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Biologia

Música no brejo

Sapos, rãs e pererecas exibem 70 cantos e 29 modos de reprodução

João Alexandrino/UNESPHypsiboas bischoffi: uma perereca da Mata AtlânticaJoão Alexandrino/UNESP

Anoitece, os “sapólogos” esperam à beira da lagoa. Um som rompe o silêncio, “pluic, pluic, pluic…”. Leptodactylus notoaktites, diz Célio Haddad. É a rã-gota. Aos poucos surgem mais e mais coaxos: graves, agudos, coros, solos, trinados, batidas metálicas, de pontos diversos da lagoa ou da mata ao redor. Haddad acompanha: Hypsiboas faber, Dendropsophus minutus… “Temos que encontrar a Phyllomedusa”, orienta. São pererecas verdes, com coxas vermelhas ou laranja rajadas de roxo, e ficam na vegetação próxima à água. O canto parece um estômago roncando.

Haddad, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, coordena um projeto de mapeamento da diversidade de anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas) do estado de São Paulo. A Mata Atlântica abriga grande abundância de anuros, com os mais diversos tamanhos, cores e vozes. São verdes, castanhos, dourados, a perereca-de-pijama tem listras e bolinhas, que variam de um indivíduo para o outro, o sapo-de-chifre parece uma folha seca… Além disso, essa diversidade envolve dezenas de estratégias reprodutivas, ciclos de vida, composições químicas, estados de conservação etc. Para estudar essa imensidão, Haddad trabalha com estudantes e colaboradores, que em conjunto buscam desvendar a riqueza natural dessa floresta brasileira, uma das regiões mais biodiversas do mundo e que está seriamente ameaçada pelo avanço da ocupação humana.

Explorar a floresta
Parte do trabalho é andar pelo mato, esperar à beira de charcos. Ouvir com atenção revela as espécies em atividade reprodutiva, pois os machos cantam para atrair as fêmeas. Pesquisadores experientes ouvem a cacofonia de um lago e logo reconhecem os integrantes do coro. Para guardar e transmitir esse conhecimento, é preciso gravar os cantos de representantes das espécies estudadas. Essas gravações são armazenadas em coleções sonoras e dão origem a representações gráficas, os sonogramas, que permitem diferenciar cantos com mais detalhe do que ouvidos humanos captam. A descrição de uma espécie, portanto, inclui dados sobre sua aparência, sua composição genética e seu coaxo também.

Como parte do projeto, Haddad e três de seus alunos produziram um CD com amostras do canto de 70 espécies de sapos, rãs e pererecas da Mata Atlântica. Esse guia sonoro traz um coaxo em cada faixa, que no livreto corresponde a seus nomes científico e popular, além de uma foto e informações sobre o hábitat do animal. Segundo Haddad, “o guia tem muito valor para pesquisadores, mas também para leigos e pode ser usado no ensino”. Agora qualquer um pode sair pela noite silvestre ou escutar a perereca que mora no chuveiro e tentar descobrir sua identidade.

Ao encontrar os sapinhos na mata há inúmeras informações a coletar. Observá-los, ver onde o macho canta, como a fêmea reage, como se acasalam, o que fazem com os ovos e muito mais. Gravar seu canto. Capturá-los. É importante fotografar, de preferência na natureza; dessa forma se preservam informações sobre suas cores e formas, assim como o ambiente onde vivem.

Um dos produtos de tanta observação foi uma revisão dos modos reprodutivos dos anuros. Quando se pensa em reprodução de sapos, vêm à mente girinos em lagos, que aos poucos criam pernas e perdem a cauda, para enfim sair da água. Os mais observadores terão visto desovas, como longos colares de contas pretas ou em massas de espuma presas à vegetação. Mas não há só isso: até recentemente eram conhecidos 29 modos reprodutivos diferentes no mundo todo, dos quais 21 ocorrem na América tropical, campeã em estratégias ecológicas devido à diversidade de ambientes. Modos reprodutivos envolvem a descrição de onde os ovos são postos, do desenvolvimento dos embriões e se há algum tipo de cuidado parental. Algumas espécies carregam os ovos nas costas. “De dentro deles saem girinos, depositados pela mãe na água empoçada em bromélias”, conta Haddad, que mostra a perereca recém-encontrada em viagem de campo. Algumas mães engolem seus ovos, e os girinos se desenvolvem em seu estômago. A revisão feita por Haddad e Cynthia Prado, pós-doutoranda em seu laboratório, acrescentou mais dez modos reprodutivos, todos da Mata Atlântica. Há ninhos em tocas subaquáticas ou escavados fora de lagos, até mesmo massas de ovos depositadas diretamente no solo úmido; girinos que saem de ovos grudados a rochas perto da água e se desenvolvem aderidos à pedra molhada.

CÉLIO HADDAD/UNESPPerereca-de-pijama (Hypsiboas latistriatus), de Campos do JordãoCÉLIO HADDAD/UNESP

Infelizmente é preciso sacrificar alguns indivíduos em prol da ciência. Por isso, Haddad ressalta que “é preciso coletar o máximo possível de informação, para valorizar aquela vida”. Os animais são medidos, uma amostra de fígado é retirada e preservada em álcool para análises genéticas. A partir daí passam a ser espécimes de coleção: recebem uma etiqueta que os identificará conforme onde e quando foram coletados, por quem e todas as informações de que se dispõe sobre a espécie. Serão preservados em formol e álcool e transferidos para um museu. A coleção de anfíbios da Unesp de Rio Claro é uma das mais importantes do Brasil, em parte graças ao projeto em andamento. Haddad conta que há três anos a coleção tinha cerca de 6 mil espécimes. Hoje chega a cerca de 15 mil. Além disso, trocas com o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), o Museu Nacional, do Rio de Janeiro, e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) vêm contribuindo para o enriquecimento da coleção da Unesp.

