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Astrofísica

A estrela da hora

Anã branca se comporta como o relógio óptico mais preciso que se conhece

Desde a Antiguidade, a observação do movimento dos corpos celestes fornece pistas  para o homem quantificar a passagem do tempo. Por séculos, que se estenderam por toda a Idade Média e o início das Grandes Navegações, calcular as horas (e a posição geográfica) era possível com o auxílio de um astrolábio, instrumento astronômico que mede a altura das estrelas acima do horizonte. O advento de outros tipos de relógio, mais precisos, acabou transformando esse equipamento numa peça de museu. Mas isso não quer dizer que os astros deixaram de ser úteis para contar as horas, como mostra o trabalho recente de uma equipe de astrofísicos liderada pelo brasileiro Kepler de Souza Oliveira Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Os pesquisadores descobriram que os pulsos de brilho emitidos por uma pequena e moribunda estrela da constelação de Leão Menor, a G117-B15A, ocorrem a intervalos tão regulares, mas tão regulares, que podem funcionar como os ponteiros luminosos de um relógio estelar que nunca atrasa. Bem, nunca atrasa é força de expressão, uma hipérbole que, nesse caso, não é tão exagerada assim. Afinal, esse cronômetro sideral perderia um segundo a cada 8,9 milhões de anos. “É o relógio óptico mais estável que se conhece, mais preciso que os relógios atômicos”, afirma Kepler, que publicou estudo sobre o tema na edição de dezembro passado da revista científica norte-americana The Astrophysical Journal.

Foram necessários tempo e paciência para encontrar um objeto celeste com essa particularidade, mais precisamente 31 anos observando as tênues alterações de brilho da G117-B15A, um tipo raro de estrela, classificada tecnicamente como uma anã branca pulsante ou ZZ Ceti. O trabalho começou em 1974 com Edward Robinson e John McGraw, astrofísicos da Universidade do Texas e descobridores da variabilidade da estrela. Cinco anos mais tarde, Kepler, que foi aluno de doutorado de Robinson nos Estados Unidos, assumiu a tarefa de registrar os pulsos de luz da G117-B15A. Na ocasião, seu orientador o avisou de que demoraria 20 anos para talvez chegar a algum dado interessante com essa linha de pesquisa. Ainda assim, o brasileiro bancou a aposta. O esforço compensou. “Ninguém dizia que o projeto poderia dar certo”, comenta o astrofísico Don Winget, da Universidade do Texas, co-autor do trabalho.

Como a G117-B15A só é visível de dezembro a março e apenas no hemisfério Norte, as observações foram feitas nos Estados Unidos com telescópios do Observatório McDonald, ligado à Universidade do Texas. Desde 1979, uma vez por ano, Kepler ou algum pesquisador associado ao projeto passa oito horas seguidas registrando as emissões de luz da estrela, que pertence à nossa galáxia, a Via Láctea, e dista 150 anos-luz da Terra (um ano-luz equivale a cerca de 9,5 trilhões de quilômetros). Neste início de 2006, registrar a anã branca pulsante será um dos encargos de Barbara Castanheira, aluna de doutorado do astrofísico da UFRGS, que passa uma temporada no Texas. “Se as condições meteorológicas permitirem, vou observar essa e outras estrelas em dois turnos durante o mês de janeiro, primeiro entre os dias 6 e 8 e depois entre 23 e 29 de janeiro”, diz Barbara.

Devido às suas peculiaridades, as anãs brancas pulsantes são candidatas a exercer o papel de relógios ópticos pendurados no espaço. Os astrofísicos estimam que 98% de todas as estrelas – em especial as pequenas e médias, com pouca massa, como o Sol – devem se transformar um dia numa anã branca, um astro senil à beira da morte, que não produz mais energia por meio de reações termonucleares.

A caminho do fim de sua existência, esses corpos celestes encolhem de tamanho e tornam-se bem mais densos e frios. Ao longo do processo evolutivo de contração e perda de calor, algumas dessas estrelas também apresentam instabilidades periódicas, ou seja, emitem a intervalos fixos, de forma ritmada, pulsações que alteram o seu brilho. Em razão dessa mudança cadenciada em sua luminosidade, são classificadas como anãs brancas pulsantes. No caso da G117-B15A, estrela com idade estimada em 400 milhões de anos, o principal pulso luminoso é disparado a cada 215 segundos. Religiosamente. Como um relógio. O ritmo da emissão luminosa deve diminuir à medida que a anã branca pulsante for esfriando. Mas o ocaso da estrela é um processo tão arrastado, capaz de se prolongar por bilhões de anos, que não afeta a confiabilidade de suas informações.

Há quem diga que outros tipos de estrela, como certos pulsares, que emitem ondas de rádio e raios X, podem ser cronômetros espaciais ainda mais precisos que a G117-B15A. Kepler, no entanto, discorda dessa visão por um motivo: os pulsares carecem de estabilidade e estão mais sujeitos a perturbações que alteram a sincronia de seu tique-taque sideral. Além de aumentar o conhecimento sobre a vida evolutiva das estrelas, a busca por um guardião estelar do tempo pode ter alguma serventia prática? “Alguns estudiosos já propuseram a criação de uma rede de relógios desse tipo para sincronizar as horas nas espaçonaves”, comenta o pesquisador brasileiro.

Estudar as anãs brancas pulsantes também pode render outros achados bastante concretos, como a localização de novos planetas. Seriam provavelmente mundos sem vida, visto que as ZZ Cetis não apresentam as características necessárias para manter em sua órbita um recanto ameno como a Terra. Ainda assim seriam planetas de fora do sistema solar, um dos temas mais fascinantes da astrofísica atual. Por ora, a equipe de Kepler já descartou a existência de mundos gigantes, do tamanho de Júpiter ou Saturno, na vizinhança da G117-B15A. Talvez existam por ali planetas menores. Ninguém sabe. Só o tempo, sempre ele, trará a resposta definitiva.

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