Imprimir PDF Republicar

Genômica

Diferença mínima

Poucos genes podem ser responsáveis pela agressividade de alguns tipos de câncer

EDUARDO CESARLâmina de microarray com 20 mil genes: primeiros resultados do Genoma Clínico do CâncerEDUARDO CESAR

O paradoxo era perturbador. Dois tumores derivados de tecidos conectivos do cérebro tinham graus de agressividade diametralmente opostos – um era quase benigno, de crescimento lento e restrito, e outro muito invasivo, de rápida e generalizada expansão. Mas o padrão de expressão (atuação) de seus genes em vez de ser bastante distinto, como se poderia inicialmente pensar, era extremamente parecido. O dado podia ser um indício de que a capacidade de se espalhar por tecidos sadios, tão marcante nas formas mais malignas de câncer, estava ligada ao funcionamento de um número reduzido de genes. Para experimentar tal hipótese, pesquisadores do programa Genoma Clínico do Câncer, financiado pela FAPESP e Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, testaram aproximadamente 20 mil genes humanos, sendo que dois terços do total da espécie reagiam ao entrar em contato com os dois tipos de tumor. O comportamento desse conjunto de genes, que se encontrava depositado numa lâmina especial de vidro, chamada tecnicamente microarray, foi monitorado em nove comparações distintas entre os dois tipos de tumores.

Os resultados do experimento – levado a cabo num laboratório do Instituto de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, ligado ao Hospital Albert Einstein, de São Paulo, que recentemente se associou ao Genoma Clínico, lançando mão de recursos próprios – reforçaram a suspeita inicial dos cientistas. Somente 110 genes funcionaram de maneira significativamente diferente nos dois tumores: 45 foram mais expressos nos astrocitomas de grau I, o tipo mais brando de câncer, e 65 nos gliobastomas (astrocitomas de grau IV), a forma mais devastadora do tumor. Curiosamente, 27% dos genes mais ativos nos tumores mais graves estão intimamente relacionados à capacidade de as células se reproduzirem, um mecanismo imprescindível para a disseminação da doença. “Precisamos agora confirmar esses dados com o emprego de outras metodologias”, diz Marco Antonio Zago, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, coordenador do Genona Clínico do Câncer. “E distinguir em quais genes a sua maior expressão é causa, e não conseqüência, da grande invasividade dos gliobastomas.”

Nove tipos de tumores
As análises de expressão de genes feitas em tumores de cérebro fazem parte de um estudo-piloto do Genoma Clínico. Seu objetivo central era testar as metodologias queserão empregadas ao longo do programa. Por isso, apenas três dos nove tipos de tumores que serão enfocados pelo Genoma Clínico foram alvo desses trabalhos iniciais, realizados por uma rede de cinco laboratórios de biologia molecular, com o apoio de dois centros de bioinformática. Além de trabalhar com amostras de tumores de cérebro, o estudo-piloto mediu o funcionamento de grupos de genes em células com câncer (e sadias) retiradas da laringe e do cólon. “Mas, por enquanto, só temos resultados expressivos com tumores de cérebro”, afirma Zago. Iniciado há dois anos, o Genoma Clínico trabalha com amostras de tumores que se formam em nove diferentes órgãos ou tecidos do corpo humano: estômago, esôfago, osso e medula óssea, além de cérebro, cabeça/pescoço e cólon/reto.

Com orçamento estimado em US$ 1 milhão, bancado em porcentagens iguais pela FAPESP e Instituto Ludwig, o programa pesquisa se diferenças significativas no funcionamento de um gene, ou de um conjunto de genes, em células com câncer e em seus respectivos tecidos sadios podem fornecer informações úteis para o diagnóstico ou tratamento da doença. “Queremos investigar se essas mudanças de expressão se correlacionam com parâmetros clínicos dos doentes, como sobrevida, resposta a tratamentos e propensão para metástases (expansão do tumor para outros tecidos)”, explica Zago.

Não que a meta do programa seja desenvolver dispendiosos exames genéticos para serem aplicados diretamente nos pacientes com câncer e, assim, prever a evolução da doença ou orientar a melhor forma de tratamento. O objetivo é relacionar o comportamento dos genes nos tecidos tumorais com alterações em parâmetros fisiológico dos doentes, como a produção de proteínas e antígenos (substâncias reconhecidas como potencialmente agressivas pelo sistema imunológico). A vantagem dessa abordagem é que testes simples e baratos poderiam ser usados para detectar essas alterações fisiológicas. Em países como o Brasil, de nada adiantaria desenvolver procedimentos muito caros e complexos, que dificilmente entrariam na rotina clínica dos hospitais públicos. Além disso, essas proteínas e antígenos são potenciais alvos para desenvolvimento de novas terapias.

