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Entrevista

Paulo Mendes da Rocha: Rocha e concreto

Paulo Mendes da Rocha, ganhador do Prêmio Pritzker, analisa os caminhos da arquitetura e do desenvolvimento das cidades

Miguel Boyayan Rocha: perde-se o horizonte de que a arquitetura lida com todas as formas de conhecimentoMiguel Boyayan

“Criou-me, desde eu menino/ Para arquiteto meu pai/ Foi-se-me um dia a saúde…/ Fiz-me arquiteto? Não pude!/ Sou poeta menor, perdoai!”, lamentou-se Manuel Bandeira, optando pela dicotomia quando podia ter a dialética. Quem diz que um poeta não é um arquiteto de palavras? Tampouco é impossível pensar-se num arquiteto como poeta de formas concretas. Em ambos os casos há apenas um requisito: não ser menor. Como não o era Bandeira e como não o é o Paulo Mendes da Rocha, saudado pelo colega Francisco Fanucci como capaz de “fazer a poesia do concreto”. Daí, não se entender a surpresa geral quando se anunciou, no mês passado, que ele fora o vencedor do Prêmio Pritzker de Arquitetura de 2006, que premia anualmente um arquiteto que reúna talento, visão e comprometimento, tendo contribuído de forma significativa para a humanidade e o ambiente fabricado. Antes dele, apenas Oscar Niemeyer havia recebido a honraria, cujo apelido é um retrato de sua importância: o Nobel da arquitetura. O júri, que incluía, entre tantos, Frank Gehry, justificou sua escolha pela capacidade de Paulo em “modificar a paisagem e o espaço com sua obra, sempre com um profundo entendimento da poética espacial e senso de responsabilidade pelos habitantes”.

Nascido em 1928, em Vitória, Espírito Santo, Paulo elenca entre as suas influências Burle Marx, Affonso Reidy, Niemeyer, Vilanova Artigas, “mas sem esquecer, naturalmente, as minhas memórias de infância: tanta ventania, tantas águas, a Bacia do Prata, a Bacia Amazônica, 8 mil quilômetros de costa, navios etc.”, como gosta de ressaltar, de uma forma que arrancaria, com certeza, o perdão do pai de Bandeira. O dele, Paulo, era um engenheiro que trouxe a família para São Paulo nos anos 1930 e deu aulas na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, nos anos 1940. O filho preferiu estudar no Mackenzie e se formou em 1954, ano da morte de Vargas. Curiosa coincidência, já que o período de formação da arquitetura moderna brasileira ocorreu exatamente durante o Estado Novo, cujo caráter autoritário fez com que a arte nascente crescesse desprovida da lógica e desejável ideologia social. Se o resto do Brasil se deleitava com as curvas e a leveza dos cariocas, São Paulo não podia parar. A sua natureza de potência industrial exigia soluções urbanas e arquitetônicas diversas do conservadorismo varguista e da capital federal. O edifício Copan é um claro exemplo de descompasso entre a escola do Rio e a dura poesia das esquinas paulistanas, como, aliás, reconhece o seu autor, Oscar Niemeyer. A metrópole rejeitava uma arquitetura de prédios ensimesmados, auto-suficientes, mas, paradoxo, exigia um traçado que privilegiasse a “sociabilidade” entre a construção e seu entorno.

Para tanto, a união entre o técnico, o intelectual e o proletário urbano deu origem ao mar de concreto — “nas circunstâncias exacerbadas dos anos 1960, Mendes da Rocha consolida um rico vocabulário que vai influenciar gerações: abstração formal, pré-fabricação, engenhosidade técnica que inclui o desenvolvimento de detalhes construtivos de escala mecânica e a redução da arquitetura a seus elementos espaciais e construtivos essenciais”, na síntese certeira do arquiteto da FAU-USP, Luiz Recamán. O grande passo foi dado em 1958, com o projeto do ginásio, praça de esportes e piscinas do Clube Atlético Paulistano. No ano seguinte, Vilanova Artigas, vendo o seu amor pelo ensino, convida-o para lecionar na FAU e, em 1962, Mendes da Rocha realiza o projeto para o edifício da Faculdade de Antropologia e Sociologia, na USP. O reconhecimento internacional ocorre em 1969, com a criação do pavilhão do Brasil na Expo 70, em Osaka, no Japão. Depois foram vários sucessos: é finalista para o concurso de construção do Beaubourg, de Paris; desenha a nova sede do Museu de Arte Contemporânea, da USP; projeta o Museu Brasileiro da Escultura; ousa, ao criar o espaço da Loja Forma, em São Paulo; faz a renovação urbana da praça do Patriarca e do viaduto do Chá; reestrutura a Pinacoteca do Estado, onde reúne a modernidade ao passado da cidade, em harmonia perfeita. Mas chega de formas. É a vez das palavras de Paulo.

