequenas variações na composição e na dosagem, pode ser eficaz não só contra tuberculose, mas também contra outros tipos de câncer, como o de bexiga e de pele, além de leishmaniose e, em animais, tuberculose bovina.

Além da liberação para testes em seres humanos, os pesquisadores do laboratório de vacinas gênicas, coordenado por Silva, conseguiram uma nova formulação da vacina, que torna viável a aplicação em dose única, simplificando o trabalho de médicos e veterinários, e não mais em três, como a versão anterior. Com a nova composição, uma dose dez vezes menor do que a adotada antes apresenta o mesmo efeito protetor contra as bactérias que causam a tuberculose, de acordo com os resultados publicados este mês na Gene Therapy, uma das revistas internacionais mais importantes dessa área.Tanto na fórmula antiga, com o DNA puro, ou na mais recente, em que o DNA se encontra envolvido por outras moléculas, a vacina prepara o organismo para ele próprio resolver os problemas ou, de modo mais preciso, funciona como um regulador do sistema imunológico – um imunomodulador.
Por essa razão é que, a princípio, pode ser aplicada em mais de uma doença, para prevenir ou para curar. Uma das habilidades mais importantes da vacina estudada pelo grupo de Ribeirão Preto é agir diretamente sobre os macrófagos, células essenciais do sistema de defesa, que coordenam a ação de outras células – justamente nos macrófagos é que os Mycobacterium tuberculosis se instalam e permanecem latentes até entrar em ação, num momento de fragilidade do organismo. Ao acionar os macrófagos, a vacina de DNA induz a produção de moléculas chamadas interferon gama, que regulam um dos tipos de respostas do sistema imunológico contra agentes estranhos ao organismo ou contra células tumorais, além de estimular os linfócitos que eliminam as células infectadas.

Embora a nova formulação seja promissora, os próximos testes vão avaliar a eficácia da formulação mais simples, com o DNA puro, mais bem estudada, que será aplicada diretamente no tumor a ser tratado nos próximos testes – o chamado carcinoma epidermóide, responsável pela quase totalidade dos cerca de 11 mil casos de câncer de cabeça e pescoço que surgem por ano no Brasil. Quatro equipes da Faculdade de Medicina da USP vão trabalhar nessa próxima etapa: duas delas, coordenadas por Abdallah e Jorge Elias Kalil, cuidando da avaliação clínica dos indivíduos selecionados e do acompanhamento dos eventuais efeitos colaterais da vacina;e as outras duas, lideradas por Alberto Ferraz e Pedro Michaluart, atendo-se às análises da ação do composto diretamente sobre o tumor. “Bastam 50 miligramas da vacina para começarmos os testes”, diz Abdallah. Mas não é fácil obter o que parece tão pouco no atual estágio da pesquisa.

Silva sabe que, para começar logo os testes em seres humanos e delimitar com precisão as reais aplicações em outras doenças além da tuberculose, tem de encontrar novas formas de produzir mais vacina. Pelo menos mil vezes mais, saltando dos atuais miligramas para alguns gramas por semana, e com grau de pureza recomendado internacionalmente para uso humano, de modo a atender às chamadas condições de GMP (good manufacturing practices ou boas práticas de fabricação), que exigem um ambiente ultralimpo, com menos partículas no ar do que uma sala de cirurgia. “Não é fácil”, diz o pesquisador da USP. “Temos agora de dominar os processos tecnológicos.” A proporção entre os reagentes, o tempo de reação e a produtividade costumam mudar quando a produção deixa a bancada de laboratório e adquire uma escala maior.

No início de outubro, pouco antes de viajar à Índia acompanhando uma missão do governo federal de intercâmbio de pesquisa e de produção de medicamentos, Silva enviou ao Ministério da Saúde o plano do que ele chama plataforma de desenvolvimento tecnológico. Trata-se de um projeto orçado em R$ 20 milhões que inclui a produção e os testes da vacina de DNA e de outros medicamentos contra tuberculose, pesquisados no âmbito da Rede TB, uma associação de especialistas criada no ano passado para combater essa doença. Como resultado da integração propiciada por essa rede de pesquisas, o laboratório da USP avaliou 600 extratos de plantas contra a tuberculose e verificou que pelo menos dez são promissores como potenciais alternativas contra o também chamado bacilo de Koch, em homenagem a seu descobridor, o bacteriologista alemão Robert Kock (1843-1910, Nobel de 1905).

Por enquanto, Silva aguarda a liberação de um espaço na Faculdade de Medicina da USP para montar fermentadores, centrífugas, extratores e purificadores de DNA e iniciar a produção em escala piloto, com uma produtividade até mil vezes maior que a atual. Quando os equipamentos entrarem em operação, provavelmente no início do próximo ano, a pesquisa nascida na universidade começará a se transformar em um produto.