A forma como o Genoma Clínico estuda o comportamento do genes dos tumores é inovadora na medida em que reúne um variado time de especialistas e instituições para perseguir seus objetivos. Apesar do nome que remete à área de genética, o programa não é tocado apenas por biológos moleculares. A maioria dos seus participantes são clínicos, cirurgiões, epidemiologistas e patologistas, que travam contato cotidiano com pacientes de câncer. Esses médicos pertencem a 19 grupos de pesquisa clínica de hospitais e universidades paulistas. Seu papel é de fundamental importância para a montagem de uma estrutura de dados primários que serão usados ao longo de todo o programa em uma série de estudos. Essa estrutura se assenta em dois pilares: amostras de boa qualidade dos nove tipos de tumores (e de seus respectivos tecidos sadios) e um detalhado perfil epidemiológico dos pacientes e pessoas saudáveis que forneceram esses tecidos.

Até dezembro passado, o Genoma Clínico contabilizava amostras de 1.124 pacientes com tumores e 793 de pessoas sadias, os chamados casos-controle. Esse material biológico é a matéria-prima para a execução dos estudos sobre expressão de genes em tumores que agora começam a ser feitos pelos biólogos moleculares do programa. Além disso, os clínicos e cirurgiões são capazes de formular questões relevantes sobre o comportamento das doenças, que podem ser respondidas pelas análises moleculares. “O Genoma Clínico construiu uma ponte entre os pesquisadores de laboratório e os clínicos e cirurgiões que atuam em hospitais”, afirma Marcos Brasilino de Carvalho, oncologista especializado em cirurgia de cabeça e pescoço do Hospital Heliópolis, da capital paulista.

“Nós apresentamos os doentes de câncer para eles e eles nos mostram os genes e cromossomos.” Coordenador de um dos 19 grupos que enviaram amostras de células com câncer e sadias ao programa, Carvalho e sua equipe já forneceram material celular retirado de cerca de 150 pacientes de câncer de cabeça e pescoço. “O Genoma Clínico foi um alento para a pesquisa em nossa área”, diz o neurologista Alberto Alain Gabbai, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cujo grupo de pesquisa forneceu amostras de 40 tumores de cérebro extraídos de pacientes. Para garantir a qualidade e a homogeneidade das amostras de tecido sadio e com câncer, o programa deu ênfase à padronização de procedimentos usados durante a coleta de material biológico. Nas cirurgias para extração de tumores, por exemplo, havia sempre um patologista na sala de operação. Esse especialista tinha a incumbência de assegurar a pureza da amostra de tumor que seria enviada para o Genoma Clínico. Outra tarefa do patologista é classificar as características básicas dos tumores (tipo de câncer, seu grau de evolução e invasividade). “Às vezes, o cirurgião retira uns 20 centímetros de tecido, mas somente uns 3 centímetros são células de câncer adequadas para análise”, explica Venancio Alves, da Faculdade de Medicina da USP, coordenador da parte de patologia do programa. “Cabe, então, a alguém da nossa área separar os tecidos sadios dos que realmente apresentam o tumor.”

De nada adiantaria todo esse esforço na obtenção de material biológico de qualidade se não houvesse um banco de dados informatizado, acessível aos participantes do programa, garantindo informação atualizada e confiável sobre os pacientes (e casos controle) que forneceram quase 2 mil amostras de tecido ao programa. Dessa forma, é possível saber em detalhes o perfil clínico e dados gerais de todas essas pessoas. “Periodicamente, fazemos uma checagem em parte de nossas informações”, afirma Victor Wünsch Filho, da Faculdade de Saúde Pública da USP, coordenador da parte de epidemiologia do Genoma Clínico. “Só assim poderemos fazer grandes estudos epidemiológicos sobre o câncer.”

Programas de computador auxiliam os pesquisadores nessa tarefa, apontando automaticamente dados estranhos que possam existir nas fichas dos pacientes. Por exemplo, se no formulário on-line de um doente de câncer consta a informação de que ele começou a fumar com menos de 10 anos de idade, o programa informa os pesquisadores sobre o caráter duvidoso desse dado. Com o alerta, o grupo que entrevistou o paciente se encarrega de verificar a veracidade da informação. “Esse sistema on-line é um grande avanço”, comenta Wilson Silva Jr., um dos responsáveis pela bioinformática do programa. “Com ele, também temos uma ferramenta poderosa para acompanhar a evolução dos tumores e estabelecer relações entre o perfil da doença, a carga genética e os fatores ambientais e comportamentais dos pacientes.”

O Projeto
Genoma Clínico do Câncer
Modalidade

Programa Genoma Clínico
Coordenador

Marco Antonio Zago – FMRP
Investimento

US$ 1 milhão

Republicar