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José Sebastião Witter

José Sebastião Witter: Uma vida na sala de aula

Professor emérito da USP, o historiador José Sebastião Witter relembra sua carreira e fala sobre ensino e futebol

EDUARDO CÉSARProfessor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), José Sebastião Witter, de 73 anos, diz que se considera mais um professor de história do que um historiador. “Sempre fui um bom professor, não tenho falsa modéstia. Aprendi a ensinar dando aulas nos cursos primário e secundário”, complementa. Sua trajetória, de professor primário num colégio público da cidade de Mogi das Cruzes, ainda conhecida como o “cinturão verde” de São Paulo, a titular do Departamento de História da USP, traz à memória um sistema de ensino que se perdeu no tempo. Witter graduou-se em história, sua vocação desde jovem. Formou-se com a ajuda de uma prerrogativa instituída nos anos 1940. Ela permitia a professores primários aprovados no vestibular da USP o afastamento de suas funções, para que pudessem fazer o curso superior na área escolhida. Para manter-se comissionados, tais professores deveriam obter médias elevadas em suas notas escolares. Entre a sua diplomação como professor primário e a sua contratação no Departamento de História, convidado para ser assistente do catedrático Sérgio Buarque de Holanda, Witter lecionou sempre em escolas públicas, desde o seu ingresso no magistério primário em 1954 até 1968, quando veio para a USP.

Quase sempre sob a orientação de Sérgio Buarque, pesquisou sobre a imigração alemã, a fundação do primeiro partido republicano e sobre arquivos históricos. Nos anos 1970 introduziu um assunto que era malvisto pela universidade: o futebol, sua paixão desde a infância. Como professor do Departamento de História, ministrou o primeiro curso de história do futebol na USP. Mais tarde, organizaria obras como Futebol e cultura, em colaboração com José Carlos Sebe Bom Meihy, e escreveria O que é futebol e Breve história do futebol brasileiro. Ao lado desse curso, que lhe deu certa notoriedade e foi explorado pela imprensa pelo inusitado, trabalhou sempre como professor na área de História do Brasil colonial, imperial e republicana nos cursos de graduação. Na pós-graduação teve participação ativa como professor e orientador.

Paralelamente, teve uma bem-sucedida carreira de administrador. Por 11 anos, dirigiu o Arquivo Público do Estado de São Paulo, ligado à Secretaria de Cultura. Foi também diretor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, que fora fundado pelo mestre Sérgio Buarque de Holanda, no período de 1990 a 1994. Na seqüência passou a dirigir o Museu Paulista da USP, mais conhecido como Museu do Ipiranga, entre 1994 e 1999, quando coordenou uma grande reforma de suas instalações físicas e produziu transformações nas áreas acadêmica e administrativa. Aposentado depois de longa carreira na USP e de volta a Mogi das Cruzes, Witter analisa com alguma nostalgia os rumos que a universidade tomou, como se pode ver na entrevista a seguir:

Antes de fazer carreira como historiador e professor da USP, o senhor trabalhou durante anos como professor de escolas primária e secundária. Hoje essa trajetória quase não existe. O que mudou?
Muita coisa mudou. Desde o salário até o respeito com o profissional. Atualmente o professor em geral e o professor primário, principalmente, são muito mal remunerados. Quando jovens e professores da escola primária, tínhamos um salário digno e, se cuidadosos, era possível fazer poupança razoável. Hoje não. Mas, acima de tudo, o professor gozava de prestígio em qualquer comunidade. Poderia trabalhar numa metrópole ou numa pequeníssima cidade: ele era o professor. Vivemos isso por todos os lugares onde ensinamos. Além do mais, os concursos públicos, sempre rigorosos, eram os norteadores da carreira de cada mestre. As regras eram bem definidas e dificilmente alguém era favorecido. Quem eram as pessoas de destaque em qualquer cidade? O prefeito, os vereadores, o juiz de direito, o delegado de polícia, os promotores públicos… e os professores. Hoje quem sabe quem é ou não professor em cidades como São Paulo, Mogi das Cruzes, Suzano ou Poá? Quando fiz minha carreira, bastava ser professor para ser diferente… Desde os anos 1970 até hoje, a vida no magistério foi sendo afetada por reformas amplas ou por leis específicas, alterando o desenvolver da carreira profissional. É difícil afirmar o que mudou basicamente. Tudo, praticamente, eu diria.

