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Nanotecnologia

Atomos para fazer cálculos

Físicos brasileiros entram na corrida mundial em busca do computador quântico

EDUARDO CESARFileiras de átomos: possível base para o computador quânticoEDUARDO CESAR

Começa a ser montado, ao menos na cabeça dos físicos, um novo tipo de computador capaz de realizar em minutos cálculos que os mais rápidos supercomputadores existentes levariam bilhões de anos para fazer. É o computador quântico, assim chamado por funcionar de um modo completamente diferente dos computadores comuns, seguindo as leis da mecânica quântica, a parte da física que explica os fenômenos que ocorrem no mundo dos átomos e muitas vezes escapam ao senso comum. Embora ninguém saiba dizer ao certo qual será a aparência desse computador, possivelmente terá monitor, teclado e mouse, como os equipamentos de hoje. A modificação mais notável deve ocorrer no processador: em vez de apresentar chips (circuitos integrados) de silício com milhões de transistores, deverá conter algumas dezenas de átomos. No início, o interesse de produzir um computador quântico era apenas acadêmico: os físicos queriam verificar a possibilidade de fazer operações lógicas com base em propriedades dos átomos e comprovar as previsões da mecânica quântica. Mas a capacidade de cálculo desses computadores — teoricamente infinita porque dobra com cada átomo que se acrescenta ao processador — abriu a perspectiva de aplicações estratégicas: o computador quântico poderia quebrar códigos de segurança que protegem transações bancárias e até o sistema de defesa das nações.

É para evitar desastres com a descoberta desses códigos que em países como os Estados Unidos até o Departamento de Defesa financia os estudos para desenvolver um equipamento desse tipo. Hoje, a busca pelo controle das propriedades intrínsecas de átomos e moléculas não se restringe às universidades. Gigantes da informática, como IBM, Microsoft e Hewlett Packard, investem pesado em pesquisas da área, de olho no mercado de microprocessadores e memórias, que movimenta US$ 100 bilhões anuais. Deverão se passar anos ou mesmo décadas até que um computador que funcione com base em propriedades das partículas atômicas chegue às lojas. O estágio atual de desenvolvimento da computação quântica seria equivalente ao da escolha do material a ser usado para construir os alicerces de um prédio. Os físicos tentam descobrir a alternativa mais viável para usar como base de um computador quântico: átomos presos em armadilhas magnéticas, núcleos atômicos submetidos a campos magnéticos, elétrons presos em pequenas pirâmides (pontos quânticos) ou até corpúsculos de luz (fótons). É um estágio comparável ao dos anos 50, nos primórdios da computação, com a invenção do transistor, que substituiria as válvulas eletrônicas.

Embora seja provável que o primeiro computador quântico saia de algum laboratório norte-americano, em vista dos pesados investimentos que os pesquisadores de lá recebem, o Brasil não está fora da disputa. Desde o início dos estudos nessa área, houve contribuições importantes. Antes mesmo de se falar em computador quântico, no começo dos anos 80, Amir Caldeira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), já mostrava que alguns sistemas quânticos em escala atômica — ou mesmo se comportando como átomos gigantes — perdiam energia para o ambiente que os envolve. Esse fenômeno, a dissipação quântica, está associado a outro, a decoerência, que leva a um efeito indesejável: a perda da informação quântica antes que possa ser interpretada. Agora, são físicos mineiros e cariocas que trabalham juntos, estudando um terceiro tipo de computador, o semiquântico, que une características do clássico e do quântico e driblaria algumas dificuldades técnicas. “Acreditamos que ele será mais rápido que o computador comum e mais lento que o quântico”, diz Carlos Monken, físico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador da equipe.

Houve um salto nas pesquisas nessa área no país com a criação do Instituto do Milênio de Informação Quântica, em 2001. Mantido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, conta com um orçamento de R$ 5,2 milhões e reúne equipes do Rio de Janeiro, Alagoas, Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco. Seu coordenador, Luiz Davidovich, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), investiga propriedades de átomos e fótons presos em cavidades formadas por espelhos e produzidos de forma emaranhada, interligados por uma espécie de propriedade telepática: tudo o que ocorre com uma partícula afeta a outra. Com base nas partículas gêmeas, o grupo da UFRJ propôs o primeiro experimento de transferência de estado de uma partícula para outra distante, o chamado teletransporte quântico, que se popularizou com o seriado de ficção científica Jornada nas Estrelas. Em um artigo publicado em 2001 na Physical Review Letters, que mereceu um comentário na Nature, os físicos do Rio de Janeiro mostraram que é possível proteger da decoerência o estado quântico de um átomo em uma armadilha magnética, uma das opções pensadas para os protótipos de computadores quânticos.

