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Neurociência

Lembranças preservadas

Novos compostos reduzem danos da doença de Alzheimer

Desde o nascimento, o cérebro humano encolhe um pouquinho a cada dia, com a morte de quase 400 mil células nervosas que não são repostas. É uma taxa normal que, sem que se note, consome 10 bilhões delas até o final da vida. Comum no envelhecimento normal, a perda dessas células conhecidas como neurônios só se torna mais evidente quando se instala no organismo uma doença tão sorrateira quanto cruel: o Alzheimer, que acelera brutalmente a morte das células do sistema nervoso.

Devastadora, essa doença se anuncia de modo sutil, na forma de pequenos esquecimentos, como não se lembrar do local em que deixou os óculos ou as chaves do carro, mas, em questão de anos, pode levar uma pessoa ainda produtiva aos 70 anos a perder progressivamente sua capacidade intelectual e apresentar níveis de habilidade semelhantes aos de recém-nascidos – a pessoa se torna incapaz de andar, alimentar-se sozinha, reconhecer familiares e amigos e até de falar.

Descrita em 1906 pelo médico alemão Alois Alzheimer, essa enfermidade atinge 5% dos homens e 6% das mulheres com mais de 60 anos – num total de 40 milhões de pessoas no mundo e cerca de 1,5 milhão no Brasil -, e ainda hoje permanece sem cura. Até o ano passado, os únicos medicamentos disponíveis para tratar essa enfermidade que destrói de modo progressivo o sistema nervoso central agiam apenas de modo paliativo: ajudavam a reduzir de forma temporária a perda de memória, mas sem evitar a eliminação dos neurônios.

Mas estudos recentes apontam o surgimento de compostos com uma ação complementar, capazes de reduzir ou mesmo impedir a morte das células nervosas. E parte importante desse progresso se deve ao trabalho de pesquisadores brasileiros. Na Universidade Federaldo Rio de Janeiro (UFRJ), a equipe do bioquímico Sérgio Teixeira Ferreira identificou nos últimos três anos nove substâncias – algumas delas produzidas pelo próprio organismo, como a melatonina e a taurina – que, em testes de laboratório, retardaram ou mesmo bloquearam a eliminação dos neurônios. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara, no interior de São Paulo, a equipe da farmacêutica Vanderlan da Silva Bolzani extraiu da Senna spectabilis – uma árvore de até 6 metros de altura, com folhas verdes miúdas e flores amarelo-ouro, conhecida como cássia-do-nordeste ou tula-de-besouro – uma substância chamada spectalina, cujos derivados atuam contra o Alzheimer.

Mais acetilcolina
Embora não impeçam a morte das células nervosas, três compostos derivados da spectalina impedem a destruição de uma substância que faz a comunicação entre os neurônios – o neurotransmissor acetilcolina, associado à formação da memória -, aumentando sua quantidade no sistema nervoso. A vantagem é que esses compostos não são tóxicos como a tacrina e a rivastigmina, dois dos medicamentos ainda usados no combate aos danos do Alzheimer. Como agem sobre a enzima que degrada a acetilcolina, esses compostos podem ainda auxiliar no tratamento de outras doenças neurológicas, como o mal de Parkinson.

“O Alzheimer é uma doença complexa, cujo tratamento exigirá o uso de estratégias múltiplas. Não acredito que seja dominada com um único medicamento”, diz Ferreira, coordenador da equipe, que, nos últimos dois anos, descobriu o papel protetor da taurina e desvendou como esse composto e o hormônio melatonina evitam a destruição dos neurônios: ambos combatem a ação tóxica disparada por uma molécula fabricada em grande quantidade no cérebro de pessoas com Alzheimer, o peptídio beta-amilóide. No estudo mais recente, publicado no mês passado no Faseb Journal, a revista da Federação Americana de Sociedades de Biologia Experimental, a equipe do Rio de Janeiro constatou que a taurina, um aminoácido encontrado em geral em grande quantidade no sistema nervoso, reverte o desequilíbrio químico característico dessa doença. É um efeito semelhante ao obtido com a memantina – composto cujo uso contra o Alzheimer foi liberado em 2003 na Europa e, somente neste ano, nos Estados Unidos – que, no entanto, funciona de forma diferente.

Essencial para a absorção de gorduras pelo intestino, a taurina funciona no sistema nervoso como um antídoto contra os efeitos do peptídio beta-amilóide, que em baixíssimas quantidades, aparentemente estimula o crescimento dos neurônios, mas, no Alzheimer, sua produção foge ao controle e gera danos que atingem milhares de células nervosas. Gerado pela degradação anormal de uma proteína importante para o funcionamento dos neurônios – a proteína precursora de amilóide ou simplesmente APP, na sigla em inglês -, o peptídio beta-amilóide se liga com outras moléculas iguais a ele no exterior das células. Dessa união, surgem inicialmente agregados quase esféricos, os oligômeros, e, numa fase seguinte, longos cordões conhecidos como fibras amilóides. Em contato com a superfície externa das células nervosas, as fibras de beta-amilóide se conectam a várias proteínas, uma delas em especial, o receptor de glutamato, associada à aprendizagem e à formação da memória. É o início deumareação fatal: essa conexão provoca a abertura de pequenos canais nas paredes dos neurônios e permite a entrada nessas células de íons de cálcio, de carga elétrica positiva. Essa enxurrada de partículas positivas altera por um período prolongado a carga elétrica do interior dos neurônios (normalmente negativa), matando-os.

