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Geologia

Visão das profundezas

Equipe gaúcha faz o mapa do fundo do oceano próximo ao litoral brasileiro

CHRISTIAN DOS SANTOS FERREIRA / FURGUm giro de 90 graus na costa brasileira: planícies e cordilheiras do fundo do Atlântico ampliadas 80 vezes, entre o sul da Bahia e o Rio Grande do SulCHRISTIAN DOS SANTOS FERREIRA / FURG

Em um exercício de imaginação, acompanhemos o olhar de um peixe oceânico que vive a centenas de quilômetros da costa – um atum, por exemplo. De um ponto situado, digamos, a 1.200 quilômetros de Ilhéus, no sul da Bahia, o peixe normalmente veria poucos metros adiante. Mas eis que, por um motivo qualquer, seu campo de visão aumenta a ponto de poder apreciar o fundo do mar com nitidez e profundidade, em qualquer direção. Quatro mil metros abaixo, o leito do oceano se apresenta como uma colcha de colinas.

À sua frente, mais próximo ao continente, onde o fundo do oceano é mais ou menos plano, surge o Banco de Abrolhos, a mais rica formação de corais do Atlântico Sul, onde se situa o Parque Nacional dos Abrolhos. Desviando o superolhar para a esquerda, o atum encontra uma imponente cordilheira submersa de montanhas e vulcões extintos. É a cadeia Vitória-Trindade, que nasce no meio do oceano e morre à beira da capital do Espírito Santo. Seus picos mais altos, com cerca de 4 mil metros de altura, formam ilhas como a de Trindade, a 1.160 quilômetros do litoral capixaba.

À direita, aparecem cerca de 40 elevações um pouco mais modestas, com 1.000 a 1.700 metros de altura, que formam os Montes Submarinos da Bahia, distantes 444 quilômetros do continente. Esse passeio é uma forma de entender o mapa digital, em três dimensões, que reproduz os contornos do fundo do mar entre o Cabo de São Tomé, norte do Estado do Rio de Janeiro, e o rio Real, na divisa da Bahia com Sergipe.

Essa carta geográfica faz parte de uma série de mapas do leito do oceano que acaba de ganhar forma na tela dos computadores do Departamento de Oceanografia da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (Furg), situada no município gaúcho de Rio Grande, a 320 quilômetros ao sul de Porto Alegre. “Vamos tornar esses mapas públicos e disponíveis para qualquer pesquisador em breve”, assegura o oceanógrafo Lauro Saint Pastous Madureira, do Laboratório de Tecnologia Pesqueira e Hidroacústica, que coordena o trabalho de coleta de dados e de elaboração de cartas digitais com base na batimetria, uma técnica que permite mapear o fundo do mar (ou de um rio) usando o som – emitido em direção ao fundo, o som permite calcular a distância entre o leito do oceano e a superfície.

Gerados a partir do processamento de dados fornecidos por satélite e sobretudo de medições feitas com a técnica de batimetria, que registra a profundidade do oceano com o auxílio de ecossondas (sensores de eco) instaladas em embarcações, os mapas detalham o relevo de uma área submersa que se inicia a poucos metros da costa brasileira e avança mais de 1.200 quilômetros mar adentro. Com até 7 milhões de pontos georreferenciados, com latitude, longitude e profundidade determinadas com rigor, as imagens do assoalho marinho revelam o que a água do mar normalmente esconde: as formações geológicas que constituem o leito do Atlântico.

É um mundo impressionante de fendas, planícies, escarpas e montanhas permanentemente inundadas. O piso do oceano pode estar a 20 metros de profundidade, em pontos próximos do continente, ou a mais de 4 mil metros de fundura, em alto-mar. Cerca de 80% das informações usadas para fazer os mapas foram obtidas nos últimos cinco anos por meio de sete cruzeiros realizados pela equipe do laboratório de hidroacústica, cinco deles a bordo do navio oceanográfico Atlântico Sul, da Furg. “Usamos dados de satélite e de eventuais medições feitas por outras embarcações apenas para complementar nossos mapeamentos”, afirma Madureira.

O navio oceanográfico gaúcho conta com uma ecossonda científica, um tipo de sonar que transmite som em altas freqüências e registra os ecos provenientes das reflexões das ondas sonoras que encontram o fundo do mar – em geral, as embarcações usam versões menos precisas desse equipamento, que custou cerca de US$ 450 mil, para medir a profundidade do mar e identificar obstáculos ou cardumes. Por emitir sons apenas para baixo, a ecossonda do Atlântico Sul só registra a profundidade do trecho de fundo do mar que se encontra imediatamente abaixo do navio, mas com enorme precisão.

“A ecossonda funciona de forma parecida com a ultra-sonografia usada para ver um bebê na barriga de uma gestante”, compara o oceanógrafo. Instalado no casco do navio, o aparelho tem um sensor que vibra a uma alta freqüência fixa – no caso da ecossonda do Atlântico Sul, a 38 quilohertz – e gera ondas mecânicas em direção ao leito do oceano. Quando batem num obstáculo, geralmente o fundo do mar, as ondas retornam à superfície como eco, registrado no mesmo sensor da sonda. Como a velocidade do som na água varia em torno de 1.500 metros por segundo, o tempo de retorno da reverberação fornece a profundidade do local imediatamente abaixo do navio.