O seu prêmio foi saudado como uma vitória da arquitetura brasileira. O senhor acredita numa “arquitetura brasileira”?
É uma questão intrigante. Não se trata, porém, de buscar, a qualquer custo e em qualquer coisa, a idéia de que “essa arquitetura é brasileira”, porque aí entraríamos numa rota de degenerescência, de absurdo. Deveria haver, entretanto, um traço brasileiro na arquitetura, uma vez que é a América, envolve toda uma questão de território. O filósofo espanhol Eduardo Subirats, num de seus livros, vocifera contra essa destruição da América Latina pela mão da política colonialista que destruiu tudo. E chama o livro de O continente vazio. Mas é uma forma maliciosa de dizer: não estava vazio, foi tratado como vazio. Lembro-me sempre, por exemplo, da questão da construção dos nossos índios, de uma engenhosidade extraordinária, com estruturas pênseis, madeiras envergadas. O que me faz ver que, onde o homem estiver, há uma arquitetura. E aqui havia qualquer coisa que se deveria considerar. A nossa herança ocidental cristã não deve ser a única fonte de informação. Mas esse traço brasileiro seria justamente por estarmos diante dessa inauguração. Portanto, é a mesma arquitetura do neolítico, é o que o homem sabe, pela história, como experiência, e pelos desejos. Esses podem não ser especificamente brasileiros, mas, com um olhar atento, você vê coisas que não se vê fora daqui. Se você observa a nossa transformação da natureza, é diferente de quem observa só o patrimônio de, por exemplo, uma cidade como Roma. Um arquiteto romano disse que “para nós, geografia é aquilo que está construído”. O nosso caos é diverso. Ainda assim, a nossa geografia in natura deveria dar alguma força, ainda que na direção lírica ou poética da forma. Mas o processo foi muito desastrado. Pense na orla carioca: aquele “mar de edifícios”, cuja justificativa foi “as crianças querem tomar banho de mar, fiquemos todos aí”. Assim, dá-lhe vertical, elevador, cubículo. Para nós, o mar só tem graça se visto de uma janela dentro de uma cidade. Não temos vocação de explorador. Porque a partir da janela se pode voltar para o interior, onde estão os móveis, a cozinha, os confortos. A natureza nos dá medo. Assim vamos construindo. E nada foi redesenhado. Um dos males nesse processo é justamente isso, não poder editar a última expressão da inteligência humana. Há também uma falta de ideais sobre a cidade, uma falta de desejo de cidade. Pior: há uma ausência de reivindicação de urbanidade por parte da sociedade. Uma parte dela não deseja a cidade e se exclui, foge dela nos condomínios fechados. O arquiteto sofre muito quando raciocina com essas coisas, porque vê o que não foi feito. E o que se poderia ter feito.