Muitos se chocam ao ver coleções zoológicas, mas elas são essenciais ao avanço do conhecimento sobre a natureza. No laboratório de Haddad é comum encontrar pesquisadores em busca de auxílio para identificar algum animal. O herpetólogo (especialista em répteis e anfíbios) chega com seus sapinhos em conserva, quem sabe com fotos e uma gravação do coaxo. Haddad olha, ouve o canto, pergunta onde o bicho foi encontrado. Todas essas informações são peças que se encaixam e levam à identificação. Ou não. Os pesquisadores comparam com espécimes do museu, com coaxos da coleção sonora. Talvez não cheguem a uma conclusão decisiva. Quem sabe é uma espécie nova? “A diversidade biológica brasileira é tão grande e ainda tão pouco conhecida que espécies novas aparecem todo dia”, diz Haddad. E são descobertas mesmo em áreas habitadas, como a perereca do gênero Phyllomedusa que vive nos arredores da cidade de São Paulo e ainda não foi oficialmente descrita.

Diversidade invisível
Muitas vezes nem a experiência e a comparação com os espécimes de museu são suficientes. Certas espécies têm aparência muito semelhante e só podem ser distinguidas pelo que não enxergamos. O que manda na natureza é a evolução, não nossos olhos. Por isso, dois grupos de animais podem ser parecidos por fora, mas geneticamente tão diferentes que não conseguem cruzar e se reproduzir. Talvez um exame mais cuidadoso revele diferenças, por exemplo, em comportamento ou fisiologia. Essa diversidade deve ser conhecida e preservada.

Por isso é preciso recorrer ao material genético, extraído daquelas amostras de fígado preservadas em álcool. A partir daí se desvenda a seqüência genética, que será comparada à de outros animais. O resultado são as chamadas árvores filogenéticas, que são genealogias de espécies. Em colaboração com pesquisadores de vários países, Haddad publicou no último ano duas monografias que reorganizaram a classificação dos anfíbios e mudaram muito da nomenclatura científica. “Isso vai dar uma chacoalhada nessa área de pesquisa, que está meio estagnada. Para contestar as mudanças será preciso mais trabalho, o que trará avanços”, prevê.

CÉLIO HADDAD/UNESPA perereca-da-folhagem, ou Phyllomedusa tetraploidea, de Ribeirão Branco, interior paulista CÉLIO HADDAD/UNESP

Outra fonte de variedade são os cromossomos, pacotinhos nos quais os genes são organizados. O número e arranjo dessas estruturas é importante porque durante a fertilização os cromossomos do espermatozóide têm que se alinhar com seus correspondentes no óvulo. A partir daí forma-se um embrião, e cada divisão celular depende desse pareamento de cromossomos. Há mecanismos com que organismos contornam esse problema. Mas na maior parte das vezes alterações em número de cromossomos dão origem a espécies distintas. Na Unesp de Rio Claro, Sanae Kasahara coordena uma linha de pesquisa que representa a forma de compreender os processos evolutivos: o estudo do surgimento de novos cromossomos e de como eles se comportam durante a fertilização e a divisão celular.

Tempo e espaço
Para desvendar a evolução, há mais do que distinguir espécies, que são como uma imagem estática de um processo dinâmico – como quando se aperta o pause durante um filme. Mas como ir além?

Uma forma é compreender processos espaciais. Kelly Zamudio, da Universidade Cornell, dos Estados Unidos, trabalha em colaboração com Célio Haddad. Ela tem um projeto financiado pela Fundação Nacional de Ciências norte-americana (NSF, na sigla em inglês), em que compara três espécies com níveis diferentes de especialização ecológica: uma que vive somente em bromélias, outra que circula por qualquer lugar ao longo da Mata Atlântica e uma terceira que depende de áreas mais úmidas para se reproduzir. De acordo com Kelly, “essa especialização ecológica é correlacionada com movimento e tem efeitos detectáveis na diversidade genética de cada uma das espécies”. Ou seja, se pegarmos exemplares da perereca mais móvel em vários pontos de sua distribuição, não haverá grande diferença. Já na que não se afasta de sua bromélia, detectaremos diferenças genéticas mais marcadas entre as populações. Com esse trabalho, a pesquisadora mostra que “aspectos inerentes à ecologia ou biologia dos animais podem nos ajudar a compreender diferenciação e, ao fim, especiação”.

A filogeografia vai ainda mais longe. É o estudo geográfico da diversidade genética, que permite inferir a história das populações no tempo e no espaço. Um pressuposto central é que, se a constituição genética de uma população é mais diversa, é porque ela talvez exista naquele local há mais tempo, em relação a populações mais homogêneas. Essa é a abordagem usada por João Alexandrino, pesquisador associado à Unesp de Rio Claro. Seu projeto envolve comparar padrões filogeográficos de seis espécies de anuros com ampla ocorrência na Mata Atlântica. O pesquisador busca compreender mais do que sua evolução: “Pretendo identificar as áreas que ao longo dos milhares de anos permaneceram estáveis o suficiente para sustentar populações viáveis de sapos e seus parentes”, explica Alexandrino. Essas áreas têm maiores chances de continuar vicejantes ao longo de flutuações ambientais, portanto é essencial que sejam preservadas.

“Sapos, credo!”, é o que muita gente diz. Com muita boa vontade, alguns concedem que pelo menos eles comem moscas e mosquitos. Preconceitos à parte, são bichinhos cheios de surpresas e maravilhas. E como são mais frágeis do que aves ou mamíferos, conhecê-los ajuda a detectar quais áreas de nossas florestas estão mais em apuros.

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