O segredo do desempenho desse tipo de computador é a forma de manipular a unidade de informação, o bit. No computador comum — ou clássico —, os bits são registrados por transistores, minúsculos dispositivos de um circuito eletrônico que deixam ou não passar um sinal elétrico e compõem o processador e os chips de memória. Ao executar um comando, o computador clássico associa a cada bit apenas um de dois valores: ou 0 ou 1. Como cada transistor interpreta só um bit por vez e o número de transistores num chip é limitado — um processador Pentium 4, por exemplo, tem 40 milhões de transistores —, a capacidade de cálculo dos computadores de hoje torna-se restrita, lembra Iuri Pêpe, do Laboratório de Propriedades Ópticas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). No mundo das partículas atômicas — cerca de cem mil vezes menores que um transistor —, essa relação não é de exclusão, mas de sobreposição. Por estranho que pareça, em vez de assumir apenas um valor ou outro (0 ou 1), o bit quântico — ou qubit, na abreviação em inglês — pode representar os infinitos valores existentes entre 0 e 1, inclusive 0 e 1. Todos ao mesmo tempo. É uma propriedade das partículas atômicas conhecida como superposição de estados quânticos, que deve reger o funcionamento das novas máquinas.

É essa superposição de estados que permite que cada qubit manipule infinitas informações simultaneamente, como se fossem inúmeros computadores comuns atuando ao mesmo tempo em um cálculo e garantindo ao computador quântico uma superioridade de processamento inigualável. Bem, ao menos em tese, porque a superposição de estados também gera uma dificuldade. Outra regra da mecânica quântica — o princípio da incerteza, segundo o qual é impossível conhecer a posição e a velocidade de uma partícula ao mesmo tempo — impede que se saibam todos os valores que os qubits podem assumir de uma única vez ao fazer uma conta qualquer. A teoria indica que o computador deverá se comportar como quântico na hora de processar a informação e como clássico ao fornecer o resultado das operações. Haveria então vantagem em construir um computador desse tipo? A resposta é sim, desde que se saiba como tirar proveito da sobreposição de estados quânticos. Para isso, os físicos lidam com a probabilidade de obter um resultado específico. Um exemplo: há ao menos duas formas de descobrir quantas pessoas de um grupo de dez gostam de sorvete de chocolate. Nas duas, cada entrevistado só pode responder sim ou não. A primeira maneira, adotada pelo computador atual, é perguntar a cada pessoa se gosta de sorvete de chocolate. Depois, somar as respostas e obter o resultado final, num total de 11 operações consecutivas (dez perguntas e a contagem final). O computador quântico consegue dar a resposta em uma única operação, desde que se queira saber não as respostas individuais, mas qual percentagem delas responderia sim à indagação. “O segredo é fazer ao computador perguntas diferentes, de um modo mais inteligente”, explica o físico Reinaldo Oliveira Vianna, da UFMG.

Protótipos
O que mais se aproxima de um computador quântico está hoje nos laboratórios de física experimental de universidades norte-americanas, européias e até mesmo brasileiras — como a UFMG, a UFRJ e a Universidade de São Paulo (USP). Ainda assim, os equipamentos construídos são apenas protótipos primitivos, que realizam operações bastante simples, como o cálculo dos divisores do número 15 ou uma busca em um banco de dados de apenas oito itens. Mas é só o começo, claro. “Não existe nenhum impedimento físico à realização da computação quântica em larga escala”, assegura Ivan Oliveira, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio. “O computador será feito. É uma questão de tempo e investimento.” Com físicos da USP e da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Oliveira utiliza ressonância magnética nuclear, a mesma técnica que produz imagens do corpo humano, para fazer operações lógicas básicas (somas, divisões e multiplicações) com núcleos atômicos. Mesmo os físicos duvidaram dessa idéia de utilizar átomos e moléculas para lidar com informação. Em 1959, o norte-americano Richard Feynman (1918-1988, Prêmio Nobel de 1965) sentiu na pele o ceticismo dos colegas ao apresentar essa possibilidade. A descrença persistiu até 1973, quando o químico Charles Bennett, da IBM, mostrou a possibilidade de realizar operações lógicas reversíveis — precisamente o oposto do que acontece nos computadores atuais, nos quais os bits utilizados num determinado cálculo se desfazem. Quase dez anos mais tarde, Paul Benioff, do Laboratório Nacional Argonne, nos Estados Unidos, propôs o primeiro modelo de computador quântico, capaz de executar essas operações reversíveis.