O que deu errado?
Eu não gosto muito de dizer que a culpa toda cabe aos governos militares. Mas, coincidência ou não, a escola normal, que formava os professores, decaiu no período militar. Começou a acabar lá por 1965, 1968. A responsabilidade de formar o professor de “primeiras letras” passou a ser da universidade. Se melhor ou pior, não sei… Isso é uma discussão em que não quero entrar. Mas o fato é o seguinte: você tinha uma escola normal, que ensinava o professor de primeiras letras a ensinar a ler, a escrever e a contar. Isso era a função do professor primário. Em quatro anos, você alfabetizava, depois acompanhava as turmas. E você sabia ensinar porque tinha tido, na escola normal, grandes professores, gente que realmente sabia ensinar aquilo que o Brasil ainda precisa: o mais simples de tudo que é ler, e bem. Será que as escolas públicas fazem isso hoje? Toda tecnologia é bem-vinda, mas como levá-la a todos os cantos do nosso território? Um professor bem-capacitado é competente para ensinar em qualquer ponto, sem qualquer recurso, seja ele de vídeo, de áudio ou apoio da última novidade para “prender” o ouvinte. Conheço casos de professores que cancelaram a aula do dia por “falta de recursos audiovisuais”. Antes cada professor usava a sua criatividade, tendo às suas costas apenas o quadro-negro e o giz, mas à sua frente tinha mentes realmente ansiosas pelo saber e vidas a transformar. Era um tempo em que a professora era “professora”, e não “tia”. É um tema para se pensar… Não cabe nesta entrevista…

O magistério foi a carreira escolhida pelo senhor e sua esposa, a professora Geraldina Porto Witter. Em algum momento a trajetória de vocês se cruzou ou chegaram a disputar o mesmo espaço profissional?
Sim. Conheci minha mulher no ginásio. Havia um prêmio, em Mogi das Cruzes, conhecido como Prêmio Adrião Bernardes. Era concedido a quem obtinha as melhores notas na disciplina de História durante os quatro anos de ginásio. Disputamos o prêmio, mas foi ela quem ganhou. Era muito estudiosa. Nós dois entramos para a escola normal. As regras do jogo eram bem definidas – é por isso que a escola era boa. Quem acabava a escola normal em primeiro lugar, somando as notas dos três anos, ganhava a chamada “cadeira-prêmio”, que era um emprego garantido de professor numa escola próxima ao lugar em que você vivia. Ambos conseguimos esse prêmio: ela em um ano e eu no subseqüente. Quando nos casamos, decidimos estudar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Íamos e voltávamos para Mogi todos os dias, durante quatro anos. Era um trajeto oposto ao dos alunos atuais. Nós saíamos de Mogi em direção a São Paulo e voltávamos no final da tarde ou à noite.

Como o senhor se tornou professor universitário?
Naquele tempo havia os Institutos Isolados de Ensino Superior, que hoje compõem a Unesp. E surgiu uma vaga na cidade de Rio Claro. Havia um professor na Faculdade de Filosofia que gostava muito de mim, o professor Eurípedes Simões de Paula, diretor do Departamento de História. Hoje quase ninguém se lembra dele. Para alguns, é somente o nome do atual prédio da História e Geografia na Cidade Universitária da USP. Mas ele foi uma figura importantíssima. Além de professor de história antiga, diretor conselheiro da Reitoria, fazia praticamente sozinho a Revista de História, que levou até a edição de número 112. Fazia de tudo pessoalmente e com aquela dedicação típica dos homens de visão. Chegava a empacotar os volumes da revista e ele próprio encaminhá-los aos Correios. Ele me dizia: “Não deixe de passar na minha sala toda semana. Quem não é visto é esquecido”. Eu lecionava, na época, na cidade de Patrocínio Paulista. Vinha de Franca de ônibus na quinta-feira à tarde e, à noite, ia ao Departamento de História na rua Maria Antônia conversar com o professor Eurípedes. Um dia ele me avisou: “Amanhã você vai procurar uma professora. Ela mora no largo do Arouche e está precisando de um professor para Rio Claro”. Acabou dando tudo certo. Fiquei três anos em Rio Claro, até 1964. Minha mulher foi junto, convidada para ser assistente de Carolina Bori. Era uma professora excepcional que fez uma revolução no ensino da psicologia e nos anos 1990 foi presidente da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência]. Ela tinha criado um grupo de estudos e convidou minha mulher para fazer parte dele.

