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Física

Mentes versáteis

Físicos ajudam a resolver problemas na genética, na medicina e na liderança de equipes

Para os físicos, não existem fronteiras que delimitem o espaço em que devem atuar. Não satisfeitos em explorar as entranhas dos átomos e os astros mais distantes do céu, começaram a ocupar outros territórios e a resolver problemas em genética, biologia e medicina – mais recentemente, também na economia e na administração de empresas. São incursões com estilo: em busca das regras simples que expliquem os fenômenos da natureza, eles não hesitam em deixar de lado detalhes que os especialistas de outras áreas consideram preciosos. E, dotados de uma notável capacidade de abstração, examinam fenômenos distintos – a propagação de tumores ou a flutuação do preço das ações nas bolsas de valores – a partir das mesmas técnicas matemáticas usadas em uma área da física, a mecânica estatística, para explicar as chamadas transições de fase, a exemplo da transformação da água em gelo.

No dia 8 de setembro, um encontro realizado no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) em homenagem aos 60 anos de José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP e pesquisador na área de física matemática, deixou evidente essa versatilidade, com demonstrações de que os físicos também entendem de genes, de câncer ou de bolsas de valores. Nos últimos 20 anos, o próprio Perez aplicou os métodos da física matemática para criar modelos que explicavam fenômenos como a flutuação de populações de moscas ou a capacidade de alguns materiais de tornarem-se magnéticos de modo espontâneo.

“Nenhum fenômeno da natureza”, diz ele, “pode a priori ser excluído como objeto de estudo da física, que do ponto de vista epistemológico é uma ciência arrogante. A física avoca a si o direito de estudar qualquer fenômeno natural”. No ano passado, Perez aproveitou o final de um debate sobre os 50 anos da descoberta da estrutura da molécula de DNA para, com certo humor, lançar uma provocação: “A moderna biologia deve cada vez mais ser percebida como um capítulo da física”.

A imagem do DNA
O desejo de intervir em outras áreas começou há pouco mais de 60 anos, quando o físico austríaco Erwin Schröedinger publicou o livro What Is Life?, aplicando conceitos da física para entender a surpreendente estabilidade da informação genética. Schröedinger também lançou a idéia de que os cromossomos de cada célula poderiam conter mensagens codificadas – era o código genético, mais tarde confirmado experimentalmente pelos biólogos. Foi outro físico, Francis Crick, falecido em julho, que interpretou a imagem de raios X do DNA, para a qual a própria autora, a bióloga Rosalind Franklin, olhava sem sem imaginar que era a prova final da estrutura helicoidal da molécula responsável pela transmissão das características hereditárias entre os seres vivos.

De lá para cá,só cresceu a integração dos físicos com especialistas de outras áreas. “Além de empregar os princípios da física para compreender melhor a biologia, queremos, no sentido inverso, usar a biologia para entender a física”, diz o físico José Nelson Onuchic, co-diretor do Centro de Física Biológica Teórica (CTBP, na sigla em inglês), criado em 2002 na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), nos Estados Unidos, com um financiamento de US$ 10,5 milhões da Fundação Nacional de Ciência (NSF). Físicos e químicos do CTBP, trabalhando com grupos experimentais, conseguiram demonstrar os princípios de enovelamento, agregação e reconhecimento de proteínas, já empregados no desenho de fármacos, e do funcionamento de canais de cálcio das células, com aplicações potenciais na regulação dos batimentos cardíacos.

Líder isolado
Mas quem não sabe o que é uma hamiltoniana ou um modelo de Ising, termos típicos no jargão dos físicos, pode ficar tranqüilo: cada vez mais os físicos procuram aprender a linguagem de outras áreas e tornar suas conclusões mais claras – ainda que seja um processo lento. Um dos palestrantes do encontro do dia 8, o físico português João Amaro de Matos passou dez anos estudando psicologia social, teoria econômica e sociologia, depois de se formar em física na USP e em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.

Foi como professor da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa que chegou a um modelo matemático que sugere como deve agir um presidente de uma empresa, um professor ou, de modo geral, alguém que cuida de muitas pessoas, a partir do apoio ou da rejeição que receber do grupo.De acordo com esse modelo, elaborado em conjunto com o economista Luis Almeida Costa, também de Lisboa, um presidente ou professor do tipo durão que se sinta isolado e sem apoio do grupo deve manter suas propostas na surdina e se comunicar apenas com os responsáveis pelos grupos de trabalho, até que as atitudes contrárias comecem a se diluir em meio à adesão crescente.

