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zoologia

Testemunhas da terra primitiva

Medusas fixas formam nova classe de animais marinhos

ALVARO E. MIGOTTO/USPParecem cogumelos gelatinosos – vermelhos, azuis, verdes, alaranjados, amarelos, até mesmo luminescentes – que se movem pelo mar como se dançassem. Aprecie, mas não se aproxime muito: há espécies venenosas e um simples esbarrão pode provocar envenenamentos fatais. Eis os cnidários, grupo de animais invertebrados antigamente chamados de celenterados, representado pelos pólipos, águas-vivas, hidras e medusas.

“Não são fascinantes?”, observa o biólogo Antonio Carlos Marques, diante da imagem de uma medusa transparente na tela do computador de sua sala, no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). “De uma certa forma, tudo começou com eles.” Surgidos há cerca de 600 milhões de anos, os cnidários – um grupo hoje formado por cerca de 11 mil espécies – foram um dos primeiros animais pluricelulares da Terra, já com tecidos organizados e um esboço de aparelho digestivo.

Marques identificou uma nova classe de cnidários, batizada de Staurozoa – uma classe reúne animais com características semelhantes, ainda que sejam bastante diferentes entre si, já que devem ter se originado de um mesmo ancestral (elefantes e ratos pertencem à mesma classe, os mamíferos, embora sejam espécies distintas). São cerca de 50 espécies com representantes vivos, sem contar os fósseis, agrupadas em duas ordens, em um estágio abaixo da classificação dos seres vivos.

As medusas de uma dessas ordens apresentam uma diferença básica em relação às espécies dançantes: as da nova classe vivem agarradas a rochas ou algas, por meio de uma estrutura semelhante a uma ventosa, o pedúnculo. Seu trabalho – feito em colaboração com Marcello Simões, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, e com o norte-americano Allen Gilbert Collins, da Escola Veterinária (ITZ, na sigla em alemão), de Hannover, na Alemanha – foi o principal estudo publicado na edição do início do ano da revista Invertebrate Biology .

A identificação dos Staurozoa, que inclui representantes fósseis, é o primeiro passo na direção do plano mais ousado de Marques: montar a árvore genealógica do grupo considerado a base de evolução dos animais – ou metazoários – e definir como era um dos primeiros seres a habitar a Terra. “Agora acreditamos que o ancestral comum desse grupo deve ter sido uma linhagem que vivia fixa, sem se deslocar”, comemora o biólogo de 34 anos, contratado há quatro pela USP. “É um avanço e tanto.” Seus estudos se baseiam na teoria cladística, corrente de pensamento criada há cerca de 50 anos pelo alemão Willi Hennig, que adota a evolução como referência para a classificação dos seres vivos, baseada nas características externas comuns.

“Para a cladística”, comenta Marques, “somente se considera válido o grupo com um ancestral comum exclusivo, não compartilhado com nenhum outro grupo.” Antes de Hennig predominava a escola chamada gradista, segundo a qual os seres vivos deveriam ser agrupados sem necessariamente se respeitar a origem dos grupos. Esse raciocínio, hoje visto como simplista, fez com que, por exemplo, todos os peixes fossem agrupados na classe Pisces por terem escamas e cara de peixe. Porém, se adotados outros elementos de classificação, há peixes, chamados ósseos, que ficam mais próximos de todos os outros vertebrados do que dos outros peixes, os cartilaginosos.

Na verdade, a preocupação em encontrar formas de reunir os animais é bem mais antiga e interessou filósofos como Aristóteles, na Grécia Antiga. O sueco Carolus Linnaeus, no Systema naturae , de 1735, propôs uma padronização dos nomes dos seres vivos que persiste ainda hoje: os nomes escritos em latim, sempre usando duas palavras, a primeira para apenas o gênero; as duas juntas, a espécie.

A atual escala de classificação dos seres vivos, que nasceu com Linnaeus, funciona como um funil com sete estágios, que sai do mais geral, os reinos, que representam os conjuntos maiores, até chegar ao particular, a espécie. As classes estão entre os compartimentos mais abrangentes, abaixo dos dois primeiros estágios, os reinos e os filos, e acima das ordens, das famílias, dos gêneros e das espécies. No filo dos artrópodes, por exemplo, há as classes das aranhas, dos crustáceos e dos insetos.

Marques percebeu que havia algo errado nas classes dos cnidários durante o doutorado, concluído em 1997: animais muito diferentes, provavelmente com ancestrais distintos, estavam em um mesmo grupo. Foi puxando a ponta do novelo que ele conseguiu identificar e caracterizar os Staurozoa, que ganharam esse nome em razão de uma de suas principais características: o pedúnculo em forma de cruz (em grego, stauros), que fixa o animal às rochas. A Halyclistus octoradiatus , a espécie estampada na capa da revista Invertebrate Biology , exibe um pedúnculo vermelho vivo, que lembra uma língua colocada para fora da boca. Seus oito tentáculos amarelos, com as pontas cor-de-rosa, deixam esse invertebrado dos mares com forma semelhante à de uma flor.

