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Imunologia

O veneno sobre longas pernas dentro de casa

Equipe do Butantan testa novo soro e pomada contra lesões causadas pelas picadas de aranha-marrom

Dez anos atrás, ao começar a estudar as aranhas-marrons, as espécies mais venenosas do Brasil, a bióloga Denise Tambourgi ficou três noites em claro, morrendo de medo de levar uma picada. É que ela havia encontrado uma delas escondida no baú ao pé de sua cama, durante uma expedição de coleta realizada em uma fazenda no município de Telêmaco Borba, no Paraná. Hoje ela ainda não se acostumou com esses animaizinhos de pernas longas e finas, às vezes tão pequenos a ponto de quase não serem vistos. Mesmo que não sejam agressivos e só ataquem quando tocados, causaram cerca de 8 mil casos de envenenamento por ano em 2003 e 2004 no Brasil, com duas mortes, uma em Santa Catarina e outra em Goiás.

Mas nesse tempo Denise avançou bastante na pesquisa dessas aranhas. Com sua equipe do Laboratório de Imunoquímica do Instituto Butantan ela decifrou os principais componentes do veneno, descobriu como agem e desenvolveu dois novos tratamentos capazes de neutralizar a ação das toxinas no corpo humano. Um deles é um novo soro, já em fase de testes in vitro e em animais, específico contra o veneno de espécies de aranha-marrom encontradas no Brasil. Produzido à base de esfingomielinase, a proteína que realmente provoca os danos no corpo humano, descoberta em 1998 pela equipe do Butantan, o novo soro antiloxoscélico poderá se tornar uma alternativa ao atualmente usado, o antiaracnídico, preparado apenas com o veneno extraído de uma delas, a Loxosceles gaucho, e empregado também contra a picada de escorpiões e aranhas-armadeiras.

O outro tratamento é uma pomada para as lesões provocadas pelo veneno dessas aranhas no local da picada e que podem demorar até oito meses para curar – dependendo da extensão da necrose é necessário implante de pele. O estrago pode ser ainda maior: ao cair na circulação sanguínea, alguns microgramas da substância são capazes de destruir as células vermelhas do sangue – as hemácias -, comprometer o funcionamento dos rins e levar à morte. A pomada do Butantan contém tetraciclina, um antibiótico que age como inibidor das enzimas acionadas pelas toxinas da aranha, e reduziu em 75% o desenvolvimento de necrose da pele, de acordo com testes feitos em coelhos. Atualmente a lesão é tratada por meio da aplicação de soro e medicamentos específicos como os corticosteróides. “O tratamento ideal contra a picada da aranha-marrom será um soro bastante específico e polivalente para neutralizar a ação do veneno de várias espécies, somado a antiinflamatórios e a um inibidor de protease (enzima capaz de quebrar proteínas)”, afirma Denise.

Os soros atuais neutralizam as toxinas em circulação no organismo humano, mas não são muito eficazes para tratar as lesões na pele. A razão é que, como a picada da aranha-marrom é indolor e a reação local não se manifesta imediatamente, as pessoas só procuram ajuda quando a lesão na pele já se encontra instalada. Então a necrose dos tecidos não é mais uma consequência do veneno, mas das reações do próprio organismo. Como a equipe do Butantan verificou, uma proteína do veneno da aranha-marrom, a esfingomielinase, exerce um papel-chave na morte dos tecidos da pele. Essa toxina aciona outras proteínas no interior das células da pele, que destroem as próprias células e, consequentemente, o tecido, de acordo com um estudo conduzido por Danielle Paixão Cavalcante, integrante da equipe de Denise, publicado em maio deste ano no Journal of Investigative Dermatology.