Se contar com apoio de pelo menos uma parte do grupo, o melhor a fazer é fortalecer as equipes e incentivar a troca de idéias. “Esse modelo vai mostrar, para cada situação, como controlar as interações entre as pessoas, de modo que todos sigam a atitude do líder do grupo”, comenta Matos, que foi aluno de mestrado e doutorado de Perez e morou no Brasil dos 14 aos 28 – hoje ele tem 43 anos.

O presidente da empresa ou o professor diante dos alunos, à medida que consigam mudar a atitude do grupo e ganhem adesões, comportam-se como os cristais que se formam na água prestes a se transformar em gelo e são capazes de atrair rapidamente outras moléculas de água e constituir cristais cada vez maiores, até toda a água congelar, a 0°C.

Publicada em 2002 no Computational and Mathematical Organization Theory , essa teoria explicou as estratégias inspiradas apenas na intuição e no empirismo, sem uma equação sequer. Um exemplo analisado pela equipe de Lisboa é a Divisão de Engenharia Aeroespacial da General Electric, tomada anos atrás por um turbulento processo de reformulação: em menos de dois anos, entraram e saíram três presidentes, até que um quarto conseguiu estabelecer os canais de comunicação mais adequados, eliminou os conflitos internos e retomou o caminho dos lucros.

Matos aplica o conceito de contágio de atitude para embasar também os mecanismos de sutis variações de preços nas bolsas de valores, regidas, de acordo com uma área relativamente nova, a econofísica, pelo comportamento de imitação: cada investidor compra ou vende ações de acordo com a tendência do momento, para evitar riscos e se manter no grupo a que pertence. “No mercado financeiro”, diz ele, “poucos sabem o que realmente estão fazendo”. Interações em rede e hierarquias explicam também como, no interior do corpo humano, as enzimas se organizam e os tumores se espalham.

Em busca de uma forma de diferenciar células normais das tumorais que facilite o tratamento médico, uma equipe do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP e outra do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer examinaram o comportamento de 376 genes de 99 amostras de tecidos de pessoas normais e de portadores de câncer do aparelho digestivo, normalmente diagnosticado já em estágio avançado. Num primeiro ensaio, realizado no início do ano passado, um computador do IME funcionou três semanas sem parar em uma análise exaustiva para identificar pequenos grupos de genes que revelassem a distinção entre as células.

Com base nos resultados desse teste, os pesquisadores desenvolveram métodos alternativos de busca, mais realistas do ponto de vista computacional, sem comprometer a eficácia na identificação de grupos de genes que poderiam funcionar como classificadores, capazes de diferenciar uma célula normal de uma alterada.

Biochip
“É muito fácil gerar classificadores”, comenta o físico Eduardo Jordão Neves, coordenador da equipe do IME, que também apresentou seus resultados mais recentes no encontro do dia 8 na USP. “Difícil é encontrar aqueles realmente importantes, que possam ser extrapolados e empregados em outras situações.” A carreira científica de Jordão Neves iniciou-se com sua tese de mestrado, orientada por Perez, com importantes contribuições ao estudo matemático de modelos sobre materiais magnéticos.

Analisando as informações geradas por lâminas de vidro que revelam a atuação mais ou menos intensa de cada gene – os biochips -, os pesquisadores identificaram 41 duplas e 37 trios de genes que podem atuar juntos, mas de modo inverso: nas células normais, um deles pode ser produzido a mais e o outro ou os dois outros a menos, enquanto nos tumores ocorre o contrário. “A maneira de analisar dados gerados por biochips requer um forte conhecimento de matemática e de estatística que nós, médicos, não temos”, diz o médico Luiz Fernando Lima Reis, chefe do grupo do Ludwig e co-autor desse estudo, publicado em fevereiro na revista Cancer Research . Segundo ele, esse trabalho ajudou a criar classificadores moleculares para identificação precoce de outros tipos de tumores de cabeça e pescoço, prevendo quais indivíduos devem receber um tipo ou outro de tratamento.