Por que saiu de Rio Claro?
Em 1964 meu contrato acabou. Mas, na verdade, eu saí por razões políticas. Não tive o contrato renovado porque era visto como um dos comunistas da universidade. Era um bom professor, sempre fui, não tenho falsa modéstia. Sabia ensinar. Tinha aprendido dando aulas no primário e no secundário. Mas tinha acontecido o golpe de 1964. O delegado da cidade prendeu um colega nosso, o professor Warwick Kerr. Ele sabia que seria preso, pois o próprio delegado tinha dito aos freqüentadores de um bar que iria prendê-lo na manhã do dia seguinte. Mas ele não quis fugir. Eu e todos os outros professores, de esquerda e de direita, fomos para a delegacia e fizemos um cordão para impedir que ele fosse levado para São Paulo. Acabou libertado quando trouxemos um professor de estatística que também tinha um cargo na polícia e foi à delegacia determinar sua soltura. Mas as nossas casas começaram a ser vigiadas, tive um livro apreendido na minha biblioteca só porque tinha a capa vermelha. Aí aconteceu algo extraordinário: fui convidado a trabalhar na USP, como assistente do mestre Sérgio Buarque de Holanda. E também voltei para Mogi das Cruzes, para reassumir minhas funções de professor secundário do Estado, no Instituto de Educação Dr. Washington Luís.

Como foi a mudança?
Eu já sabia que não teria meu contrato renovado quando o professor Sérgio Buarque foi fazer uma conferência lá em Rio Claro. Logo na chegada, na frente de todo mundo, ele me viu e disse em voz alta: “Witter, quer dizer que você vai comigo para São Paulo?”. Eu respondi: “Como assim? O senhor está me convidando para ser seu assistente?”. Ele complementou: “É claro! E creio que gostará de trabalhar na cadeira de História do Brasil”. Ao mesmo tempo que aceitei o inesperado convite para lecionar na USP, retomei meu cargo de professor secundário em Mogi das Cruzes, no Instituto de Educação Dr. Washington Luís, que até hoje existe como escola de primeiro e segundo graus. Era para mim uma grande honra, pois havia concluído meus estudos lá. A escola passava por uma crise. Fui, então, convidado pelo secretário de Educação a assumir a direção da escola. Eu tinha 32 anos. O curioso é que, em 1964, eu saí de Rio Claro como “comunista” e entrei no Instituto de Educação como uma espécie de interventor.

O senhor tornou-se um crítico da extinção das cátedras. Por quê?
Na década de 1960 fazíamos uma crítica muito feroz às cátedras. E, de fato, tinha catedrático que tratava o assistente como office-boy, mandava até comprar cigarros. Eram, é claro, as exceções, mas serviram como a causa maior da luta. Hoje creio que os grandes catedráticos estão fazendo falta. Fui bafejado pela sorte. Meu catedrático era o professor Sérgio Buarque de Holanda, um homem excepcional. Ele se reunia com todos os assistentes e todas as semanas discutíamos o curso, como é que tudo no departamento se desenvolvia, e, no fim do ano, recebíamos a “lição de casa” para fazer. Ele sugeria: “Você vai dar aula para a Geografia neste ano”, “Você vai dar o primeiro ano de História Colonial II”, “Você dará República”. Fazia isso no mês de novembro, dezembro e, na ocasião, recebíamos as bibliografias para os estudos e preparação dos cursos por ele indicados. Em fevereiro nos reuníamos para ver quais eram as dúvidas e por onde caminhar. Você pode me dizer: “Ah, você é da velha guarda, gosta de ter chefe, de ser mandado, não tem coragem de fazer as coisas”. Mas o professor Sérgio sabia abrir os espaços. Você não ficava solto totalmente, mas tinha liberdade para dar os cursos. Cada qual com seu estilo. Depois que se aposentou, mais de uma vez, em entrevistas, ele dizia: “Tenho orgulho de ter orientado as pessoas que orientei até o fim e tenho também orgulho de dizer que cada um seguiu a sua carreira da sua forma, mas todos ocupam um lugar de destaque”. Sérgio Buarque era um verdadeiro professor e um catedrático exemplar. Quando digo que os bons catedráticos fazem falta, penso naqueles que fizeram da cátedra um instrumento de formação de uma verdadeira escola. Hoje as carreiras são mais independentes e quase sempre muito rápidas, muito diferente daquela época.