Só em 1994 esse assunto ganhou importância estratégica. Foi quando Peter Shor, um cientista da AT&T, apresentou um processo de cálculo que permitiria a um computador quântico desvendar os componentes de números com milhares de dígitos em menos passos e mais rapidamente que o computador clássico (o número 15, por exemplo, pode ser decomposto em 3 e 5). Esse malabarismo com os números é a base dos sistemas de proteção de dados adotados pelos bancos brasileiros, que movimentam de R$ 2,5 trilhões a R$ 6 trilhões por mês em 50 mil a 80 mil transações codificadas. “Um computador quântico talvez tenha um poder de processamento que permita quebrar esse código ao longo de um dia e não de um ano”, comenta Maurício Ghetler, diretor de tecnologia do Banco Santos. “Mas essa não é a única proteção do sistema e, no momento em que um equipamento desse tipo estiver disponível, o sistema financeiro utilizará outras formas de proteção.” Mais tarde, o físico Lov Grover, dos Laboratórios Bell, propôs um procedimento matemático que permitiria ao computador quântico realizar buscas em um banco de dados de uma maneira que se torna mais eficiente à medida que aumenta o tamanho do banco de dados. Segundo esse método de cálculo, conhecido como algoritmo de Grover, enquanto um computador comum tem de realizar, em média, duas operações para fazer uma busca num banco de dados de quatro fichas, o quântico necessita de apenas um passo. Para uma consulta num arquivo de 16 fichas, um computador clássico faria, em média, oito buscas, e o quântico, quatro.

As descobertas de Shor e Grover impulsionaram os estudos na área — o número de publicações sobre o tema aumentou até em revistas científicas mais gerais. Foi em um artigo na Nature, por exemplo, que Daniel Gottesman, do Laboratório Nacional Los Alamos, e Isaac Chuang, da IBM, demonstraram que outra propriedade da mecânica quântica, o teletransporte, permitiria construir um computador quântico com a tecnologia de hoje. Chuang já havia revelado que seria factível manipular o alinhamento de núcleos atômicos em relação a um campo magnético. Tal qual a agulha de uma bússola, alguns núcleos atômicos apresentam magnetismo — bastaria que fossem controlados por meio da ressonância magnética nuclear. Em janeiro deste ano na Nature, Chuang comprovou outro processo de cálculo, que indica se uma moeda é verdadeira (um lado é cara e o outro, coroa) ou falsa (tem duas caras ou duas coroas), olhando apenas uma de suas faces. Qualquer pessoa precisa observar os dois lados da moeda antes de dar uma resposta minimamente confiável.

Uma questão ainda incomoda os pesquisadores: na prática, o processamento dos cálculos feitos por um computador quântico realmente seria mais rápido que no clássico? Para saber, seria necessário construir um equipamento com algumas dezenas de qubits que já se aproximasse de um protótipo de um computador quântico real. Nem é preciso que seja muito grande. Um computador desse tipo com cerca de 300 qubits seria capaz de manipular mais estados quânticos que o número de átomos do Universo, o equivalente ao número 1 seguido de 80 zeros. Para Reinaldo Oliveira Vianna, da UFMG, os experimentos feitos até o momento, com cerca de 7 qubits, não são suficientes para mostrar que o método quântico de fazer contas seria mais rápido. “A preparação dos dados na forma de qubits pode ser demorada, pois ainda é complicado produzir centenas de qubits”, explica o físico. “Só será possível descobrir se o computador quântico é realmente mais ágil quando se construir um.”

Versão mineira
Como ainda não se conseguiu ultrapassar a barreira da dezena de qubits no computador quântico, Vianna, Carlos Monken e Sebastião Pádua, da UFMG, ao lado de Paulo Henrique Souto Ribeiro, da UFRJ, todos ligados ao Instituto do Milênio, examinam uma alternativa que parece mais simples. É o computador semiquântico, inspirado em um modelo proposto por Jeffrey Yepez, do Laboratório de Pesquisa da Força Aérea dos Estados Unidos. Esse equipamento híbrido realiza o processamento de informações de maneira quântica, por meio de fótons, e armazena os resultados num chip de memória clássico. Seria mais rápido que o computador clássico por necessitar de menos qubits para processar uma mesma quantidade de informação, como demonstraram os cálculos da equipe de Minas. O grupo de Monken fez ainda outro progresso na forma de armazenar a informação no computador quântico. Normalmente se associa a unidade de informação à direção de vibração (polarização) dos fótons, corpúsculos de luz que se comportam como ondas eletromagnéticas vibrando no espaço, como cordas sendo agitadas. À polarização da luz, horizontal ou vertical, a equipe da UFMG conseguiu associar outra característica: a forma espacial do fóton. Ao fazer o corpúsculo de luz atravessar um cristal especial, os físicos conseguiram dividi-lo em dois, que se propagam paralelamente, alinhados na horizontal ou na vertical. Codificaram, assim, em um único fóton não um qubit, mas dois: um na direção de polarização e outro no alinhamento espacial, conforme mostra artigo a ser publicado na Physical Review Letters.