Tapete vermelho
Algo mudou. Os físicos, que antes tinham o hábito de entrar aonde não eram chamados, agora são convidados e valorizados, numa época em que biólogos moleculares, geneticistas, biólogos em geral e médicos se vêem diante de um volume indescritível de informações. Há dez anos se estudava um gene por vez, mas hoje um conjunto de biochips analisa a ação de 10 mil genes a um só tempo.

Em março de 1999, ao discursar na celebração do centenário da Sociedade Americana de Física (APS, na sigla em inglês), o médico norte-americano Harold Varmus, então diretor dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, destacou o valor dos métodos de trabalho e dos equipamentos criados pelos físicos, como a radiografia, a tomografia, a ultra-sonografia, a ressonância magnética e a microscopia eletrônica, que colocaram a pesquisa biomédica em outro patamar.

Em seguida, Varmus lembrou que foi um físico matemático, Warren Weaver, quem primeiro usou o termo biologia molecular em 1932, sob o argumento de que, já naquela época, “a distinção entre física e química e mesmo matemática de um lado e biologia de outro seria tão ilusória quanto infeliz”. Por fim, talvez para não deixar o ego dos físicos inflar demais, o diretor dos NIH comentou que a luta contra as doenças depende também das energias de especialistas de outras áreas, como engenharia, ciências da computação, psicologia, sociologia e antropologia.

Evidentemente, a rapidez e a relevância dos resultados são proporcionais à capacidade de interação entre os especialistas das mais diversas áreas, possibilitada por uma linguagem comum. “Meu grupo se dispôs a entender um pouco mais de matemática, do mesmo modo que a equipe de Jordão Neves estudou biologia com mais atenção”, conta Reis, do Ludwig. “Ambos cedemos e hoje não falamos mais 100% grego uns para os outros.”

No Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, José Fernando Fontanari avançou mais facilmente em uma de suas linhas de trabalho, sobre os modelos matemáticos que tentam explicar o surgimento e a organização dos primeiros seres vivos, quando se aliou a um biólogo teórico, Eörs Szathmáry, do Collegium Budapest, na Hungria. Na Faculdade de Medicina da USP Eduardo Massad, que se graduou em medicina e em física, coordena um grupo com outros físicos e médicos para prever as possibilidades de disseminação de doenças como a febre amarela ou a dengue, por meio de equações que levam em conta variáveis como a taxa de transmissão dos agentes causadores e o número de pessoas que o mosquito transmissor pode picar em um dia.

Limites
Os físicos sabem: suas propostas só serão realmente entendidas quando embaladas nos referenciais teóricos conhecidos pelos especialistas de outras áreas. “Não adianta chegar com modelos prontos e publicar os resultados apenas nas revistas de física”, comenta Matos. Eles também sabem que devem tomar cuidado ao aplicar os modelos matemáticos à realidade. Formulações mais realistas abdicam do gelo, formado apenas por moléculas de água, para se inspirarem em materiais sem estruturas definidas, como o vidro, constituído por elementos diferentes entre si, cada um interagindo com outro de modo próprio.

De qualquer maneira, fica claro que a competência em lidar com estruturas matemáticas que descrevem sistemas complexos pode se espraiar do ferromagnetismo para ambientes tão diversos quanto a bolsa de valores ou um biochip. Mesmo assim, nem sempre os físicos são capazes de expressar em fórmulas a complexidade da natureza. Em uma célula, a rede de interações entre as moléculas é absurdamente emaranhada. As ciências humanas também carregam a imprevisibilidade, já que as pessoas podem mudar de comportamento movidas pela própria vontade, diferentemente de um átomo.

O físico Christof Koch e o biólogo Gilles Laurent, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, Estados Unidos, em um artigo publicado na Nature em 1999, indicaram uma diferença básica entre o cérebro e grandes sistemas físicos como as galáxias: “O cérebro tem uma função, que é proteger o indivíduo (ou sua pele) em seu ambiente e assegurar a continuidade de seu genoma”. Já os aglomerados de estrelas teriam apenas uma brute existence – puramente física.

Mas os físicos acreditamque ainda podemir muito além, como afirmou o norte-americano Robert Laughlin em uma conferência em San Diego em 2000, dois anos depois de ter ganho o Nobel de Física: mais do que serem meros coadjuvantes e simplesmente fazer cálculos, os físicos é que devem dizer o que é realmente importante em cada área da ciência. Schröedinger, com o What Is Life em mãos, estaria de pleno acordo.

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