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Cosmologia

Espirros cósmicos

Astrofísicos descrevem evolução de jatos de gases com 10 anos-luz de comprimento

A imagem que aparece na tela do computador lembra o movimento de um cometa – um enorme rastro brilhante e colorido, que parece rasgar o céu. Mas param aí as semelhanças entre essas nuvens de gelo e poeira que viajam ao redor do Sol e os jatos supersônicos astrofísicos – nuvens de gases ejetadas violentamente por estrelas em formação e por núcleos de galáxias distantes e muito brilhantes chamadas quasares. Os jatos liberados pelas protoestrelas – estrelas em formação – viajam a uma velocidade próxima dos 400 quilômetros por segundo, o equivalente a dezenas de vezes a velocidade do som no meio interestelar, e podem atingir um comprimento de até dez anos-luz (um ano-luz corresponde a 9,5 trilhões de quilômetros).

Já os jatos extragalácticos se movem a velocidades próximas à da luz (300 mil quilômetros por segundo) e se estendem por milhões de anos-luz, o equivalente a dezenas de vezes o diâmetro de nossa galáxia, a Via-Láctea. “Os jatos carregam as impressões digitais de embriões de estrelas”, afirma Elisabete de Gouveia Dal Pino, uma das coordenadoras de uma equipe do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP), que há dez anos vem estudando a origem, o comportamento e as peculiaridades desses objetos celestes. “À medida que desvendamos seus enigmas, conseguimos entender melhor como as estrelas se formam.” E, lembre-se, da fusão de elementos químicos no interior das estrelas é que surgiu a matéria-prima de todo ser vivo. Portanto, investigar os jatos e as estrelas significa buscar nossas origens mais remotas.

O grupo da USP, coordenado por Elisabete e por Jorge Horvath, vem obtendo resultados pioneiros no estudo dos fenômenos astrofísicos de alta energia, que incluem o mecanismo de explosões de supernovas, estrelas de nêutrons e surtos de raios gama. No ano passado, os pesquisadores paulistas surpreenderam europeus e norte-americanos que atuam na mesma área ao concluírem a primeira simulação hidrodinâmica em computador de um jato gigante protoestelar bastante estudado, o HH-34, localizado ao sul da nebulosa de Órion, a cerca de 1.600 anos-luz da Terra. O universo recriado no computador revelou: o HH-34 é daquele tipo de jatão imenso, com cerca de 10 anos-luz de ponta a ponta.

O gigante ainda maior
Desse modo, confirmaram-se os resultados obtidos alguns anos antes por outro grupo de pesquisa. Entre 1994 e 1997, os astrônomos John Bally, David Devine, Bo Reipurth e Steve Heathcote, dos Estados Unidos, observaram uma cadeia de pequenos nós de gás brilhantes e alinhados com o jato HH-34, na época ainda visto como pequeno. Acreditava-se que esses nódulos eram independentes, mas os físicos mostraram que eles eram na verdade ejetados pela mesma protoestrela, formando o que parecia ser um jato gigante. “Nossas simulações numéricas reproduziram de modo bastantefiel as observações e não deixaram dúvida de que se trata de fato de uma única estrutura, um megajato”, comenta Elisabete, uma das autoras do artigo com os resultados detalhados, publicado em julho de 2002 no Astrophysical Journal.

Esse jato gigante, de formato sinuoso, já havia causado uma reviravolta nos estudos de formação de estrelas. De acordo com o que se conhecia, os jatos de protoestrelas pareciam ter menos de um décimo do tamanho do HH-34, mesmo quando ele aparecia sozinho e isolado dos nódulos hoje vistos como parte de seu corpo. Apoiado pela FAPESP, esse trabalho representa um olhar apurado sobre os jatos astrofísicos, a partir do HH-34. Agora se sabe que em sua estrutura existem nódulos que os pesquisadores atribuem ao fato de a estrela em formação liberar gás de modo intermitente, não contínuo. O estudo detalha a evolução do jato desde os momentos iniciais de sua formação até sua expulsão e sua interação com o gás do meio interestelar, durante seus 10 mil anos de vida. Beneficiado por esse detalhamento, o HH-34 se tornou uma referência científica do comportamento de jatos astrofísicos.

O grupo da USP concentra-se no estudo dos jatos de protoestrelas por uma razão básica: esse tipo de jato é bastante comum em regiões vizinhas de formações de estrelas, dentro de nossa própria galáxia. São portanto mais facilmente observáveis que o segundo grupo de jatos, os extragalácticos, ejetados por quasares – núcleos de galáxias distantes com buracos negros com cerca de 100 milhões de vezes a massa do Sol. Apesar das diferenças de origens, tamanho e velocidade, os jatos extragalácticos apresentam formas e comportamento muito semelhantes aos dos jatos das protoestrelas”, diz a pesquisadora. “As informações obtidas no estudo dos protoestrelares ajudam muito na compreensão dos fenômenos que ocorrem naqueles produzidos em regiões extragalácticas remotas.”

