Imprimir PDF Republicar

USP 70

O Brasil que as Arcadas vislumbraram

Na série de reportagens sobre os 70 anos da Universidade de São Paulo, a marca da Faculdade de Direito do largo de São Francisco, formadora das elites no Império e na República

Miguel BoyayanA Faculdade de Direito do largo de São Francisco, a mais antiga das unidades que há sete décadas deram origem à Universidade de São Paulo (USP), preserva os sinais de vigor que a transformaram em paradigma do ensino superior já nos tempos em que o Brasil era um império dos trópicos e a cidade de São Paulo não passava de burgo bucólico e provinciano. No último ranking do Provão, a faculdade aparecia em primeiro lugar, seguida por escolas jurídicas de Minas Gerais, do Paraná, do Espírito Santo, da Bahia, do Rio de Janeiro, de Brasília e da cidade paulista de Franca.

Pode-se afirmar que todas essas escolas alcançaram excelência mirando-se no exemplo da instituição paulistana. Também é certo que elas aliviaram de responsabilidades históricas a “velha e sempre nova” Academia, como gostam de tratá-la seus bacharéis.Aberta em 1828 nas instalações de um antigo convento franciscano no centro de São Paulo, a faculdade por muito tempo representou uma das escassas opções da oligarquia nacional para ilustrar seus filhos. Alunos de toda parte aportavam em São Paulo.

Dos 33 inscritos na primeira turma, só nove moravam na capital; oito vieram do rico interior agrícola da província, dez do Rio, quatro de Minas Gerais e dois da Bahia. Essas levas pioneiras de estudantes seriam as primeiras a acalentar o sonho cosmopolita da futura metrópole. A cidade fora escolhida para acolher o curso jurídico com o argumento de que não oferecia diversões a distrair os estudantes e o custo de vida era baixo. Isso não durou muito tempo. Entre as décadas de 1830 e 1870 – antes que a riqueza do café e o advento das ferrovias transformassem a cidade – São Paulo foi um território de estudantes e a presença deles estimulou a construção dos primeiros hotéis, teatros e casas de diversão.

A faculdade foi criada, pouco mais de cinco anos após a proclamação da Independência, com a missão de forjar uma elite de homens públicos capaz de gerir a nação – a Universidade de Coimbra passara a hostilizar os aspirantes a bacharéis oriundos da colônia desgarrada. Se a meta era preparar os “homens hábeis” que comandariam o país, se a intenção era conferir base intelectual à elite governante, pode-se dizer que o objetivo rendeu frutos fartos e duradouros.

Até pelo menos a Segunda Guerra Mundial, a Academia foi o principal pólo de formação de quadros para a política, a Justiça e o jornalismo no país. Em março de 1868, o vaporSanta Maria desembarcou no porto de Santos trazendo dois estudantes baianos mal saídos da adolescência que marcariam a trajetória da faculdade e a história do Brasil. Um deles era Ruy Barbosa, o jurista que moldaria a Constituição republicana, o poliglota que representaria o Brasil na Conferência de Haia.

O outro era o poeta Castro Alves – que morreria de tuberculose três anos mais tarde, mas formou o trio de poetas românticos com os colegas Fagundes Varella e Álvares de Azevedo. O jovem fluminense Juca Paranhos também estudou lá. Filho de um ministro do Império, o aluno Juca, o lendário barão do Rio Branco, seguiria carreira política e diplomática e teria um papel na delimitação das fronteiras brasileiras no sul, no extremo norte e no extremo oeste do país.

No final do século 19, estima-se que sete em cada dez deputados brasileiros haviam passado pelas Arcadas – outro apelido da faculdade, referência aos sustentáculos da construção de taipa do convento franciscano, reconstituídos no novo prédio, erguido na década de 1930.A República Velha (1889-1930) foi, antes de tudo, uma República de bacharéis do largo de São Francisco. Oito presidentes dessa fase formaram-se nas Arcadas: Prudente de Moraes, Campos Salles, Afonso Pena, Rodrigues Alves, Delfim Moreira, Venceslau Brás, Arthur Bernardes e Washington Luís.