Qual o peso dessa angústia?
As coisas se formam e se desenvolvem mais rápido do que eu posso acompanhar e me vejo sempre correndo atrás do mundo. Então prefiro ver na arquitetura os recursos da construção e o ideário da cidade. Podemos fazer tudo o que quisermos. Nessa contradição habita, digamos, nosso espanto sempre diante das coisas. Você trabalha com o que aprende. Eu gostaria de dizer aos meus colegas, aos jovens principalmente, de um modo geral à universidade, que prestassem atenção no seguinte: nós temos uma boa formação e ao mesmo tempo estamos na beira de um abismo de perder a consciência sobre essa formação no âmbito da universidade. Os cursos de arquitetura tendem a degenerar, na minha opinião, muito facilmente, pelas indigências do profissionalismo, digamos assim, do mercado. Perde-se o horizonte de que a arquitetura lida com todas as formas de conhecimento. Se você quer mobilizar a idéia da vontade, você tem que mobilizar não a sua, mas a vontade dos seus conterrâneos, do povo. E se você, movido por essa vontade que não é sua, precisa construir, você tem que saber construir muito bem. E essa vontade, por sua vez, obriga você a levar em consideração a situação que estamos no universo hoje. Você se envolve com filosofia, lingüística, antropologia, geografia, a questão do lugar, do recinto. Na arquitetura, você pode discutir a casa. A casa, hoje, se ela tem um atributo fundamental é o endereço. Você não pode imaginar uma casa. Gótica, colonial, normanda. Não faz sentido, você tem que ver onde ela está. A arquitetura não pode pretender saber de tudo isso em profundidade. Obriga-se a ter uma forma peculiar de conhecimento, porque ele solicita esses horizontes todos do conhecimento humano. A flor do conhecimento humano é a cidade. É tudo o que temos. E é tudo o que de melhor podemos fazer. Assim, justamente as grandes contradições que estão aí (que a cidade é caótica, que a cidade destrói a natureza com sua poluição etc.), tudo isso é triste por um lado, mas é um grande estímulo para você convocar o conhecimento e dizer “vamos consertar tudo isso, vamos inverter essa rota do desastre”. É muito político e a arquitetura se torna, na minha opinião, muito importante no âmbito da universidade. Devíamos assumir isso. E, se possível, zelar para que não proliferem tantos cursinhos e coisinhas separadas. Principalmente nesse dilema que está aí posto para nós: privado ou público. Que haja liberdade, mas os paradigmas nós temos que manter. Nisso a universidade pública é fundamental. Os professores que nós tivemos, o âmbito em que vivemos e fomos formados é muito rico. A Escola Politécnica de São Paulo é algo extraordinário. Mas pode se perder nesses horizontes do esfacelamento, do esgarçamento dos interesses fundamentais. Acho que a formação da consciência hoje é fundamental para a educação. A grande revolução, para mim, será no plano do ensino e da cultura. Do cultivo do que possa vir a ser uma cultura oportuna no tempo que estamos vivendo. Porque a questão da natureza está posta, no papel. O mundo inteiro debruça-se sobre essa questão assim ou assado. Por aproximações que sejam um tanto supérfluas, como essa questão da ecologia. A chamada “cultura popular” moveu a Idade Média para o Renascimento. Precisamos dessa tomada de posição por indignação: “Isso nós já sabemos, isso é uma besteira, vamos sair para lá”. Eu tenho a impressão de que nós podíamos assumir que está se forjando uma dimensão de cultura popular sobre a natureza no mundo, apesar de alguns desenganos e algumas reações em contrário, como a proliferação de religiões em cada fundo de quintal, coisa assim, uma espécie de reação àquilo que já se viu. E essa consciência talvez mova o mundo de um modo que nós nunca vimos tão veloz e tão extraordinário. Porque nos coloca juntos, todos, nesse pequeno planeta, pela consciência. Não adianta estarmos juntos como um confinamento. Estamos juntos, porque está se forjando essa consciência. E você pode pôr isso para diante, pode dizer “olha, não sei se o homem não pode viver serenamente”, sem bravata. Estamos começando efetivamente a experimentar, a ensaiar, a expansão da vida humana no Universo. Como é que diz Hannah Arendt? “Sabemos que vamos morrer e estamos tão animados por quê?” Porque sabemos que não nascemos para morrer, nascemos para continuar. A arquitetura toma um sentido muito interessante nesse âmbito, nesse espaço, nesse Universo. Eu achava que as crianças deveriam ser ensinadas assim, depois vai-se à prática, à construção. Esse ideário humano de necessidades e desejos, como diria Marx, é que nos move. Portanto temos que forjar e discutir essas necessidades e desejos.

Miguel Boyayan Rocha: a cidade é a flor do conhecimento humano, é tudo o que temos e o que de melhor podemos fazerMiguel Boyayan

