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Engenharia de materiais

Estado da resistência

Uso de plasma amplia a vida útil de próteses ortopédicas e ferramentas industriais

EDUARDO CESARCâmara de vácuo onde próteses e peças metálicas são tratadas por imersão em plasmaEDUARDO CESAR

Se tudo correr bem, dentro de três anos a empresa Baumer, da cidade paulista de Mogi-Mirim, maior fabricante latino-americana de implantes ortopédicos, colocará no mercado próteses de joelho e de fêmur muito mais resistentes e duráveis do que as produzidas atualmente. Esse avanço será possível em razão do uso de um método de tratamento inovador para superfícies metálicas, batizado de implantação iônica por imersão em plasma (uma espécie de gás que é considerado um dos estados da matéria com estrutura molecular, atômica e de partículas diferente dos tradicionais sólido, líquido e gasoso). Esse tratamento aumentou a dureza das ligas de aço que compõem as próteses em até 250% e reduziu o desgaste em cerca de 160 vezes.

“O método revelou-se biocompatível e os resultados foram além das nossas expectativas. Testes laboratoriais demonstraram um considerável aumento na sobrevida das próteses, que normalmente é de 12 a 15 anos”, diz o químico Roberto Parpaioli, gerente da Divisão de Pesquisa e Desenvolvimento da Baumer. “Agora nossa intenção é organizar um ou dois grupos clínicos para fazer exames in vivo nas próteses submetidas à implantação iônica por plasma. Acreditamos que dentro de dois ou três anos estaremos com a avaliação clínica concluída.”

Para esses exames, a empresa vai escolher duas equipes de ortopedistas ligados a uma universidade. Cada grupo clínico terá, em média, cinco profissionais e de dez a 30 pacientes. A Baumer cederá todas as próteses e arcará com os custos dos testes. Melhorar a dureza e, conseqüentemente, a vida útil de implantes ortopédicos é uma das muitas aplicações dessa técnica de tratamento superficial, desenvolvida de forma pioneira, no Brasil, pela Metrolab, empresa de São José dos Campos especializada na calibração, ajuste e manutenção de instrumentos industriais mecânicos e eletrônicos.

O desenvolvimento da técnica foi feito em colaboração com o Laboratório Associado de Plasma (LAP) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O método de implantação iônica por imersão em plasma (IIIP ou 3IP) pode ser empregado para melhorar as propriedades tribológicas (características que envolvem dureza, resistência à corrosão e ao desgaste e redução de atrito e fricção), ópticas e eletrônicas de um variado leque de materiais, como alumínio, titânio, aço inoxidável, ligas metálicas, polímeros, plásticos, teflon, náilon e, no caso de semicondutores, possibilitar a criação de dispositivos cada vez menores. Assim, além das próteses ortopédicas, também podem ser beneficiadas as ferramentas e os componentes industriais das áreas automotiva, médica, odontológica e aeroespacial, como facas de corte, moldes para alumínio, pistões de motores, rolamentos, brocas de aço, implantes odontológicos e garrafas de polímero poli (tereftalato de etileno), mais conhecidas como PET, usadas para acondicionar refrigerantes e água mineral.

Descoberta no final dos anos de 1980 por pesquisadores da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, a técnica 3IP ainda é pouco explorada comercialmente no mundo. Os principais grupos de pesquisa localizam-se nos Estados Unidos, na Alemanha, na Austrália, no Japão, na China e na Coréia. “No Brasil nós trabalhamos com essa tecnologia na área de tratamento de materiais desde 1995”, diz o físico Mário Ueda, pesquisador do LAP do Inpe que coordenou o final do projeto na Metrolab.

No início, a coordenação foi do também pesquisador do Inpe, Raul Murete de Castro. “No instituto nós utilizamos vários tipos de plasma, como, por exemplo, na aplicação em propulsão iônica para controle dos satélites no espaço e no tratamento de superfícies de polímeros em sistemas aeroespaciais”, diz Ueda. “Desde o início já sabíamos que o uso do 3IP teria uma ampla aplicação comercial porque essa técnica mostrou-se altamente eficiente para estender a vida média de muitas ferramentas e componentes utilizados nas indústrias.”

O repasse da tecnologia e a realização de pesquisas complementares por parte da Metrolab só foram possíveis com o financiamento da FAPESP recebido pela empresa por meio do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). Os recursos, da ordem de mais de R$ 400 mil, foram usados para aquisição dos equipamentos necessários para a construção de uma estação de processamento 3IP. O coração do sistema é uma câmara de vácuo de aço inox, na qual é gerado o plasma e o tratamento é implementado na peça. Junto dessa câmara, que tem cerca de 100 litros de volume, está instalado um sistema de vácuo e uma fonte de tensão de corrente contínua, responsável pela geração do plasma. Complementam o sistema um equipamento de injeção de gás, um pulsador de alta-tensão e uma fonte para controle dos parâmetros do plasma.

O primeiro passo do processo de tratamento é a colocação da peça na câmara de vácuo e a criação do plasma, um gás ionizado produzido em altas temperaturas. Ele é diferente dos estados sólido, líquido e gasoso porque a ionização (perda ou ganho de elétrons) das suas partículas, moléculas e átomos é significativa. Para a produção do plasma foi usado principalmente o gás nitrogênio – dependendo da aplicação, gases como hélio, argônio e hidrogênio também podem ser usados.