Dessa etapa participa uma empresa de base tecnológica, a RDBiotec, criada em maio justamente para ampliar a escala de produção, nas melhores condições possíveis de tempo e custo, por meio de um projeto financiado pela FAPESP. Um dos diretores da RD é o pesquisador mineiro José Maciel Rodrigues Junior, que no final do ano passado pediu demissão do cargo de professor de tecnologia farmacêutica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para se dedicar em tempo integral ao desafio de viabilizar a vacina de Célio Lopes, com quem, é verdade, já trabalhava havia alguns anos. Foi Rodrigues quem propôs, em 1997, o caminho que levaria à atual formulação da vacina.

Do novo laboratório é que sairá a vacina a ser aplicada nos testes em seres humanos, que começam com câncer por já haver equipes e instalações adequadas. Silva pensa também, evidentemente, nos testes contra tuberculose, mas sabe que são mais complexos: exigem infra-estrutura e condições de segurança mais refinadas, para evitar a transmissão dos bacilos resistentes a qualquer medicamento, que causam a tuberculose multirresistente, contra a qual a vacina seria inicialmente aplicada. Se funcionar com a modalidade mais grave da doença, que no Brasil atinge cerca de 1% dos infectados, é quase certo que a vacina de DNA do grupo de Ribeirão Preto seja eficaz contra as formas menos graves de tuberculose e se firme como uma alternativa à vacina mais usada contra a doença, a BCG (Bacilo Calmette-Guerin), que vem perdendo eficácia desde que começou a ser usada, em 1921.

Versatilidade
Os estudos mais aprofundados em bovinos, já planejados com os pesquisadores da Escola de Veterinária da UFMG, também dependem de mais vacina. “Os primeiros testes indicam que a vacina pode deter a ação de qualquer Mycobacterium“, conta Silva. Desse modo, poderia evitar o sacrifício dos animais, recomendado pelo Ministério da Agricultura quando é detectada a tuberculose bovina, causada pelo Mycobacterium bovis. Ainda sem cura, essa doença afeta quase 14 milhões de animais do rebanho nacional, de cerca de 170 milhões de cabeças.

Segundo Rodrigues, há resultados promissores também contra leishmaniose: num ensaio realizado com um grupo de pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), camundongos que receberam a vacina – por via nasal – conseguiram prevenir-se contra essa doença, causada por protozoários do gênero Leishmania.

Em processo de patenteamento no Brasil e no exterior, a nova formulação da vacina contém três componentes básicos. O primeiro é o gene que tem a receita da produção da proteína hsp65 (hsp significa heat shock protein ou proteína de choque térmico, e 65 indica seu peso molecular, 65 kilodáltons; dálton é a unidade de massa atômica). Produzida pela bactéria em condições de estresse – quando invade um organismo, por exemplo -, essa proteína funciona como antígeno, molécula que aciona as respostas do sistema imune, no caso, contra o bacilo. Foi com esse gene, integrado a um plasmídeo (fragmento de DNA em forma de anel), que Silva obteve os resultados preliminares da primeira vacina gênica contra tuberculose no mundo, anunciados em 1994 num congresso da Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra.

Na versão atual da vacina, o gene encontra-se cercado, primeiramente, por moléculas de um glicolipídeo – um açúcar associado com gordura (lipídeo) – chamado dimicolato de trealose ou DMT, incorporado como adjuvante (auxiliar) da vacina por ser encontrado na parede externa das microbactérias e acionar os mecanismos de defesa do sistema imune. Tanto o gene quanto o glicolipídeo ocupam as cavidades de um polímero (molécula com uma mesma estrutura repetida muitas vezes) chamado ácido poliláctico-co-glicólico ou, para abreviar, PLGA. O polímero forma microesferas com cerca de 3 micrômetros (um micrômetro é a milionésima parte do metro) – foi esse o material que Rodrigues sugeriu a Silva incorporar na vacina, há cinco anos. Já produzidas em Ribeirão Preto, as microesferas levam o gene diretamente para o alvo – no caso da tuberculose, os macrófagos infectados – e, aparentemente, também protegem o DNA do ataque de enzimas que normalmente o degradam assim que entra nas células.

A nova formulação guarda também algumas casualidades. Em 1998, ainda buscando os caminhos que levariam às conquistas mais recentes, Silva encontrou na revista Vaccine o relato de pesquisadores japoneses que haviam usado o glicolipídeo em associação com o vírus recombinante da hepatite B. Não precisou estudar quase nada para adotar essa molécula, cujas propriedades havia detalhado há 20 anos, quando ainda fazia o mestrado no Instituto de Química da USP, em São Paulo. Tempos difíceis, aqueles. Silva trabalhava como técnico químico durante o dia, aproveitando as folgas para cuidar do mestrado, e à noite assistia às aulas. Mas não foram esses os maiores desafios desse paulista nascido num bairro rural de Leme.

