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Oftalmologia

Precisão no olhar

Equipamento desenvolvido pela USP e por pequena empresa permite exames rigorosos da curvatura da córnea

Eduardo CesarAnel luminoso com 72 pontos para projeção na córnea do pacienteEduardo Cesar

Os exames para testes de uso de lentes de contato e para verificação de cicatrização e de distorções após cirurgias de catarata e de transplantes de córnea ganharam um novo equipamento que vai tornar esses procedimentos médicos mais fáceis, precisos e com custo menor em relação aos aparelhos atuais. Chamado de ceratômetro, ele foi desenvolvido numa cooperação entre pesquisadores da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), ambas da Universidade de São Paulo (USP), e da empresa Calmed, de São Carlos.

O aparelho que mede os raios de curvatura da córnea já teve seu pedido de patente requerido no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. A previsão de lançamento comercial é para o primeiro semestre de 2005. Para isso, a Calmed acaba de firmar um acordo de licenciamento da patente e de produção com a Apramed Aparelhos Médicos, empresa de São Carlos especializada na fabricação, importação e exportação de aparelhos oftalmológicos. A parceria garante uma maior infra-estrutura industrial e uma rede de distribuição adequada para a comercialização do equipamento, tanto no Brasil quanto no exterior.

A física Liliane Ventura está à frente do projeto na EESC, onde é professora, e na FMRP, como a coordenadora do Laboratório de Física Oftálmica (LFO). Na Calmed, empresa da qual foi fundadora, ela coordena o projeto que recebeu financiamento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP para o desenvolvimento comercial do produto. Ela diz que entre as vantagens do novo equipamento está a projeção de um anel luminoso com 72 pontos de luz na córnea do paciente, na região de 3 milímetros (mm) da pupila.

Os ceratômetros manuais importados medem um anel contínuo de luz no olho, com grande precisão, porém a medida é limitada, geralmente até 26 dioptrias, ou 26 graus de astigmatismo, enquanto o equipamento nacional mede até 60 graus de astigmatismo, um problema oriundo da córnea ovalada que pode surgir como conseqüência de cirurgias de catarata, impedindo a percepção de contrastes e dificultando a leitura, por gerar imagens sem nitidez, tanto para longe quanto para perto. Por não possuírem a automação, as medidas realizadas no equipamento manual são mais demoradas. Já os automatizados, que fazem parte dos auto-refratores (medem miopia, astigmatismo e hipermetropia), possuem apenas seis pontos de projeção na córnea e com uma medida máxima de 12 graus de astigmatismo.

O ceratômetro brasileiro tem também suas particularidades em relação a outros equipamentos desse tipo. Ele surgiu a partir do desenvolvimento de um anel de projeção luminoso de alta precisão, criado para ser adaptado a uma Lâmpada de Fenda, aparelho comum nos consultórios oftalmológicos, utilizado durante vários tipos de exame ocular para projetar luz nos olhos dos pacientes e ampliar seu reflexo por meio de um microscópio. A maioria das clínicas utiliza esse aparelho e um ceratômetro manual, separadamente.

Um dos objetivos do grupo de pesquisadores foi justamente unir o anel à Lâmpada de Fenda e fazer a integração desse equipamento a um computador para os cálculos das medidas do olho que antes eram feitas por aparelhos diferentes. Um software específico desenvolvido pela Calmed realiza todos os cálculos, medindo a curvatura da córnea com grande velocidade. “A parte óptica da Lâmpada de Fenda é muito eficiente. Buscamos associar a esse aparelho algumas peças que permitissem ampliar seu uso, transformando-o em um ceratômetro automático, adaptando peças desenvolvidas especificamente durante as pesquisas, obtendo um aparelho preciso e de baixo custo”, explica Liliane.

A opção para o mesmo grau de rapidez e precisão do ceratômetro, que será fabricado pela Apramed, só existe nos equipamentos chamados de topógrafo de córnea. Eles são mais caros e medem os raios de curvatura de toda a superfície da córnea, em cerca de 10 mil pontos diferentes. Esse volume de informações é bem maior, porém desnecessário para ações pontuais, como a adaptação de lentes de contato e outras medidas suficientemente realizadas por um ceratômetro. O equipamento nacional foi desenvolvido especificamente para medir o raio de curvatura da córnea para a adaptação de lentes de contato, embora tenha emprego também em exames pós-operatórios.

Função objetiva
O funcionamento do ceratômetro nacional é relativamente simples. O sistema aproveita a própria luz emitida em forma de fenda, permitindo uma luminosidade homogênea do olho. Durante o exame, duas superfícies cônicas são espelhadas por meio dos pontos contínuos de luz de tamanho bastante reduzido que perpassam o anel. Essa peça funciona como um dispositivo de medida para qualquer topografia de superfície que reflita luz, podendo ser utilizado também em microscópios cirúrgicos.Ao projetar o anel de luz na superfície ocular do paciente, a Lâmpada de Fenda capta o reflexo gerado e amplifica a imagem em 25 vezes. Dessa forma, é feita a avaliação dos raios de curvatura da córnea e sua possível deformidade, em função da irregularidade dos pontos de luz refletidos.

Em seguida, essa imagem ampliada é capturada e um software desenvolvido noprojeto realizatodos os cálculos. A imagem também é mostrada em um monitor, com mapas e gráficos, disponibilizados em apenas três segundos. A tela informa o quanto a córnea é esférica, seu raio de curvatura, eixo e grau de astigmatismo. O sucesso no desenvolvimento do equipamento é creditado por um dos pesquisadores envolvidos no projeto, o médico oftalmologista Sidney Julio de Faria e Sousa, coordenador da parte médica do LFO, ao caráter multidisciplinar do projeto que envolveu profissionais de áreas diferentes como física, medicina e engenharia.