Também sairiam da instituição 45 governadores da Província e do Estado de São Paulo. No início do século 20, a Academia passaria a dividir com outras instituições, como a Faculdade de Medicina e a Escola Politécnica, a primazia de formar a elite de São Paulo. Igualmente, os bacharéis foram cedendo espaço na gestão pública para a tecnocracia (as demandas do país tornavam-se mais complexas) e para os militares (seus antagonistas, que chamavam os políticos de “casacas”).

Curiosamente, a faculdade só voltou a produzir outro chefe da nação – mesmo assim, em experiência fugaz – nos anos 1960: foi na militância estudantil das Arcadas que Jânio Quadros ensaiou sua retórica. A massificação do ensino superior não ofuscou a importância da faculdade, que continuou a atrair a elite dos candidatos no vestibular e é um raríssimo exemplo de aprovação maciça nos exames da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O país hoje tem mais de 700 escolas de direito e 400 mil advogados.

A efervescência do largo de São Francisco deixou marcas até onde menos se imagina. O sanduíche bauru ganhou esse nome porque era o preferido do estudante de direito Casemiro Pinto Neto no restaurante Ponto Chic, centro de São Paulo. Casemiro, conhecido como Bauru – a cidade paulista onde nasceu -, cedeu o apelido ao sanduíche.

O bordão “é pique, é pique, é hora, é hora, é hora, rá-tim-bum”, incorporado no Brasil aoParabéns a você , é uma colagem de bordões dos pândegos estudantes das Arcadas da década de 1930. “É pique, é pique” era uma saudação ao estudante Ubirajara Martins, conhecido como “pic-pic” porque vivia com uma tesourinha aparando a barba e o bigode pontiagudo. “É hora, é hora” era um grito de guerra de botequim. Nos bares, os estudantes eram obrigados a aguardar meia hora por uma nova rodada de cerveja – era o tempo necessário para a bebida refrigerar em barras de gelo. Quando dava o tempo, eles gritavam: “É meia hora, é hora, é hora, é hora”.

“Rá-tim-bum” , por incrível que pareça, refere-se a um rajá indiano chamado Timbum, ou coisa parecida, que visitou a faculdade – e cativou os estudantes com a sonoridade de seu nome. O amontoado de bordões ecoava nas mesas do restaurante Ponto Chic, com um formato um pouco diferente do que se conhece hoje: “Pic-pic, pic-pic; meia hora, é hora, é hora, é hora; rá, já, tim, bum”.

Como isso foi parar no Parabéns a você ? “Os estudantes costumavam ser convidados a animar e prestigiar festas de aniversário. E desfiavam seus hinos”, conta o atual diretor da faculdade, Eduardo Marchi, de 44 anos, que relembrou a curiosidade em seu discurso de posse, dois anos atrás. Em 1934, a faculdade deixou de ser uma escola federal, foi incorporada à Universidade de São Paulo – mas manteve-se ciosa das tradições. As tentativas de transferir a sede para a Cidade Universitária foram rechaçadas – os alunos chegaram a arrancar a pedra fundamental do que seria o novo prédio.

A defesa do ideal da liberdade é uma marca da instituição – e também a origem de um paradoxo histórico. Os estudantes do largo de São Francisco e seu combativo Centro Acadêmico 11 de Agosto engajaram-se em boa parte das lutas democráticas, do abolicionismo à Revolução Constitucionalista de 1932, da liberdade de imprensa ao movimento pelos direitos humanos, da oposição ao Estado Novo à campanha pelas eleições diretas e pela Constituinte com participação popular, nos anos 1980.

O alemão Julio Frank e o italiano Líbero Badaró, ativistas liberais e professores do curso preparatório para a faculdade no Primeiro Reinado, tornaram-se ícones das primeiras gerações de alunos. “Mas a origem elitista transformava boa parte dos alunos inflamados em ardentes defensores da ordem quando alçavam carreira na política e na magistratura”, diz a historiadora Ana Luiza Martins, autora do livroArcadas – História da Faculdade de Direito do largo de São Francisco , em parceria com a também historiadora Heloisa Barbuy.

Na história recente, bacharéis do largo de São Francisco tiveram papel importante na redemocratização do país – Ulysses Guimarães, o artífice da Constituição de 1988, e o ex-senador e governador André Franco Montoro são egressos da instituição. O corpo docente também teve nomes como Goffredo da Silva Telles, que, em 1977, ousou exigir a volta do Estado de direito na comemoração dos 150 anos dos cursos jurídicos do país.