Ainda criança, o futuro autor da única proposta de vacina gênica contra tuberculose selecionada pela OMS colheu cana, milho e algodão, ajudando os pais na lavoura. Mais tarde, já adolescente, trabalhou como ajudante de pedreiro e vendedor de tecidos, mas sem perder o interesse pelos estudos, que lhe garantiu uma vaga na USP, aos 18 anos. Já engrenado na carreira científica, em 1990, durante o pós-doutoramento realizado no Instituto Nacional de Pesquisa Médica, em Londres, é que conheceu o gene da proteína hsp65.

Não teve escolha: era o único disponível no laboratório e um dos poucos antígenos de bactéria já clonados. O gene que serviu para Silva ingressar na pesquisa de tuberculose era, na verdade, de outra bactéria, o Mycobacterium leprae, que causa a lepra e, como se descobriu mais tarde, apresenta 90% de semelhança com o M. tuberculosis. A pesquisa avançou, embora persistisse a dúvida se não seria melhor usar o equivalente do próprio bacilo da tuberculose. Só recentemente se descobriu que o caminho inicial é que estava certo. Num artigo publicado em abril na Biochemistry, Silva e Antonio Camargo, do Instituto Butantan, demonstraram que o gene que funciona melhor é o da proteína de M. leprae.

Ajustada por Silva, Rodrigues e Karla de Melo Lima, aluna de mestrado de Rodrigues na UFMG e de doutorado de Silva na USP, essa formulação reduziu dez vezes a quantidade de DNA do plasmídeo: uma única dose com 30 microgramas de DNA apresentou o mesmo efeito que três doses de 100 microgramas de DNA da versão anterior, feita apenas com o plasmídeo. Os pesquisadores acreditam que o tripé gene, glicolipídeo e microesfera pode também funcionar contra outras doenças trocando-se o antígeno, ou para estender o estímulo imunológico, com diferentes combinações de microesferas que liberem o DNA de tempos em tempos, em doses espaçadas. Segundo Silva, os testes em camundongos demonstraram a ação da vacina até nove meses após a aplicação. “Aparentemente”, diz Karla, “podemos desenvolver outras estratégias para as microesferas se degradarem em tempos diferentes, combinando uma ação mais rápida e outra mais lenta.”

Auto-imunidade
Silva não teme o risco de o gene empregado na vacina que ele desenvolveu integrar-se ao genoma dos indivíduos tratados, como pode acontecer na abordagem clássica da terapia genética: no final de setembro, noticiou-se que um medicamento à base de retrovírus desenvolvido na França para tratar um grave problema imunológico, a chamada doença da bolha, causou leucemia em um grupo de pacientes. “Mesmo usada como medicamento, essa vacina não apresenta os mesmos riscos que as outras terapias gênicas”, afirma o pesquisador da USP. “Já provamos que o gene não se incorpora no genoma das pessoas tratadas.” Sua maior preocupação era outra: o risco de a vacina levar a um ataque ao próprio corpo, a chamada auto-imunidade.

A princípio, o gene da hsp65 do Mycobacterium, por ser parecido (50% de semelhança) com o de uma das proteínas dos animais vertebrados em geral, poderia gerar um mecanismo pelo qual o sistema imunológico veria o próprio corpo como estranho – é o que acontece nas doenças auto-imunes, como artrite, um dos tipos de diabetes e esclerose múltipla. A bioquímica gaúcha Alexandrina Sartori, pesquisadora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, que faz o pós-doutoramento em Ribeirão Preto, examinou essa possibilidade inicialmente em artrite, num estudo conduzido em conjunto com Rubens Santos Jr. e com a equipe de Marcelo Franco, do Butantan.

Os resultados não poderiam ser melhores: além de evitar o aparecimento de artrite, a vacina combate a doença já instalada. No primeiro experimento, apenas um dos 25 camundongos desenvolveu artrite, induzida por meio de óleo mineral chamado pristane, que faz a enfermidade surgir nas juntas de metade dos animais em que é aplicado. Num segundo teste, os pesquisadores verificaram que a vacina fez a artrite desaparecer em todos os 13 camundongos em que já havia se instalado. Alexandrina detectou a linha de pesquisa que se abriu: “Se essa vacina também funcionar em outras doenças auto-imunes, poderá ser usada em terapia, mais do que em imunização”. Em conjunto com a equipe de Ricardo Zolner, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a equipe de Ribeirão se prepara para começar os testes com outra doença auto-imune, o diabetes. Os resultados devem sair em meados do próximo ano.

Os Projetos
1.
Ensaios Pré-clínicos de Vacinas, Terapia Gênica e Novas Drogas contra Tuberculose; Modalidade: Projeto temático; Coordenador: Célio Lopes Silva – Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto; Investimento: R$ 929.918,36 e US$ 846.938,75
2. Produção de DNA Plasmidial Purificado e Proteínas Recombinantes, em Grande Escala, para Uso em Vacinas e Diagnósticos (01/08334-8); Modalidade: Programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE); Coordenador: José Maciel Rodrigues Junior – Life Sciences Ltda.; Investimento: R$ 21.000,00 e US$ 21.000,00

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