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Física

Outra forma de ver a fusão atômica

Experimento redefine o conhecimento sobre a interação de núcleos, da qual resulta a energia do Sol

EDUARDO CESARRepresentação de uma colisão atômica: nem sempre há fusãoEDUARDO CESAR

Com freqüência, a natureza se revela mais complexa do que os físicos gostariam e os obriga a repensar os modelos criados para explicá-la. Um experimento realizado na Bélgica com a participação de uma pesquisadora brasileira esclarece uma dúvida que inquietou os físicos nos últimos 20 anos: saber se um tipo especial de núcleo atômico – com partículas neutras (nêutrons) a mais e quase o dobro do tamanho normal – tornaria de dez a cem vezes mais fácil a fusão nuclear. Nesse fenômeno, os núcleos de dois átomos se unem e originam outro mais pesado, liberando quantidades elevadas de energia.

Possivelmente o mais completo feito até agora, esse estudo revela que lançar um núcleo exótico a altíssimas velocidades contra o núcleo de outro átomo não aumenta a probabilidade de ambos se fundirem com o choque. Também não diminui. Essa supertrombada atômica gera outra forma de interação: o núcleo atômico comum recebe desse tipo de núcleo, chamado exótico, seus nêutrons excedentes, que provavelmente orbitavam ao seu redor formando uma espécie de nuvem, como informam os dados publicados em 14 de outubro na Nature.

“Esse resultado não significa que retornamos à estaca zero, mas, ao contrário, saímos dela”, afirma a física Alinka Lépine-Szily, da Universidade de São Paulo (USP), co-autora do estudo da Nature. “Os modelos teóricos que indicavam uma probabilidade maior de ocorrer fusão nuclear nesses casos terão de ser revistos, agora com base em informações detalhadas.” Quem não se deixou apaixonar pela beleza da física pode até achar que essa descoberta não passa de detalhe. Mas não é. A fusão nuclear é a fonte de energia das estrelas como o Sol.

No interior das estrelas, a fusão ocorre porque a força gravitacional exerce uma pressão que aproxima os núcleos uns dos outros. Parte da energia liberada escapa na forma de radiação e torna possível a vida na Terra. É também a fusão dos núcleos atômicos de elementos químicos mais leves e simples – como o hidrogênio, formado apenas por uma partícula de carga elétrica positiva (próton) – que origina os núcleos de átomos maiores e mais pesados, a exemplo do hélio, do lítio e do carbono.

O interesse em compreender e dominar a fusão nuclear surgiu no início do século passado, quase 2.500 anos após o filósofo grego Leucipo postular que a matéria era constituída por átomos. No final da década de 1930, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, o físico alemão Hans Bethe constatou que a fusão dos núcleos de dois átomos de hidrogênio liberava energia. Nessa fase de turbulência política e instabilidade econômica, esse fenômeno físico passou a ser visto como possível fonte de energia alternativa aos combustíveis fósseis – em especial carvão e petróleo.

A compreensão de como se comportam as partículas no núcleo dos átomos daria também ao ser humano um poder de destruição jamais visto, com o uso da fusão para a produção de poderosíssimas armas nucleares, como a bomba de hidrogênio ou bomba H – já as bombas atômicas, como as lançadas sobre o Japão, são produzidas com base no fenômeno oposto, a fissão nuclear, em que o núcleo de átomos grandes se rompe, liberando energia. Na bomba H, a união dos núcleos de deutério – forma particular de hidrogênio cujo núcleo contém um próton e um nêutron – origina o elemento químico hélio, numa transformação semelhante à observada no interior do Sol.

Ao se combinarem, esses núcleos perdem menos de 1% de sua massa, que se transforma em uma verdadeira montanha de energia, como prevê uma das mais conhecidas equações da física, desenvolvida por Albert Einstein, E = mc2 . Essa fórmula indica que a energia (E) produzida numa reação nuclear corresponde à massa (m) perdida multiplicada pela velocidade da luz (c) elevada ao quadrado – daí o valor ser tão elevado.

Mas não é tão simples repetir por aqui o que se passa no coração das estrelas. No cerne desses corpos celestes a pressão gravitacional e as temperaturas são tão elevadas que núcleos atômicos distintos se aproximam a ponto de conseguir se unir, vencendo a força de repulsão. Até é possível atingir de modo artificial temperaturas tão elevadas, mas o consumo de energia é tamanho que praticamente torna a fusão inviável do ponto de vista econômico – só para ter uma idéia, é necessário explodir uma bomba atômica para iniciar a fusão dos núcleos na bomba H.