Numa entrevista, o senhor fez críticas ao esvaziamento do ritual da defesa de tese. Por quê?
No meu tempo, você estava ali, suando diante da banca, e os seus amigos lotavam o anfiteatro para apoiar. A defesa de tese era um acontecimento na universidade. Hoje, às vezes, você faz a defesa com a banca e só o candidato. Outras circunstâncias também mudaram. Antigamente tese de doutorado só ia para a defesa quando o orientador e o candidato realmente se satisfaziam com aquilo que tinham pesquisado e escrito. Agora não, o mestrado acaba religiosamente em dois anos, o doutorado em quatro. Eu me lembro de uma moça que pediu uma prorrogação de dois meses para entregar sua tese. Não deram. Ela fez o que pôde e entregou a tese num dia 31 de dezembro. Mas um membro da banca ficou doente, outro viajou, e a defesa só aconteceu em maio. A banca criticou de forma muito pesada os dois últimos capítulos da tese, que considerou mal escritos, e a moça se defendeu como pôde. Não teve nota alta, por causa do final sofrível. Na hora de se despedir, ela entregou à banca os dois capítulos refeitos em janeiro e fevereiro. Estavam impecáveis.

Mas essas coisas não mudaram à toa, não é professor?
Claro que não. Muitas pessoas passavam anos fazendo uma tese. Mas sou contra o rigor excessivo, esse triunfo da burocracia. Um dos melhores livros de Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo no tempo de Felipe II, levou 20 anos de pesquisa e publicação. Você acha que o professor Sérgio Buarque de Holanda poderia escrever Visão do Paraíso em dois anos?

Mas a produção acadêmica hoje é muito maior do que naquela época…
É verdade, mas não quer dizer que seja melhor. Não gosto de fazer comparações, porque os tempos são completamente diferentes. Mas alguém consegue acompanhar tudo o que é publicado? Quem é que garante que as referências bibliográficas de fato foram lidas por quem escreveu. Sempre há exceções, claro. Tem gente séria em todo lugar. Não somos eruditos mais, a erudição foi acabando. Resta um ou outro erudito. Como é que você detecta uma fraude num artigo que está bem escrito, dentro dos padrões? Vivi essa experiência com um amigo meu. Certa vez ele me disse que tinha publicado o mesmo artigo em oito revistas diferentes, mudando apenas o título, o primeiro parágrafo e o último. Ninguém percebeu que era o mesmo artigo.

Sua tese de doutoramento foi sobre o Partido Republicano Federal, uma tentativa fracassada de criar um partido nacional logo após a proclamação da República. Por que se interessou por esse tema?
Eu sempre tive uma preocupação com a falta de partidos no Brasil. Desde quando era criança, nunca conseguia compreender como a UDN e o PSD, que eram antagônicos no plano nacional, podiam estar unidos em Mogi das Cruzes, por exemplo. O Partido Republicano Federal foi escolhido numa conversa minha com o professor Sérgio Buarque de Holanda. Ele me disse: “Olha, é um partido que precisa ser recuperado. No fundo é o primeiro partido republicano depois da criação da República”. Ele sugeriu porque parte do núcleo documental desse partido estava nas mãos dele. Peguei as atas que ele me deu, nos sentamos depois umas duas vezes na casa da rua Buri, onde morava. Ficamos conversando muito e fui atrás da documentação existente no Arquivo Público do Estado. Dona Maria Amélia, a mulher do professor, tinha parentes que foram ligados ao partido, então ficou com cartas, documentos. Não foi uma tese prolixa. Foi uma tese curta, feita para dar o recado que a documentação permitia. Mas foi um partido importante. Durou pouco. Manteve-se por um único governo e não chegou a ser da situação ou da oposição na escola do presidente Campos Salles, o que tem muito a ver com a nossa prática política até hoje. Eu ia dizer que a única diferença é o PT. Apesar de tudo ainda o é.

Sua dissertação de mestrado chamava-se Um estabelecimento agrícola na província de São Paulo nos meados do século 19…
Esse é o nome que saiu na Revista de História. Depois foi publicada como Ibicaba, uma experiência pioneira. A fazenda Ibicaba é uma primeira experiência com braço livre na mão-de-obra brasileira, uma fazenda de café no oeste paulista. Até 1840, época em que o senador Vergueiro compra a fazenda e começa a organizá-la, tinha só escravos. Em 1850, com a proibição da entrada de mão-de-obra escrava, começa a experiência com as primeiras levas de imigrantes alemães e também de portugueses, que na época nem eram considerados imigrantes. É muito bonito ver essa experiência, ver como os administradores confundiam tudo, tratando os imigrantes como se fossem escravos. Aí veio o Thomas Davatz, que é um professor alemão, e fez um relatório muito sério sobre a imigração alemã em Ibicaba, que depois resultou no livro Memórias de um colono no Brasil, publicado na Europa no século 19 e só traduzido em 1954. Foi o professor Sérgio Buarque quem o traduziu.