Mas alguns professores emprestaram seu brilho acadêmico a causas liberticidas, caso dos ex-diretores da faculdade Luiz Antonio da Gama e Silva, ministro da Justiça do marechal Costa e Silva e redator do Ato Institucional 5, e Alfredo Buzaid, que sucedeu Gama e Silva no governo do general Emílio Médici, o mais opressivo do período militar. Independentemente das divergências doutrinárias ou ideológicas, os professores sempre cultivaram os civilizados preceitos do respeito e da tolerância. “Há muito se diz que a congregação da faculdade é o lugar onde se aprende a divergir polidamente”, diz o professor aposentado e ex-diretor da faculdade Dalmo de Abreu Dallari, ativista dos direitos humanos desde os anos 1970.

A presença de alunos e mestres da faculdade no cenário jurídico sempre foi marcante – Clóvis Bevilacqua, João Mendes Júnior, Teixeira de Freitas e Vicente Rao são exemplos. O Código Civil brasileiro, criado em 1916 sob a presidência de um aluno das Arcadas, Venceslau Brás, foi reformado sob a coordenação de um jurista forjado na instituição, Miguel Reale. Na década de 1970, com a criação dos cursos de pós-graduação, a faculdade assumiu a missão de produzir pesquisa. Não é uma tarefa simples – e nessa dificuldade a instituição tem a companhia dos demais cursos do país.

“Boa parte da pesquisa em direito no Brasil e na faculdade ainda se debruça sobre a análise de doutrinas e de questões de jurisprudência, sem uma pesquisa de campo ou base filosófica ou sociológica”, diz o professor Antonio Luis Chaves Camargo, presidente da Comissão de Pesquisa da faculdade. Eduardo Bittar, professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito – e um estudioso da questão da pesquisa jurídica -, complementa: “As pesquisas empíricas, os estudos de caso, as pesquisas documentais, as análises sociológicas ainda são esteios negligenciados pela cultura jurídica nacional”. Não deixa de ser curioso, pois o direito compreende uma forte atividade intelectual, como se pode perceber no vigoroso mercado de livros jurídicos (muitos deles escritos por docentes do largo de São Francisco).

O que também atrapalha a pesquisa é a pouca adesão dos docentes da Faculdade de Direito ao regime de dedicação exclusiva. Apenas 10% dos 130 professores trabalham em tempo integral. A tradição brasileira é a dos docentes com pés fincados no mercado de trabalho – juízes, promotores, donos de escritórios de advocacia -, capazes de mostrar a realidade da profissão aos estudantes. A dupla militância é uma realidade desde que a faculdade foi fundada.

Na década de 1860, apenas dois terços dos 17 professores encontravam-se sempre em São Paulo – magistrados ou políticos, vários deles estavam desempenhando funções de ministro do Império ou de governador de províncias. Em países como os Estados Unidos e a Alemanha, um dos alicerces mais importantes da pesquisa jurídica é a dedicação integral dos docentes.

É certo que as Arcadas estão empenhadas em transformar progressivamente esse panorama. Cresce o número de convênios com instituições estrangeiras, como a Università degli Studi di Roma “La Sapienza” e Universtà Statale di Milano, na Itália; Université de Lyon II, na França; Universidade de Lagos, na Nigéria; University of Texas, Austin, nos EUA, entre outras. Até dez anos atrás, praticamente não havia estudantes de graduação realizando projetos de iniciação científica. Hoje 2% dos alunos já têm bolsas.

A partir de 2005, os estudantes de graduação serão obrigados a produzir uma tese para obter o grau de bacharel. A idéia da chamada Tese de Láurea, inspirada no ensino superior italiano, busca, entre outras finalidades, combater um efeito nocivo que o mercado de trabalho tenta impor à faculdade.

Os estudantes hoje são convidados a cumprir estágios em escritórios de advocacia cada vez mais precocemente, alguns até no segundo ano de curso – comprometendo o tempo de estudo. A obrigação de fazer a tese vai reforçar o vínculo dos alunos com a instituição, tornando a formação menos prática e mais reflexiva. Continua valendo uma máxima que todos os dirigentes das Arcadas repetiram orgulhosamente: o objetivo da Faculdade de Direito da USP é formar juristas, não bacharéis.

Republicar