A história de vida deles não é lá muito distinta. No caso das protoestrelas, a nuvem de gases primordiais – como hidrogênio, hélio e oxigênio – condensa sob ação de sua gravidade e faz surgir um caroço central, que vai dar origem à estrela, rodeado por um disco de gás, que gira com rotação cada vez mais rápida. Quando a rotação atinge um limite de velocidade, a ponto de impedir que a condensação continue, a estrela ejeta violentamente nuvens de gás pelo eixo de rotação. Assim se forma o jato e, ao mesmo tempo, diminui a velocidade de rotação tanto da nuvem quanto da estrela. Em conseqüência, a condensação da protoestrela continua, resultando em uma estrela madura como o Sol.

Mas o percurso do jato que deixou a estrela nem sempre é tranqüilo. Se colide com outras nuvens de gases, o jato forma ondas de impacto supersônico conhecidas como bowshocks, interage com o meio interestelar e deposita naquela região parte do material que carregou da estrela – um espetáculo de brilho e cores. Nesse momento, os jatos atuam como abelhas que transportam sementes de estrelas e polinizam regiões distantes do ponto em que foram gerados. Segundo a pesquisadora, o jato pode induzir o nascimento de uma estrela quando colide com uma nuvem com massa suficiente para implodir – ou, na linguagem técnica, entrar em colapso gravitacional. Jatos maiores podem até mesmo destruir a nuvem gigante que os hospeda. “É possível que aconteça assim, mas não há evidências observacionais diretas”, acautela-se a pesquisadora.

Foi a própria Elisabete, em 1993, quando fazia o pós-doutoramento na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, quem desenvolveu uma das técnicas empregadas na simulação computacional de jatos astrofísicos, em parceria com o físico suíço Willy Benz, na época pesquisador visitante de Harvard.

Até então, os cálculos se baseavam na integração numérica das equações hidrodinâmicas do jato, com o domínio computacional – espaço virtual que simula o espaço real – dividido em uma rede de pontos fixos. Essa nova técnica, chamada SPH (Smoothed Particle Hydrodynamics ou Hidrodinâmica de Partículas Suavizadas), substituiu a rede por partículas movendo-se com o fluido. Essa mudança tornou as simulações mais rápidas e viáveis em computadores mais modestos, como os que a pesquisadora teve de voltar a usar após retornar ao Brasil, naquele mesmo ano.

A recriação do universo
A realidade virtual consegue reproduzir com fidelidade cada vez maior o que acontece no universo. No computador, o gás do meio interestelar é representado por uma caixa em forma de paralelepípedo, preenchida com gás. Na base, há um orifício, por onde o jato da protoestrela é injetado. Lá dentro, o jato é acelerado supersonicamente, forma os nódulos de gás que se movem em velocidade supersônica e interage com o gás do meio interestelar. Obtidos em conjunto com Alex Raga, da Universidade Autônoma do México; Elena Masciadri, do Instituto de Astronomia Max Plank, em Heidelberg, Alemanha; e Adriano Cerqueira, da Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, os resultados são em seguida comparados com as observações astronômicas, sobretudo as obtidas do telescópio europeu ESO, que fica em La Silla, no Chile, e pelo telescópio espacial Hubble, as duas fontes habituais de informações do grupo.

À medida que consolida o conhecimento sobre os jatos astrofísicos, a equipe mergulha no disco de gás que forma os jatos, em busca de pormenores dos fenômenos que se passam nas regiões mais próximas da estrela em formação. Os resultados a que os pesquisadores chegam surgem em um momento em que fervilham novas informações sobre o próprio universo. Os astrofísicos trabalham intensamente sobre a farta matéria-prima captada pelo satélite norte-americano Wilkinson Microwave Anisotropy Probe (WMAP), que em fevereiro, no primeiro lote de resultados, deu ao universo uma idade de 13,7 bilhões de anos, um destino certo – expandir-se para sempre – e limites hoje estimados em 15 bilhões de anos-luz. “Depois de centenas de anos em que as observações com telescópios só conseguiam alcançar o quintal da nossa galáxia, estamos enxergando cada vez mais longe”, destaca a pesquisadora. “A astronomia saiu da adolescência e chegou à maturidade.”

O Projeto
1. Investigação de Fenômenos Astrofísicos de Altas Energias (nº 97/13084-3); Modalidade Projeto temático; Coordenadora Elisabete de Gouveia Dal Pino – IAG/USP; Investimento R$ 294.713,73

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