“As discussões foram feitas entre pesquisadores nas duas faculdades. Com isso, criamos algo inédito, eficiente, extremamente necessário do ponto de vista clínico, com aplicação garantida e acessível em termos de custos”, diz Souza, que também é diretor clínico do Banco de Olhos do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (HCRP-USP), onde coordenou os testes do aparelho durante dois anos e meio. Até chegar ao modelo final foram desenvolvidos quatro protótipos. A versão atual foi testada durante um ano e meio.

Ao todo, 420 pacientes foram selecionados e submetidos ao sistema, incluindo casos pós-operatórios, de astigmatismos altos, médios e baixos, entre idosos, crianças e pacientes com catarata e ceratocone, doença caracterizada por uma córnea em formato de cone que diminui demasiadamente a capacidade de visão, podendo levar à cegueira. Os resultados apontaram 98% de concordância entre o equipamento e os demais atualmente em uso.

A diferença de medida de 2% deve-se ao fato da dificuldade de alinhamento ao centro óptico do olho do paciente, apresentada por alguns equipamentos comerciais. Para evitar esse problema, os pesquisadores desenvolveram um dispositivo para fixação do olhar do paciente. O local da mira no olho é mostrado na tela do computador, em tamanho ampliado, o que facilita a exatidão do posicionamento da mira de luz durante o exame. Um dispositivo para calibração, posicionado no local de aferição do foco da Lâmpada de Fenda, é acionado ao se capturar a imagem, para manter o equipamento sempre bem aferido. Também um sensor que indica o olho do paciente (direito ou esquerdo) que está sendo medido foi desenvolvido no projeto. Outra inovação é um sistema de geração de voz que emite, em português ou inglês, as medidas captadas pelo equipamento.

De acordo com Wilson Marcos Mazari, diretor da Apramed, o ceratômetro, apresentado em setembro durante o XVI Congresso Brasileiro de Prevenção à Cegueira, no Rio de Janeiro, deverá ter boa aceitação tanto no mercado brasileiro quanto fora do país. “O custo de produção ainda não foi definido, mas pretende-se fazer com que o preço final do produto seja bastante acessível. Para se ter uma idéia do quanto o custo é menor, basta mencionar o anel de mira, que pode ser produzido a R$ 150,00 a unidade, algo impensável até há pouco tempo”, revela.

Fora do Brasil, duas grandes empresas desse segmento já se mostraram interessadas na comercialização do produto. “A idéia é colocá-lo primeiro no mercado brasileiro e, em seguida, no internacional, a começar por países latino-americanos. Outra grande vantagem é que este ceratômetro é de fácil montagem e operação”, conta. Embora o equipamento nacional ainda não tenha um valor definido para venda, a estimativa é que ele deva ser comercializado com um preço ao redor dos US$ 3 mil, algo próximo do custo dos ceratômetros manuais. Os equipamentos automáticos importados custam cerca de US$ 10 mil.

O equipamento, que ainda não tem um nome comercial definido, está agora em fase final de design e sua produção industrial e comercialização dependem de autorização da Agência Nacional de VigilânciaSanitária (Anvisa). Ainda que destinado a mercados menores, países que detêm tecnologia na área também deverão receber o produto. “Como este ceratômetro é um instrumento básico para um consultório oftalmológico e também para a adaptação de lentes de contato, as possibilidades de ganhar projeção para o produto são grandes. Vale lembrar que, apesar do aumento no número de cirurgias que dispensam as lentes de contato, o custo desse tipo de operação ainda é considerado alto, além de as intervenções não se aplicarem a todos os casos”, avalia Liliane.

A trajetória do ceratômetro nacional começou quando a pesquisadora recebeu financiamento, na época que fazia pós-doutorado na FMRP, em 1997, para um projeto do Programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes da FAPESP. “Depois, o PIPE tornou possível tanto o financiamento para que a Calmed desenvolvesse o aparelho quanto o envolvimento de pesquisadores da universidade que trabalharam no projeto, viabilizando a colocação da tecnologia no mercado. Com o apoio, conseguimos fazer tudo mais rapidamente e gerar um produto brasileiro de alta performance. Mais que isso, criamos também uma sintonia em pesquisas e desenvolvimento de tecnologia, importantíssima na área oftalmológica, na qual o Brasil conta com cerca de 10% dos profissionais de todo o mundo”, explica.

Além dos dois laboratórios da USP, uma outra instituição também está colaborando no desenvolvimento das pesquisas, por meio dos pesquisadores Luimar Cavalcanti de Oliveira e Orlando Di Lorenzo Filho, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com a finalidade de ampliar a aplicação imediata dos conhecimentos obtidos também no Nordeste do país. É o Laboratório de Instrumentação Oftálmica da UFPB, em João Pessoa, que está incentivando a produção de equipamentos oftalmológicos por empresas já estabelecidas na região ou que possam ser criadas a curto e médios prazos. “Os resultados alcançados motivaram a parceria com a UFPB para formarmos uma nova unidade de instrumentação oftálmica no país. O objetivo é desenvolver pesquisas locais que se apliquem à realidade econômica do Nordeste”, explica Liliane.

Os Projetos
1. 
Sistema de medidas automáticas de raios de curvatura da córnea em Lâmpada de Fenda – ceratômetro automático em Lâmpada de Fenda (nº 00/13218-4); Modalidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE); Coordenadora Liliane Ventura Schiabel – USP/Calmed; Investimento R$ 215.878,00 (FAPESP)
2. Mira luminosa anelar para medidas de precisão de topografia de superfície refletoras esféricas e não-esféricas (nº 03/06208-0); Modalidade Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (PAPI); Coordenadora Liliane Ventura Schiabel – USP/Calmed; Investimento R$ 12.500,00 (FAPESP)

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