“Os Staurozoa trazem informações básicas sobre os primeiros passos de evolução da vida na Terra”, comenta Allen Collins, colaborador de Marques na Alemanha. Até os dois começarem a trabalhar juntos, em 1999, a maioria dos estudos sobre os cnidários enfatizava apenas a descrição de espécies, numa abordagem de varejo, sem uma visão abrangente. “Ainda hoje são raros os trabalhos sobre os maiores conjuntos de seres vivos, que são fundamentais porque, quanto maior a abrangência, mais significativo o impacto”, diz o pesquisador da USP.

Raridades no Brasil
A nova classe é formada por duas ordens. A primeira, Conulatae, abriga apenas representantes fósseis, que teriam existido de 550 a 200 milhões de anos atrás, entre os períodos geológicos Cambriano e Triássico. As espécies dessa ordem tinham a forma de um cone de sorvete e viviam aderidas a superfícies marinhas, hoje de depósitos fossilíferos, localizados principalmente nas atuais bacias dos rios Amazonas e Paraná, ocupadas por água salgada há milhões de anos.Os cerca de 50 representantes vivos formam a outra ordem, Stauromedusae.

Estão nesse grupo as medusas fixas, com até 5 centímetros de comprimento, e um corpo formado por uma base cilíndrica com uma ventosa em uma das extremidades e os tentáculos na outra. Suas cores variam de um vermelho ou laranja vivos a um marrom pálido. Solitários e carnívoros, alimentando-se de larvas de crustáceos e de outros animais, são comuns em águas frias do litoral do Japão, do Canadá e dos Estados Unidos. O Brasil possui apenas uma espécie, a Kishinouyea corbini , com no máximo 1 centímetro de comprimento. “Até hoje só foram encontrados dois exemplares dessa ordem, um no litoral do Espírito Santo e outro em Cabo Frio, no Rio de Janeiro”, conta Marques. “São raríssimos por aqui.”

Até o reconhecimento dos Staurozoa havia quatro classes conhecidas de cnidários, assim chamados por possuírem células urticantes conhecidas como cnidócitos em seus tentáculos. A primeira é a Anthozoa representada pelos corais e pelas anêmonas-do-mar, abundantes em águas rasas. Os Scyphozoa são o grupo das águas-vivas, capazes de se deslocar e nadar livremente, como a Aurelia aurita , uma das espécies mais conhecidas, com cerca de 15 centímetros de diâmetro, cujo formato lembra um guarda-chuva azulado e quase transparente.

As hidras, incluindo a mais famosa delas, a caravela-do-mar (Physalia physalis), fazem parte da Hydrozoa, a terceira classe. Em sua fase de larva – ou pólipo, antes de se tornar um adulto ou medusa -, os animais dessa classe se parecem com uma miniárvore de galhos muito finos, como a Corydendrium parasiticum .

Se essas três classes foram propostas ainda durante o século 19, a quarta, a Cubozoa, foi descrita apenas em 1975 pelo alemão Bernhard Werner. É formada por cerca de 25 espécies, conhecidas genericamente como águas-vivas – algumas delas venenosas, como a vespa-do-pacífico (Chironex fleckeri), que habita os mares próximos à Austrália. No litoral brasileiro, é possível encontrar aChiropsalmus quadramanus , que chega a 15 centímetros de diâmetro, e a Tamoya haplonema , ambas com um formato semelhante a sinos – e venenosas.

Antes de ganhar vida própria, os representantes da classe Staurozoa faziam parte dos Scyphozoa, mas as análises moleculares de Marques e Collins, combinadas com análises de evolução morfológica, mostraram que havia mais diferenças do que semelhanças entre os dois conjuntos de animais. Era como se uma ave como uma galinha estivesse no mesmo conjunto do morcego, um mamífero.

A reclassificação dos cnidários resultou da análise comparativa de 87 características das quatro classes então já descritas, como as estruturas das células e do próprio corpo, os tipos de ciclo de vida (alguns não apresentam a fase de pólipo, outros não chegam a medusas) e as formas de reprodução (nem sempre a fertilização é direta). Foram quase cinco anos de trabalho intensivo até se chegar à demonstração de que as quatro classes deveriam ser cinco. Agora, com o trabalho pronto, abriram-se perspectivas de entender um pouco melhor como começou a história dos animais no planeta. “Estamos tentando documentar uma pequena parte de um mundo que está muito próximo de nós”, anima-se Collins.

O Projeto
Relações Filogenéticas nos Cnidaria, com ênfase nos Medusozoa (nº 96/10544-0); Modalidade Jovem Pesquisador; Coordenador
Antonio Carlos Marques – IB/USP; Investimento R$ 120.799,43

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