Em 1985, a equipe do físico Isao Tanihata, do Centro de Física Nuclear do Japão, notou que núcleos exóticos de lítio, chamados Lítio 11, contendo oito partículas neutras, eram mais volumosos do que seria de esperar. O motivo é que dois dos seus quatro nêutrons excedentes não permanecem coesos no núcleo, mas formam uma nuvem de nêutrons – na natureza, o núcleo do lítio contém apenas quatro nêutrons, além de três prótons.

Nesses núcleos exóticos, que duram menos de um segundo depois de criados, algumas dessas partículas neutras permanecem mais afastadas, formando uma espécie de nuvem ou halo, como dizem os físicos. Logo se imaginou que, menos coesos, núcleos exóticos facilitariam a fusão. Além disso, por apresentarem uma massa maior, era de supor que a força de atração entre os núcleos passasse a atuar a distâncias maiores e, desse modo, compensasse a força que repele as partículas de mesma carga elétrica – positiva, no caso dos prótons dos núcleos atômicos.

O parodoxo do hélio 6
Uma equipe internacional coordenada por Atsumasa Yoshida, do Japão, e Cosimo Signorini, da Itália, tentou comprovar a maior probabilidade da fusão de núcleos exóticos, em experimentos com Berílio 11 (com quatro prótons e sete nêutrons), mas os resultados foram negativos. Outro teste realizado por James Kolata, da Universidade Notre Dame, em Indiana, Estados Unidos, revelou o oposto: a fusão nuclear ocorria mais facilmente com o hélio 6. Com esses resultados, era impossível chegar a uma conclusão. Na tentativa de desfazer a dúvida, Jean Luc Sida, da Comissão de Energia Atômica, na França, reuniu um grupo internacional – formado por físicos belgas, franceses, italianos, poloneses e brasileiros – para realizar um experimento mais completo e uma análise mais detalhada que as anteriores.

Utilizando o acelerador de partículas do Centro de Pesquisa de Cíclotron em Louvain-la-Neuve, os físicos lançaram núcleos de hélio 6 contra núcleos bem maiores, de urânio 238 – algo como sacar uma bola de tênis a velocidades próximas à da luz contra uma de futebol de campo. Se tudo desse certo e o hélio 6 facilitasse a fusão completa, deveriam surgir núcleos de um elemento químico ainda maior e mais pesado: o plutônio 244, com 94 prótons e 150 nêutrons. Quase instantaneamente após a fusão, o plutônio sofreria fissão e se dividiria em dois outros elementos químicos, emitindo radiação. Ao mesmo tempo, como se verificou, haveria emissão de partículas alfa, formadas por dois prótons e dois nêutrons, idênticos ao núcleo de hélio 4, características das reações nucleares.

A análise inicial dos dados, feita por Riccardo Raabe, primeiro autor do estudo da Nature, mostrou que realmente o hélio 6 havia provocado um número maior de fissões que o hélio 4. Mas essa era parte da informação. Faltava verificar o que havia se passado no início desse processo de transformações e disparado a fissão – toda fusão nuclear é seguida de fissão, mas nem toda fissão é causada pela fusão de núcleos atômicos. Quando avaliou o caminho que as partículas alfa percorriam até os detectores e a energia com que ali chegavam, o grupo do qual participou Alinka constatou que elas resultavam da perda de dois nêutrons do hélio 6 – aqueles que formavam o halo – para o núcleo de urânio 238, que, em seguida, sofria fissão. Estava claro: em boa parte das colisões, em vez da fissão ocorria transferência de nêutrons.

E o que aconteceu com o hélio 6? Na transferência, pode ter se rompido e liberado os dois nêutrons para o urânio, continuando a existir como hélio 4. Alinka pretende aprofundar na própria USP o estudo dessas reações que competem com a fusão. No início deste ano, começou a funcionar no Instituto de Física um equipamento que integra o projeto Ribras (sigla em inglês para feixes de íons radioativos) capaz de produzir feixes de núcleos exóticos (ver Pesquisa FAPESP nº 99, de maio de 2004). “Poderemos fazer aqui o que antes só era possível no exterior.”

O Projeto
O estudo de núcleos exóticos com feixes radioativos produzidos no laboratório Pelletron-Linac do IFUSP (nº 03/10099-2); Modalidade
Projeto Temático e Pronex; Coordenadora Alinka Lépine-Szily – USP; Investimento R$ 600.723, 48 (FAPESP e CNPq)

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