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Agronomia

De genes e plantas anãs

Genoma da bactéria fornece pistas sobre o raquitismo da cana-de-açúcar

LUIS EDUARDO ARANHA CAMARGOEfeitos do raquitismo: cana infectada (acima) tem distância menor entre os nós do caule e pode pesar apenas a metade de uma planta sadia (abaixo)LUIS EDUARDO ARANHA CAMARGO

Em época de seca, quando há pouca água disponível, a cana-de-açúcar, como a maioria das plantas, lança mão de um expediente para garantir sua sobrevivência: pára de crescer. Para minimizar os efeitos do estresse hídrico, permanece quase dormente e desencadeia uma série de mecanismos de autodefesa. Fecham-se, por exemplo, os estômatos de suas folhas, que funcionam como poros responsáveis pela entrada e saída de gases e água da planta.

Um dos principais hormônios envolvidos nesse processo de adaptação à estiagem é o ácido abscísico (ABA), produzido naturalmente pela cana. Estudos recentes indicam que o ABA também inibe a expressão de genes de defesa da planta, tornando-a mais suscetível a patógenos. Tudo isso é sabido, está nos livros e artigos científicos de fisiologia vegetal.

Novidade é descobrir que uma bactéria nociva à cana, a Leifsonia xyli da subespécie xyli, também parece ser capaz de produzir esse hormônio e talvez usá-lo para provocar uma doença conhecida como raquitismo-das-soqueiras, para a qual não há cura. A suspeita surgiu depois que pesquisadores de São Paulo terminaram de seqüenciar o genoma integral da bactéria – que gerou um artigo científico publicado em agosto com destaque de capa na revista norte-americana Molecular Plant-Microbe Interactions – e começaram a analisar a função de alguns de seus 2.351 genes.

Há indícios de que a ação de um gene, denominado desA, leve a Leifsonia a produzir ácido abscísico no interior da cana. Se essa hipótese estiver correta, o raquitismo-das-soqueiras, que redunda em plantas de porte reduzido e com peso até 50% menor, pode ser desencadeado pelas altas concentrações do hormônio produzido pela bactéria no interior da cana. É como se o ácido abscísico sintetizado pelo fitopatógeno mandasse permanentemente um sinal para a planta de que há pouca água disponível no ambiente e o melhor a fazer é parar de crescer.

De quebra, o ABA ainda desativa os genes de defesa da cana, criando condições ideais para a bactéria se multiplicar. “Até agora não há registro de uma bactéria de planta que produza esse hormônio”, afirma o pesquisador Luis Eduardo Aranha Camargo, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), um dos coordenadores do projeto que seqüenciou o genoma da bactéria. “Mas testes in vitro indicam que a Leifsonia produz o ácido abscísico e esse dado pode ser importante para entendermos a sua patogenicidade.” O passo seguinte é comprovar se, dentro da cana, a bactéria realmente produz o hormônio e estabelecer uma ligação entre o ácido e a doença na planta.

Feita no âmbito da rede de Genomas Agronômicos e Ambientais, mantida pela FAPESP, a iniciativa que mapeou o genoma do fitopatógeno custou US$ 700 mil. A FAPESP entrou com US$ 650 mil e a cooperativa Copersucar com US$ 50 mil. Além de levantar a questão do ácido abscísico, o seqüenciamento do genoma da Leifsonia – composto de um cromossomo circular com 2,6 milhões de pares de bases, as unidades químicas que formam o DNA – produziu outras informações importantes para entender o comportamento do fitopatógeno.

Os pesquisadores constataram que 13% dos genes da bactéria são, na verdade, pseudogenes: 307 dos 2.351 genes estão truncados, incompletos. “Essas alterações podem fazer os genes perderem a sua função”, diz a pesquisadora Claudia Barros Monteiro Vitorello, da Esalq-USP, outra coordenadora do projeto. Nenhum outro fitopatógeno apresenta quantidade tão elevada de genes aparentemente não-funcionais. De tamanho semelhante ao da Leifsonia, o genoma da Xylella fastidiosa – bactéria que causa a clorose variegada dos citros (CVC), doença conhecida como amarelinho nos laranjais – apresenta apenas 2% de pseudogenes.

Pode até ser que os 307 genes incompletos da Leifsonia não sirvam mais para nada, sejam um entulho genético, mas os cientistas acreditam que eles tenham um significado. São um indício de que a bactéria passa por um processo chamado decaimento genômico. Genes que já foram úteis – e agora não são mais – perdem progressivamente a sua integridade e funcionalidade. Por que isso ocorre? Possivelmente porque a bactéria, ao longo de sua evolução biológica, mudou a sua forma de viver e hoje não precisa manter intactos tantos genes como no passado.

A Leifsonia xyli da subespécie xyli é um microorganismo que se especializou em viver num único lugar: nos vasos do xilema da cana, a parte da planta encarregada do transporte de água e sais minerais das raízes para a copa. Fora desse hábitat, não se encontra o patógeno. Portanto, genes fundamentais para a preservação de bactérias que vivem ao ar livre não são um item de primeira necessidade para a bactéria da cana. “Ela não precisa mais de muitos de seus genes”, comenta Aranha.

Essa hipótese também está sendo testada por meio da comparação da Leifsonia xyli subespécie xyli com espécies próximas que são de vida livre.Para se defender do ataque de outros microorganismos que habitam o xilema da cana, a Leifsonia parece dispor de um mecanismo capaz de ejetar de seu organismo toxinas produzidas por outros organismos que colonizam a cana, como a bactéria patogênica Xanthomonas albilineans. Aliás, a própria Xanthomonas tem uma “bomba” que expulsa venenos lançados por outros seres. Esse traço comum pode explicar a convivência das duas bactérias no interior da planta.

A longo prazo, a meta dos pesquisadores é entender como o sistema de proteção presente na Leifsonia e na Xanthomonas funciona – e quais genes estão envolvidos nesse mecanismo. “No futuro, talvez possamos alterar geneticamente a cana e dotá-la de uma bomba bacteriana que expulse toxinas produzidas por microorganismos que a atacam”, diz o engenheiro agrônomo Reinaldo Montrazi Barata, da Esalq. Assim, poderia surgir uma variedade da planta mais resistente a doenças.

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