E quanto ao futebol? Por que o senhor resolveu estudar o assunto?
Hoje muita gente na academia estuda o futebol. Acho que fui o primeiro a fazer. O professor Sérgio Buarque me alertou: “Você vai ser considerado um professor de segundo time por isso”. E eu respondia: “Mas o senhor não disse que estudar o povo é o que está faltando no Brasil?”. Durante muito tempo fui visto como alguém que estudava bobagens. Ninguém mais deu um curso de história do futebol na USP como eu fiz, em meados dos anos 1970. Na época, virei uma figura meio folclórica. Apareci em reportagens fazendo embaixadinhas. Escrevi o livro O que é futebol, para a coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, mas ele nunca mais foi reeditado. O Caio Graco Prado me explicou: “Eu pensei que vendesse que nem água, mas o povo não lê sobre futebol, a não ser as manchetes dos jornais”. Isso hoje pode ter mudado. Quando dirigia o Arquivo Público do Estado, batalhei muito por um projeto sobre o futebol brasileiro em parceria com o diretor do Museu da Imagem e do Som (MIS), que era o professor Bóris Kossoy. Estão lá 64 entrevistas. Entrevistei o Rivelino, o Gilberto Tim, entre outros. Eu sempre achei que o que se escreve sobre o futebol no Brasil continua sendo uma história do que aconteceu em São Paulo e Rio, com um pouco de Minas, do Paraná e do Rio Grande do Sul. Queríamos fazer um livro sobre a história do futebol brasileiro que falasse de todos os estados, pensamos em dividir em 21 capítulos, que era o número de estados da época, cada um escrito por uma pessoa. Não foi adiante porque ninguém quis financiar. Na época era um tabu. Hoje acho que vingaria.

E hoje? A bibliografia sobre futebol é insuficiente?
Tem muita coisa escrita. Só eu tenho uns 400 livros e não comprei os últimos que saíram. Um dos que melhor traduziu esta paixão brasileira pelo futebol talvez tenha sido Ruy Castro, com o livro sobre o Garrincha. Mas atualmente há muitos livros bem-feitos sobre o assunto. Mas escrever sobre um tema fascinante como este é sempre insuficiente.

O senhor é são-paulino, não é?
Continuo. Sou são-paulino desde os 9 anos de idade, quando testemunhei a estréia do Leônidas da Silva no Pacaembu. Quando foi contratado pelo São Paulo, o Leônidas fez a viagem de trem do Rio para São Paulo e parou em todas as estações do caminho. Eu fui à estação de Guararema vê-lo. Lembro-me dele como um gigante, mas na verdade não era um homem alto. Depois fui pedir para o meu pai: “Olha, o Leônidas vai estrear um dia desses. Me leva lá?”. Ele disse: “Não prometo nada porque você sabe que não gosto de futebol”. Ele relutou, mas no final disse: “Eu vou te levar, você é bom aluno. Mas como é que fazemos? Eu não gosto de assistir”. Combinamos que ele me deixaria numa rua próxima ao estádio, iria para o cinema e depois nos encontraríamos ali. Me deixou lá às 11h30, com dois sanduíches e uma garrafa de guaraná. Era a primeira vez que eu ia a São Paulo e aquele jogo teve um recorde de público, mais de 67 mil pessoas. Fiquei com medo de subir para procurar um lugar na arquibancada, eu era muito pequenininho – sou até hoje, mas naquele tempo era magrinho. Fiquei encostado no alambrado. Depois de algum tempo, senti um toque. Nunca me esqueço da mão bondosa no meu ombro e da frase: “Fique tranqüilo, menino, que você está protegido. Aproveite o jogo”. Eram quatro torcedores atrás de mim. Me perguntaram qual era o meu time. Eu respondi: “São Paulo”. Eram quatro corintianos. Aí um deles me disse: “Então vamos matar você”. Era pura brincadeira estampada no sorriso de todos. E eles me protegeram mesmo. No final me disseram: “Você gastou dinheiro à toa. O Leônidas não jogou nada”.