O senhor é um exemplo do arquiteto engajado, irrequieto, como outros de sua geração. Hoje os novos profissionais têm essa mesma visão ampla do mundo?
Não acredito muito no arquiteto de hoje e no arquiteto do passado. Nem no homem de hoje e homem do passado. Estamos sempre perseguindo a nossa condição humana, senão não haveria história e a história não teria valor como experiência. Nem haveria mesmo o que nós chamamos conhecimento, essa consciência sobre o estado em que estamos no Universo. O que pode se medir é um certo descuido em relação a essas questões, no geral, estamos degenerando. O que é possível corrigir, retomando a rota. O que se pode também imaginar, para não ser sonhador em vão, não viver no mundo da lua, é que, nem que seja por estrita necessidade, já que se convocou essa dualidade, às vezes prevalece a necessidade, às vezes, o desejo. A necessidade pode chegar ao extremo. Nós aceitamos com uma passividade coisas que seriam incríveis. Por exemplo, em São Paulo há instrumentos na rua que marcam a qualidade do ar: “regular”, “sofrível”, etc. Se aparecer “ruim”, o que você faz? Respira devagarinho? Então, eu não tenho medo do desastre inclusive. Enfrenta-se. Fala-se abertamente, com convicção, na construção da paz. Até pouco tempo a guerra era louvável, os países se gabavam de ter um exército imbatível. Isso tudo já é um horror hoje em dia. Portanto, a expectativa do homem é que ele acerte seus horizontes para que sua presença no Universo seja eterna. E não é uma questão de arquiteto. Nenhum arquiteto pode salvar o mundo, a idéia não é essa. É que o mundo tenha alguma coerência em relação aos seus horizontes, a ponto de a arquitetura poder fluir com graça. Se o mundo pegar fogo, não adianta você chamar dez arquitetos e dizer “agora os senhores salvem essa porcaria”. Não tem jeito. Porque antes da forma a questão é de modo. É o modo que nós vivemos que está destruindo a cidade, não é a forma da cidade. A forma da cidade é uma conseqüência que está amparando tudo isso porque querem assim. Nós temos que mudar o querer. A arquitetura só reflete que, desse modo, não há arquitetura que seja possível. A idéia de cidade que nós temos seria, em duas palavras, uma cidade para todos.

Todos entendem esse conceito? O passante distraído das ruas percebe o esforço do arquiteto, do urbanista em melhorar a cidade?
As coisas devem ser vistas como os livros devem ser lidos. Não adianta você ficar andando concentradíssimo de lá para cá, na biblioteca de Alexandria, sem ler nada. Se você ler dez livros numa pensão do Catete, sendo um estudante pobre, você pode ficar sábio. Nós só falamos uns dos outros e só construímos uma coisa pela outra. Só pensamos o pensamento que já vinha sendo pensado. Essa é a graça da nossa vida. Nós não estamos sozinhos, estamos amparados pelo desejo, que está no futuro, e pelo passado como experiência. O presente é muito breve. É uma questão interessante na arquitetura a idéia de urgência. Não temos muito tempo. Não pode salvar pelo fato que fez, pelo fato feito. Mas pode ajudar pelo que faz refletir. Ou seja: a arquitetura é um discurso, antes de mais nada. Flávio Motta, que é um filósofo maravilhoso, me ligou para parabenizar pelo prêmio e eu reclamei de ter que viajar para Istambul para recebê-lo. “Você está enganado, é esse o prêmio”, ele me disse, falando sobre a cultura do Oriente, sobre a Igreja de Santa Sofia etc. É uma perspectiva de que a reflexão sobre a arquitetura está ligada diretamente à cidade, ao hábitat humano. Veja você: vê os problemas que nós temos nas cidades brasileiras são hoje os problemas, de certo modo, que tem a França com seus argelinos, que tem a Espanha com o Marrocos, que tem a Holanda com Sumatra etc. Agora, eu não tenho a preocupação se a arquitetura é funcional. Ela não o pode ser, porque não conhecemos nem bem as funções que queremos. Lembro de alguém que perguntou ao Niemeyer por que ele tinha feito o Senado sem janelas. Ele parou, pensou e respondeu: “Só de sacanagem”.