Atualmente, o soro antiaracnídico não consegue impedir completamente a ação do veneno das três espécies de aranha-marrom que mais causam acidentes no Brasil: a Loxosceles intermedia, a L. laeta e a L. gaucho. E há outro problema, que dificulta sua produção: a quantidade de veneno extraído de uma Loxosceles é muito pequena, em torno de 30 microgramas – para imunizar um cavalo durante a preparação do soro é preciso aplicar cerca de 20 miligramas, uma quantidade quase 700 vezes maior. O farmacêutico Matheus Fernandes Pedrosa, em colaboração com Paulo Lee Ho e Inácio Junqueira, do Centro de Biotecnologia do Butantan, resolveu esse problema em 2002 ao clonar o gene que contém a receita de produção da proteína esfingomielinase de L. laeta, uma espécie encontrada no sul do Brasil, em diversos países das Américas do Sul, Central e do Norte, cujo veneno é o mais tóxico entre todas do gênero. O trabalho, publicado naquele ano no Biochemical and Biophysical Research Communication, foi a primeira clonagem do gene de esfingomielinase no mundo.

No ano passado, Denise, colegas de sua equipe e da Faculdade de Medicina da Universidade de Wales, em Cardiff, Reino Unido, deram mais um passo importante para aumentar a produção de toxinas e de soro: conseguiram copiar o gene de duas proteínas esfingomielinase de Loxosceles intermedia, responsável por mais de 95% dos casos de envenenamento no país, a maioria deles no Paraná – nesse estado, essa espécie está em toda parte: nas casas e nos edifícios. Descrito na Molecular Immunology, esse processo de clonagem ampliou a produção de veneno em 5 mil vezes: cada litro de solução com as bactérias geneticamente modificadas, a cujo genoma se acrescentou o gene da esfingomielinase, rende em torno de 15 miligramas de proteína.

Testado em coelhos, o soro feito a partir das proteínas das espécies L. laeta e L. intermedia funcionou. O próximo passo é obter um antídoto que reúna as esfingomielinases de vários tipos de aranha-marrom. “Um soro polivalente é a maneira mais eficaz de neutralizar o veneno de cada uma das espécies”, afirma Denise. Sua equipe, associada ao grupo de Hisako Higashi, da Divisão de Produção do Butantan, já começou a comparar o grau de eficiência do novo soro polivalente com o antiaracnídico tradicional, produzido no Butantan e distribuído para o país todo. São esses estudos que vão indicar se realmente vale a pena substituir o atual e fabricar o novo composto em larga escala.

Contra as hemácias
Foi também com a colaboração de uma equipe da Universidade de Wales que Denise, Rute de Andrade e Fábio Magnoli, do Butantan, desvendaram há cinco anos o mecanismo pelo qual a esfingomielinase causa a destruição das células vermelhas do sangue. A esfingomielinase, que havia sido identificada por Denise dois anos antes, faz com que as hemácias sejam percebidas como um agente estranho no organismo e, por essa razão, eliminadas pelo sistema imunológico, de acordo com artigo publicado em 2000 na revista Blood.

Quando uma pessoa sofre uma picada da aranha-marrom, a esfingomielinase do veneno se liga às hemácias, quebra um lipídio – um tipo de gordura -, chamado esfingomielina, e altera o funcionamento dessas células. Essa bagunça química coloca em ação algumas enzimas, que cortam outras proteínas, as glicoforinas. Ao serem quebradas, as glicoforinas perdem ácido siálico, que faz com que um dos mecanismos de defesa do organismo, o chamado sistema complemento, veja as hemácias como invasoras e as destrua. “Todas as proteínas consideradas importantes na regulação de um componente do sistema imune, o sistema complemento, estavam intactas na superfície das hemácias”, comenta Denise. A descoberta desse mecanismo redimensionou o papel das glicoforinas nas hemácias e no controle dessa parte do sistema de defesa do organismo.

Ao entender o mecanismo de ação do veneno e clonar o gene de diferentes esfingomielinases, ficou mais simples obter a estrutura molecular dessa proteína, que se apresenta em forma de barril. A equipe de Denise, em colaboração com o grupo chefiado pelo biofísico Raghuvir Arni, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de São José do Rio Preto, fez um cristal da proteína obtida a partir de Loxosceles laeta. Por meio desse trabalho, publicado em abril deste ano no Journal Biological Chemistry, pode ser possível identificar os pontos ativos da proteína e, daí, projetar outros medicamentos capazes de combater o veneno da aranha-marrom.

