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Carta da editora | 109

A relatividade necessária dos números

Há uns poucos anos, um grupo de pesquisadores do InCor, o Instituto do Coração da Universidade de São Paulo, viu-se ante uma charada mórbida: 51 pessoas tinham morrido em decorrência, em última instância, da aterosclerose – ou, em linguagem mais chã, da obstrução de suas coronárias, responsáveis pelo transporte de nutrientes e oxigênio ao coração, por placas de gordura. As placas foram se acumulando na parede das artérias até o ponto de provocar infartos, acidentes vasculares cerebrais e outros quadros dramáticos assemelhados. Ocorre que 25 dessas pessoas cuja evolução da doença os pesquisadores acompanhavam, portanto, quase metade delas, apresentavam níveis considerados normais de colesterol. Como entender então essa aterosclerose que resultou em óbitos, se justamente a presença excessiva de colesterol no sangue, mais precisamente do LDL, o chamado mau colesterol, era o sinal indicativo de que alguém estava sob risco de apresentar o problema? E se níveis normais eram a senha para manter-se a tranqüilidade?

A reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP  mostra justamente como a partir de enigmas assim a pesquisa sobre indicadores orgânicos de doenças coronarianas tem avançado substancialmente no InCor. Não importa apenas a medida do HDL, mas também a razão matemática entre o HDL e o LDL, ou seja, entre o bom e o mau colesterol, as taxas de homocisteína, a medida de triglicérides etc. etc. Como em quase todos os campos, no corpo humano também raramente um indicador funciona sozinho em seus valores absolutos. Relação e interação são palavras-chave na determinação da saúde das artérias e do coração, como se pode conferir no texto da repórter Alessandra Pereira, a partir da página 44.

A propósito, é para a mesma questão, de uma certa maneira, que alerta a reportagem sobre o duelo cada vez mais acirrado entre os que acreditam e os que duvidam que a fumaça dos automóveis e das indústrias é responsável pelo aquecimento progressivo deste nosso planeta Terra. Se é que o aquecimento realmente existe, diriam os céticos. Tomar, por exemplo, os dados de temperatura da Terra em seus valores absolutos em cada caso, sem relativizá-los, sem contrapor algumas reduções efetivas a elevações constatadas, pode induzir a erro sério e cientificamente contraproducente sobre o fenômeno do aquecimento, depreende-se da narrativa do editor especial Fabrício Marques, a partir da página 30. Ele parte de um livro de ficção recém-lançado nos Estados Unidos, State of fear, que está jogando combustível na briga entre ambientalistas e céticos, para mostrar quais são os argumentos mais consistentes dos dois lados no momento em que entra em vigor o Protocolo de Kyoto.

Nada melhor para esfriar ludicamente a cabeça depois disso do que mergulhar na Antártica e nas aventuras enregelantes do pesquisador Jefferson Cardia Simões, na visão de quem o vasto território branco na calota sul do planeta é mais importante para o Brasil do que para os Estados Unidos. Ele explica por que a partir da página 12, na instigante entrevista concedida ao editor especial Marcos Pivetta.

Vale destacar também nesta edição a reportagem do editor de ciência, Carlos Fioravanti, a partir da página 24, sobre o primeiro artigo científico assinado pelo corpo de pesquisadores da Alellyx no respeitado periódico científico Journal of Virology. A empresa privada de biotecnologia, que tem suas raízes fincadas no Programa Genoma da FAPESP, apresenta ali a caracterização genética e molecular de um vírus que a equipe considera forte candidato a agente causador da morte súbita dos citros, doença que já se instalou em cerca de 2 milhões de pés de laranjeira em São Paulo e Minas Gerais. Para finalizar, motoristas estressados das grandes cidades certamente encontrarão méritos imensuráveis no trabalho de pesquisadores que acreditam ser possível ordenar o caos do tráfego nas metrópoles com ajuda da inteligência artificial, a partir da página 90. E o que é melhor, levando em conta a personalidade dos sujeitos por trás do volante que, no Brasil, não são exatamente iguais, por exemplo, aos da Alemanha. Boa leitura!

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