O senhor dirigiu o Arquivo Público do Estado por 11 anos, entre as décadas 1970 e 1980. Como foi trabalhar para governos tão diferentes como os de Paulo Egydio Martins, Paulo Maluf e de Franco Montoro?
Fui trabalhar lá aos 42 anos. Era a primeira vez que eu atravessava os muros da universidade para agir num mundo totalmente novo, que é o mundo político. Três pessoas são responsáveis por esta experiência em minha vida: novamente o professor Eurípedes Simões de Paula, o professor Sérgio Buarque de Holanda e, principalmente, a professora Anita Novinsky. O secretário da Cultura do governo Paulo Egydio era o dr. José Mindlin. Ele estava à procura de um substituto para o professor Francisco de Assis Barbosa, de partida para o Rio de Janeiro. Aí, quando ocorreu o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, o dr. Mindlin saiu da Secretaria da Cultura e assumiu em seu lugar o dr. Max Feffer. A professora Anita voltou à carga e aí Pfeffer me convidou para ser o diretor do Arquivo. Fiquei 11 anos, durante quatro governos e sete secretários. Minha maior medalha na vida eu tive quando saiu o governador Paulo Maluf e entrou o professor Franco Montoro. Montoro recebeu um abaixo-assinado, encabeçado por dom Paulo Evaristo Arns, dizendo que eu não devia ser substituído, que eu era um homem da USP e estava fazendo um bom trabalho. O novo secretário, o ex-deputado Pacheco Chaves, me chamou para conversar. Depois reuniu os assessores e disse “Esse é o professor Witter. É o único que fica. Tenho certeza de que saio antes dele”.

Foi o que aconteceu?
Sim. Eu só saí no governo Quércia. A nova sede do Arquivo, perto do Terminal Rodoviário do Tietê, foi idealizada na minha gestão. O projeto foi adiante no governo Covas. Sempre critiquei muito o governador Mário Covas, pois sua teimosia era conhecida em todas as esferas do poder. Mas ele deu o maior exemplo de ética que já vi. Tirou o projeto do novo prédio do papel, mas queria fazer algumas mudanças. Fui chamado pelo então secretário, o deputado Marcos Mendonça e por Zélio Alves Pinto, diretor do Departamento de Museus e Arquivos, para ver se eu concordava com as mudanças que iam ser feitas, porque não havia dinheiro para fazer tudo. Nunca vi isso acontecer. Concordei, mas sugeri que eles deixassem alicerces para permitir que o arquivo crescesse. Até agora fico feliz por saber que existiram e existem pessoas com ética. Atualmente muito poucas, é verdade…

O senhor também teve passagem pela direção do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e pelo Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga…
O IEB também tem a minha marca. Foi na minha gestão, entre 1990 e 1994, que o instituto conseguiu sua sede nova. Funcionava em dois andares de um prédio. E eu conquistei umas seis ou sete colméias ao lado do Crusp, onde estão a direção, a biblioteca, os espaços de exposição. Lá no IEB tem um grande painel que a Tomie Ohtake deu para mim. Tenho o maior orgulho de a Tomie me reconhecer em qualquer lugar, ela está com 90 e tantos anos. Ela sempre fala: “Professor Witter, jamais esquecerei que o senhor abriu as portas da USP para mim”. No Museu Paulista, tive o privilégio de coordenar uma grande reforma. A FAPESP e a iniciativa privada, com o apoio da Fiesp, sob o comando do Carlos Eduardo Moreira Ferreira, permitiram que quase todos os projetos fossem realizados. Também foi possível levar para o museu a coleção de O Estado de S. Paulo, um presente da família Mesquita. O Jornal da Tarde também. Há uma outra realização marcante na minha gestão. Falo da iluminação da fachada do prédio. Isso só foi possível pela atuação de Herman Wever, então na Siemens. Quando a iluminação foi inaugurada, num dia bonito e memorável, eu deixei o museu e a USP. Era minha aposentadoria que começava, em 9 de novembro de 1999. A saudação da despedida foi feita pelo reitor, na época o professor Jacques Marcovitch.

Como foi retornar para a cidade de Mogi das Cruzes?
Gostei muito de voltar para Mogi. Pude reencontrar muitos amigos. É quase um reviver da infância e da juventude. O melhor de tudo foi dar continuidade às minhas atividades como professor e acadêmico. Além delas, pude retomar também meu lado jornalístico como escritor de crônicas no jornal O Diário de Mogi. Tenho, no mesmo jornal, uma página dedicada a comentários de livros. Agora eu encontro gente na rua que nunca me viu, gente simples, que vem falar comigo sobre minha coluna.

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