A gravidade do envenenamento varia de acordo com o tipo de aranha e da própria vítima da picada. As aranhas adultas costumam provocar acidentes mais graves do que as mais jovens porque o volume e a concentração de toxinas no veneno aumentam com o tempo de vida. O veneno dos machos tem menos poder de ação do que o das fêmeas, em geral mais robustas. Os casos mais brandos são causados por machos da espécie L. gaucho e os mais sérios por fêmeas de L. laeta. Por parte das pessoas, o grau de envenenamento varia de acordo com a idade da vítima, sua constituição genética e local atingido. Por motivos ainda não totalmente entendidos por especialistas, algumas pessoas apresentam reações generalizadas, como coagulação disseminada e ruptura das hemácias, que podem resultar em falência renal e até morte.

Na América Latina, a maior parte das vítimas fatais é formada por crianças, em especial as picadas pela L. laeta. No Brasil, a mortalidade parece ser menor e geralmente é causada pela aranha-marrom da espécie L. intermedia. “Cerca de 80% dos acidentes do Paraná são provenientes da cidade de Curitiba”, diz Marcelo Santalucia, da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão do Ministério da Saúde que recebe os casos notificados pelos municípios. “Depois de realizada a investigação, metade dos casos é descartada, mas não é feita a limpeza no banco de dados, que só o município pode fazer”. Denise Tambourgi, no entanto, acredita que os sintomas provocados pela picada da aranha-marrom muitas vezes são confundidos com os causados por infecções bacterianas ou por reações alérgicas. “Em muitas regiões”, diz ela, “os casos de envenenamento provavelmente são tratados como uma infecção bacteriana.”

Diferenças à parte, ninguém que conheça as aranhas-marrons põe em dúvida seu potencial tóxico, que os moradores de Curitiba e de outras cidades do Paraná já aprenderam a respeitar. Mas os turistas e guias do Parque Estadual e Turístico do Alto Ribeira (Petar), no sul do Estado de São Paulo, não sabiam que aquelas cavernas também eram habitadas por essas aranhas. Os pesquisadores do Butantan não sabiam se o veneno da Loxosceles adelaida, que vive em ambientes silvestres, como as cavernas, era tão perigoso como o das outras espécies de ambientes urbanos. A bióloga Rute de Andrade confirmou que havia, sim, aranhas dessa espécie no Petar, após percorrer 22 cavernas desse parque e encontrar exemplares de L. adelaida em todas. Ela e o zootecnólogo Fernando Pretel confirmaram que seu veneno é tão tóxico quanto o das demais aranhas do mesmo gênero. Foi uma descoberta importante que os pesquisadores do Butantan trataram de espalhar, com o apoio, no próprio instituto, da equipe do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), um dos Centros de Pesquisa Inovação e Difusão (Cepid) financiado pela FAPESP. No ano passado, os biólogos alertaram sobre o perigo conversando com guias turísticos e distribuindo folhetos nas prefeituras, nas pousadas e nos hotéis do próprio parque, cujas cavernas recebem 16 mil turistas por ano. “As Loxosceles adelaida têm um comportamento diferente das outras aranhas-marrons. São extremamente ativas e entram nas mochilas e nas roupas”, alerta Denise. “É importante fazer o trabalho científico chegar à sociedade.”

O Projeto
Mecanismos moleculares da hemólise induzida pelo veneno da aranha Loxosceles intermedia e Loxosceles na área cárstica do Vale do Ribeira: Identificação da fauna, caracterização biológica e imunoquímica dos venenos, estudo dos mecanismos de ação das toxinas; Coordenador
Denise Vilarinho Tambourgi – Instituto Butantan; Investimento R$ 162,221,96  e R$ 251.402,01  FAPESP and R$ 500.000 Wellcome Trust

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