Diante desse curto-circuito celular, Ferreira decidiuprocurar compostos capazes de restabelecer o equilíbrio de cargas elétricas dos neurônios e encontrou a taurina, aminoácido componente das bebidas energéticas, em moda nos últimos anos. Estudos realizados em outros países já sugeriam que a taurina se ligava a um outro tipo de proteína da superfície dos neurônios: os receptores do ácido gama-aminobutírico (Gaba) que regulam a entrada na célula de partículas de carga elétrica negativa, os íons cloreto. O grupo do Rio decidiu ver como as previsões teóricas se confirmavam na prática. Sob a coordenação de Ferreira, os pesquisadores Paulo Louzada, Andréa Paula Lima, Dayde Silva, François Noël e Fernando de Mello realizaram uma bateria de testes de laboratório com neurônios da retina de pintinhos, cultivados em pequenas placas de vidro. Os achados são estimulantes: os efeitos tóxicos do beta-amilóide eliminaram apenas 15% das células nervosas tratadas com pequenas doses de taurina,enquanto 65% dos neurônios que não receberam o aminoácido morreram. Essa ação protetora também foi observada com a substituição da taurina por uma droga usada no combate à epilepsia, o fenobarbital, que tem a desvantagem de provocar dependência e efeitos indesejados como sonolência e confusão mental.

É claro que não se deve sair por aí ingerindo bebidas energéticas na expectativa de prevenir o Alzheimer. Ainda é necessário identificar a dose adequada e a melhor forma de administrá-la em uma série de estudos com seres humanos, antes que o uso da taurina seja indicado para combater essa doença neurológica. Mesmo assim, Ferreira está otimista. “Como a taurina não é tóxica para os seres humanos, será possível iniciar ensaios clínicos em uma escala de tempo relativamente curta, possivelmente no próximo ano”, explica o bioquímico. Essa não é a única alternativa para contrabalançar o desequilíbrio de cargas elétricas gerado pelo beta-amilóide. Em outro artigo, publicado em dezembro de 2003 na Neurotoxicity Research, a equipe da UFRJ demonstrou que a melatonina – hormônio responsável pela indução ao sono, liberado principalmente à noite pela glândula pineal e vendido em alguns países como complemento alimentar, ou seja, sem receita médica – também evita a morte dos neurônios por agir de modo semelhante à taurina.

Ferreira tenta ainda estratégias complementares que possam frear o progresso do Alzheimer em outros estágios, antes que o beta-amilóide se conecte aos receptores de glutamato. Em parceria com Fernanda De Felice, Jean-Christophe Houzel, José Garcia-Abreu, Vivaldo Moura Neto e Roberto Lent, o bioquímico da UFRJ revelou em 2001, também no Faseb Journal, dois compostos orgânicos – o 2,4-dinitrofenol (DNP) e o 3-nitrofenol (NP) – que impedem a morte dos neurônios por bloquear a formação das fibras beta-amilóide ou mesmo por desfazê-las depois de prontas. Há três meses, o escritório de patentes dos Estados Unidos concedeu a patente de uso de um deles, o 2,4 dinitrofenol, para a UFRJ. A universidade carioca licenciou a exploração da patente para o laboratório farmacêutico nacional Eurofarma, que se prepara para iniciar a avaliação da toxicidade desse composto em animais. Nos próximos meses, a equipe do Rio pretende apresentar outros cinco compostos que se mostraram capazes de impedir a formação tanto das fibras longas de beta-amilóide como dos oligômeros, que, apesar de menores, são muito mais tóxicos.

Analgésico
Os compostos identificados pela equipe do Rio devem ainda ganhar o reforço das moléculas descobertas pela equipe da Unesp em Araraquara. Nos últimos cinco anos, a equipe de Vanderlan da Silva Bolzani analisou 1.677 extratos de 709 espécies de plantas da flora paulista, coletadas em um projeto que integra o Biota-FAPESP, programa que realiza o levantamento da biodiversidade de São Paulo. Entre as 150 substâncias já isoladas estão a spectalina e seus derivados que, em experimentos de laboratório e em testes com ratos, apresentaram ações bastante específicas. No sistema nervoso, dois derivados de spectalina impedem a eliminação da acetilcolina e, como conseqüência, melhoram a capacidade de reter informação sem interagir com outras substâncias do sistema nervoso central – mecanismo semelhante ao de outro composto natural, a galantamina, isolada da Galanthus nirvalis, uma planta de até 1 metro de altura e flores brancas, hoje usada no tratamento do Alzheimer. Já no restante do organismo, as moléculas da Senna spectabilis funcionam como um potente analgésico.

“O mais interessante é que, além de melhorar a memória, os derivados da spectalina não são tóxicos como a tacrina, o medicamento mais utilizado no tratamento do Alzheimer”, afirma Vanderlan. Recentemente, a equipe da Unesp obteve o registro provisório de patente no Brasil do uso de todos os derivados de spectalina. Em conjunto com duas equipes da UFRJ, a de Eliezer Barreiros e a de Newton de Castro, Vanderlan trabalha agora no desenvolvimento de um medicamento à base dos derivados de spectalina que possa ser testado em seres humanos.

*Colaborou Francisco Bicudo

Os Projetos
1.
Abordagens Terapêuticas Inovadoras em Doenças Amiloidogênicas Humanas; Coordenador Sérgio Teixeira Ferreira – UFRJ; Investimento US$ 350.000,00 (Howard Hughes Medical Institute), R$ 310.000,00 (Finep, Fundo Verde-Amarelo e Eurofarma), R$ 160.000,00 (CNPq), R$ 72.000, 00 (Faperj)
2. Conservation and Sustainable Use of the Plant Biodiversity from the Cerrado and the Atlantic Forest: Chemical Diversityand
Prospecting for Potencial Drugs; Modalidade Programa Biota; Coordenador Vanderlan da Silva Bolzani – Unesp; Investimento R$ 1.659.568,47 (FAPESP)

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