Se o fundo do mar se encontra, por exemplo, a 750 metros abaixo de uma embarcação, o som vai demorar aproximadamente um segundo para retornar como eco. Nas viagens a bordo do Atlântico Sul, os pesquisadores gaúchos percorreram cerca de 16 mil milhas náuticas (29,2 mil quilômetros) e cobriram por completo o fundo do mar contíguo à costa das regiões Sul e Sudeste e da Bahia. Falta mapear a porção do leito do Atlântico vizinha aos demais estados do Nordeste, tarefa que se pretende cumprir ainda este ano.

“Ainda não sabemos se vamos realizar o mesmo trabalho na região Norte ou se isso será feito por outro grupo de pesquisa”, diz Madureira. Por isso, os primeiros mapas que mostram o fundo do mar ainda não cobrem a totalidade da costa nacional. Limitam-se a explorar a porção do litoral que começa no Arroio Chuí, no extremo sul do Rio Grande do Sul, e vai até o rio Real, na divisa da Bahia com Sergipe. Vistos a partir da perspectiva de um observador situado em terra firme, os mapas deixam claro que o aparecimento de diferentes relevos no fundo do mar segue uma ordem mais ou menos constante, mas não monótona.

Colada ao ponto do continente onde começa o mar (a linha da costa), existe ao longo do litoral a plataforma continental, que pode ser descrita como uma planície submersa com ângulo de inclinação em torno dos 5 graus e no máximo 200 metros de profundidade. Sua extensão mar adentro pode variar de 320 quilômetros no Amazonas até meros 10 quilômetros em pontos do Nordeste.

Em seguida, surge o talude, o ponto onde ocorre a quebra da plataforma, dando origem a algo como um desfiladeiro marinho, uma escarpa rochosa com elevado grau de inclinação. Daí para frente – ou melhor, para o fundo -, pode haver de tudo um pouco, de acordo como ponto da costa em questão: áreas mais ou menos planas, pequenas ondulações de terreno, fendas, grandes e médias cadeias de montanhas. Alguns montes submarinos podem ser tão altos que seus topos rasgam o mar, formando ilhas. Nos mapas, o azul mais claro representa áreas do oceano onde o fundo é plano e pode significar tanto áreas rasas (de 0 a 200 metros) quanto áreas planas profundas, as planícies abissais, a profundidades de até 4.500 metros.

O azul mais escuro indica as áreas do oceano com elevado grau de inclinação, entre as mais altas e as mais baixas. Para realçar as variações de relevo no fundo do mar, os pesquisadores se utilizam de programas capazes de ampliar até 80 vezes as variações de profundidade detectadas no chão do oceano. Dessa forma, geram-se mapas digitais, em três dimensões, em que fica mais fácil, por exemplo, diferenciar uma área de planície de outra com uma leve ondulação.

Trata-se de um recurso computacional com uma lógica semelhante à do emprego do microscópio na biologia, em que, com o auxílio de lentes, aumenta-se o tamanho do objeto de estudo a fim de conhecer melhor os seus detalhes anatômicos. Há, no entanto, alguns inconvenientes decorrentes do chamado exagero vertical. O pico das montanhas submarinas mais altas aparece nos mapas com um jeitão mais cônico do que realmente apresentam.

“Mas, se não utilizarmos esse recurso, muitas vezes não dá para ver o início de uma depressão num fundo de oceano que seja relativamente plano”, explica o oceanógrafo Christian dos Santos Ferreira, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que divide com Sandro Klippel a tarefa de fazer os computadores darem vida às imagens em três dimensões.A criação dos mapas é um subproduto de trabalhos feitos pelo laboratório de hidroacústica da Furg para o Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee).

Financiado pelo governo federal, o Revizee reúne 150 pesquisadores de 40 instituições nacionais, com o propósito de dimensionar os estoques de pescado marinho de uma área oceânica que começa onde acaba o mar territorial do Brasil, a 12 milhas náuticas da costa (22 quilômetros), e se estende por mais 188 milhas náuticas (cerca de 350 quilômetros) mar adentro – é a chamada Zona Econômica Exclusiva (ZEE).

“Quando o Revizee fechar os dados sobre os estoques marinhos da costa brasileira”, diz Madureira, “poderemos usar nossas imagens digitais como um pano de fundo para gerar mapas tridimensionais com a localização exata dos principais estoques de peixes do litoral, além de definir com maior precisão as correntes marinhas e as áreas de maior riqueza de plâncton, microrganismos marinhos que vivem próximos à superfície.” Desse modo, segundo o pesquisador, será possível entender melhor como se organiza a riqueza biológica da costa brasileira, uma das mais extensas do mundo.

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