Voltando a Santa Sofia, ela é símbolo da resolução de um problema arquitetônico (colocar uma cúpula redonda numa estrutura quadrada) que tem muito a ver com o seu entusiasmo pela técnica.
Essas coisas estão aí como patrimônio universal, são conhecimento. Você quer ver uma reflexão interessante? Se você vê a famosa cúpula do Brunelleschi, ela está centrada numa virtude como essa que você mencionou agora, engenhosa. Você disse “com seu entusiasmo”: mas não sou eu, somos todos nós. É novamente a questão do patrimônio universal. Se você inverter o Brunelleschi, tem a catedral de Brasília. Há o pequeno círculo lá em cima trabalhando a compressão e o círculo que não se vê, que seria a borda superior do cilindro, daquela escavação que está lá para baixo, que trabalha, no caso, a tração. Então Brasília é uma reflexão que o Oscar deve ter feito. Não é uma cópia do Brunelleschi, que iria sorrir se visse aquilo. As nossas conquistas, de hoje e de sempre, são sonhos antigos que se realizam. Mas se realizam porque se prometeu que iam se realizar. Nós estamos há muito tempo desenhando tudo. Portanto são revelações de uma observação meticulosa. É fácil. É só prestar atenção. Com que absurda alienação qualquer um de nós abre uma torneira no 20º andar de um prédio e não temos consciência da maravilha de realizar aquilo. Qualquer bisavó de um de nós ia buscar água na fonte. Às vezes não voltava, a onça comia. Essa engenhosidade tem que ser avaliada, pensada e gozada, portanto, muito mais. Nós gozamos pouco a vida e não usamos a questão da consciência sobre o saber. É um pouco apavorante você imaginar o mundo feito por alienados.

Nesse contexto, como o senhor vê a cidade partida de hoje, em que a elite se isola em guetos e as favelas, na contramão, parecem mais orgânicas no todo da cidade?
A famosa periferia, agora, é dos mais ricos. O que a cidade pretende, antes de mais nada, é introduzir, garantir a tranqüilidade e o sossego para as pessoas. O famigerado tempo livre, que é o tempo da reflexão, entender a cidade como o lugar do saber e da reprodução do saber. A cidade é uma invenção e tanto e não temos outro hábitat possível. As favelas, do jeito que estão aí, muito particularmente porque são mais visíveis e têm uma implantação, uma disposição espacial evidentemente selecionada, escolhida pelos homens, estão ali, no coração da cidade. A favela é a manifestação justamente da consciência da necessidade de se urbanizar. É um desejo. O homem mais urbano do Brasil, do ponto de vista da consciência sobre urbanização, é o favelado. Com grande dificuldade ele foi para ali de qualquer modo, para poder conviver principalmente com o que a cidade engendra, que é serviço, prestação de serviço à sua disposição. Mostra o modo maligno com que isso tudo é feito porque nunca se fez habitação para aquela população e eles chegaram ao ponto que nós estamos vendo aí. O modelo que está ali é da civilização daqueles que foram para lá. São muito mais civilizados do que os outros que se retiram, então, e fazem uma muralha, contratam os mesmos favelados para tomar conta deles com metralhadora e tudo isso, e está dando no que nós estamos vendo. Uma cidade não pode ter segurança nenhuma, ela tem que ser aberta, livre e democrática. A segurança se faz pelo nível de civilização da cidade. É impossível você botar cerca, guarda, arame farpado em cada propriedade. Assim você não faz uma cidade. Para um arquiteto, ou para o universo da arquitetura e do urbanismo, não há privado, nada privado. É tudo público. Não existe uma arquitetura privada nem um urbanismo privado. Privado só temos a mente. Se você engendra um poema, a primeira preocupação é publicá-lo, torná-lo público. Ou então ninguém sabe que você é poeta, não adianta nada. Portanto a nossa vida é pautada, é configurada pela dimensão pública da nossa existência. Você não consegue ser privado nem que queira.

A cidade, hoje, para o senhor, é motivo de beleza ou de horror?
Toda cidade é belíssima pelo simples fato de ela existir. São Paulo é belíssima. Porque você imaginar que esses 20 milhões de habitantes todo dia dormem, se divertem e no dia seguinte voltam para trabalhar direitinho, mesmo com todo esse horror que está aí. Não existem cidades feias. Essa população que está ali de qualquer modo mostra que o desejo há. Vamos fazê-la, mais cedo ou mais tarde. Revitalização de áreas centrais abandonadas. Elas estão abandonadas, mas estão povoadas de uma população que não era aquela. A cidade será deles, de um modo ou de outro. Ou fazemos uma bela parceria ou… Existem prédios em São Paulo emparedados por dentro para que não sejam invadidos. Todos vazios. Você vê de fora, através das janelinhas, o tijolinho posto lá dentro para proteger o prédio. Na Inglaterra, se você prova com testemunhos que o prédio está abandonado há seis meses, você pode ocupá-lo. O que é muito lógico. Melhor do que você emparedar e ver o cara morrendo morando na rua, dormindo ao relento. Não creio que o homem vá, para sempre, contrariar tanto uma idéia tão lógica.

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