No Instituto de Física de São Carlos, da USP, a equipe de Tito Bonagamba busca uma forma de superar a perda de informação quântica (decoerência) durante o processamento dos dados com ressonância magnética nuclear. Em experimentos com cristal líquido, realizados com Ivan Oliveira, Roberto Sarthour e Alberto Passos Guimarães Filho, do CBPF, e Jair Checon de Freitas, da UFES, Bonagamba descreveu com precisão o tempo de decoerência da informação quântica: um qubit é capaz de armazená-la por até 15 milésimos de segundo. Agora, a equipe está propondo novas maneiras de efetuar experimentos mais rápidos ou preservar a informação por mais tempo, garantindo a possibilidade de fazer cálculos complexos. Antonio Vidiella-Barranco e José Antonio Roversi, da Unicamp, trabalham de modo diferente: manipulam a informação com fótons e íons (átomos com carga elétrica) presos em cavidades formadas por espelhos. Na Physics Letters A de julho de 2001, eles mostraram ser possível realizar operações lógicas com esse sistema. “Propusemos uma alternativa que envolve um sistema mais robusto para armazenar a informação (a vibração dos íons), associado à luz, que é boa para transmitir dados”, diz Barranco. Num outro trabalho, apontaram que é possível recuperar a informação original mesmo após ela se perder por causa da decoerência. Ao jogar um feixe de luz sobre um outro, preso na cavidade, eles desenvolveram um esquema onde tudo se passa como se as operações pudessem ocorrer com o tempo congelado.

Pirâmides
Por causa da dificuldade de controlar a coerência de um número suficiente de qubits que um computador quântico capaz de funcionar em sistemas que utilizam fótons ou ressonância magnética nuclear deve ter, alguns físicos apostam que a alternativa mais promissora são os íons aprisionados. Mas o engenheiro elétrico Gilberto Medeiros Ribeiro, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, discorda. Para ele, a forma final de um processador quântico será algum tipo de semicondutor, como ocorreu com os computadores atuais. “O computador de hoje começou com válvulas e depois migrou para os semicondutores”, diz Ribeiro, que produz estruturas centenas de vezes menores que os transistores, os pontos quânticos, pirâmides de 20 nanômetros de base e 3 nanômetros de altura — o nanômetro é a milionésima parte do milímetro. No interior delas se aprisiona um único elétron com o objetivo de controlar seu sentido de rotação, ou spin, para realizar operações lógicas.

Ribeiro já mostrou ser possível controlar o número de elétrons presos nos pontos quânticos de arseneto de índio, um material semicondutor que forma ilhotas sobre o arseneto de gálio. Em artigo a ser publicado na Physical Review Letters, ele aponta como prever a distribuição e o tamanho de pontos quânticos em outro material semicondutor, o germânio depositado sobre silício. No momento, Ribeiro e Harry Westfahl, do LNLS, e Amir Caldeira, da Unicamp, estudam o tempo de decoerência da informação armazenada no spin de elétrons nos pontos quânticos, com apoio da HP do Brasil. Não será fácil chegar ao computador quântico, mas o que se aprenderá em sua busca deve compensar o esforço.

Os Projetos
1.
Desenvolvimento de Algoritmos Quânticos; Coordenador Carlos Henrique Monken — UFMG; Investimento R$ 631.245,00 (CNPq/MCT)
2. Computação Quântica por Ressonância Magnética Nuclear; Coordenadores Alberto Guimarães Passos Filho – CBPF e Ivan dos Santos Oliveira Júnior – CBPF; Investimento R$ 7.200,00 (CNPq/MCT)
3. Instituto de Informação Quântica; Coordenador Luiz Davidovich — UFRJ; Investimento R$ 2.144.000,00 (CNPq/MCT)
4. Métodos Não-Perturbativos em Sistemas Eletrônicos Correlacionados; Coordenador Amir Ordacgi Caldeira — Unicamp; Investimento R$ 80.657,74 (FAPESP)
5. Materiais Nanoestruturados Investigados por Microscopia de Tunelamento e Força Atômica; Coordenador Gilberto Medeiros Ribeiro — LNLS; Investimento R$ 501.136,62 (FAPESP)
6. Estudo da Dinâmica Lenta em Polímeros Através de RMN; Coordenador Tito José Bonagamba — IFSC/USP; Investimento R$ 93.704,14 (FAPESP)

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