A finalidade do tratamento é implantar íons positivos de nitrogênio, presentes no plasma, na peça – são esses íons que conferem melhores características ao material. Para que isso ocorra, a peça sofre um bombardeio de pulsos negativos de alta-tensão, que variam de 10 mil a 100 mil volts. Ao receber esses pulsos, a peça atrai os íons positivos de nitrogênio do plasma. Os íons penetram até dezena de milhares de ângstrons de profundidade – 1 ângstron equivale a 10-7 milímetros, ou 1 milímetro dividido 10 milhões de vezes. A temperatura da peça, a pressão dentro da câmara e o tempo de processamento variam de acordo com o material. “No caso de polímeros, o tratamento leva cerca de 15 minutos, enquanto materiais feitos de aço precisam de uma implantação mais longa, em torno de uma hora”, afirma Ueda.

Depois que as peças são modificadas, elas passam por testes e medições para verificação da eficiência do processo. Como é quase impossível fazer esses testes nas próprias peças sem danificá-las, cada tratamento é acompanhado de amostras ou corpos de prova, avaliados posteriormente. “O teste mais importante é o perfil de concentração atômica, que revela se os íons de nitrogênio penetraram adequadamente. Além dele, analisamos a estrutura do material e medimos seu perfil de dureza e sua resistência ao desgaste”, conta o físico Luiz Angelo Berni, do LAP, que também participou do projeto.

Excelentes resultados
Durante a realização do projeto PIPE a Metrolab firmou parceria com várias empresas, além da Baumer, para a execução de tratamento superficial em diferentes materiais e componentes. Todas as peças foram cedidas de forma gratuita à Metrolab. “Os resultados mais surpreendentes foram obtidos com as ferramentas da Refal, uma fabricante de rebites e rebitadeiras com sede em São Paulo”, informa o engenheiro eletrônico Antônio Claret Pereira Fernandes, dono da Metrolab. Em uma das peças tratadas, no caso um martelo de aço, verificou-se uma melhoria de mais de 25 vezes na vida média comparada a uma peça que não foi modificada por 3IP.

Em outra, um rolete de aço, o prolongamento de vida média foi superior a quatro vezes. O principal resultado, no entanto, aconteceu numa ferramenta de punção para trabalhos em alta temperatura na produção de rebites que teve uma melhoria na durabilidade de 70 vezes. Para a Refal, esses resultados representam uma grande economia, não só na maior durabilidade, mas também na redução de tempo de troca, o que tem reflexos diretos na produtividade da indústria. O sucesso dos tratamentos rendeu bons frutos à Metrolab. “Estamos contentes porque a Refal já formalizou um pedido para processamento de um lote de ferramentas empregadas na produção de rebites e de rebitadeiras”, afirma Fernandes, acrescentando que com a estrutura atual a Metrolab tem capacidade para tratar cem peças por semana, entre rebites, martelos e próteses.

Outra parceira da Metrolab foi a AS Technology, empresa especializada na fabricação de implantes dentários de São José dos Campos. Segundo Luiz Roberto Castro de Souza Aguiar, gerente de projeto da companhia, o processo de implantação iônica tridimensional apresentou resultados altamente promissores quando aplicados a ferramentas de corte usadas na usinagem de implantes odontológicos. Em alguns casos, o aumento da vida útil da peça foi de 40% a 100% e, em outros, a qualidade foi melhorada, mas a vida útil reduzida.

“O processo de 3IP melhora sensivelmente a qualidade da usinagem dentro da nossa aplicação, como, por exemplo, não produzir película superficial, como no caso da nitretação (enriquecimento com nitrogênio) por produtos químicos. O plasma insere os íons na ferramenta, melhorando sua aresta de corte”, afirma Aguiar, que ressalta: “Sem dúvida, existe um fenômeno de melhoramento, mas ainda não dominamos todas as variáveis do processo”. Por isso, a empresa continua fazendo testes nas peças submetidas ao tratamento 3IP para descobrir a condição ideal de processamento.

A Metrolab também experimentou a aplicação da técnica 3IP em garrafas PET, com a colaboração da fabricante de cervejas Primo Schincariol. Nesse caso, o objetivo da pesquisa não era torná-las mais resistentes, mas reduzir a taxa de transmissão de oxigênio através das paredes da garrafa de polímero a fim de evitar a rápida degradação da cerveja que ocorre depois de uma ou duas semanas em PET não tratadas. Ao final do processo, testes preliminares revelaram que houve um pequeno aumento da barreira contra penetração de oxigênio, o que proporcionou uma leve melhora na conservação do produto. No entanto, o processo ainda precisa ser aperfeiçoado para que a cerveja seja conservada por pelo menos seis meses.

Limpo e econômico
Uma das principais características do método 3IP é o fato de ele poder ser aplicado em peças de grande porte e de formatos complexos porque o tratamento tem amplitude tridimensional. Além disso, as peças não sofrem alterações em suas dimensões e a implantação pode ser feita individualmente ou em fornada, com várias peças ao mesmo tempo. Para Ueda, o método apresenta vantagens sobre os processos normalmente empregados no tratamento de superfícies, como a nitretação, que consiste na colocação de átomos de nitrogênio em peças de aço por meio de banhos de sais ou imersão em gás amônia sob alta pressão.

“Esses métodos são tóxicos e de manuseio perigoso, já que são realizados a altas temperaturas, de até 600ºC. Sem falar que são problemáticos do ponto de vista ambiental, porque geram resíduos de alta periculosidade, como o banho de cianeto.” Em comparação com os métodos tradicionais, o tratamento 3IP é similar no âmbito econômico. “Traz também as vantagens de tratar as peças de forma homogênea, com os íons atingindo a peça em todas as direções e perpendicularmente à superfície, além de não agredir o ambiente”, garante Ueda.

O Projeto
Melhoramento das propriedades superficiais de componentes de uso industrial por implantação iônica tridimensional (nº 99/06961-3); Modalidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE); Coordenador Mário Ueda – Inpe-Metrolab; Investimento R$ 93.240,00 e US$ 121.314,75 (FAPESP)

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