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Cooperação

A teia envolve o cérebro

Programa CInAPCe promove articulação inédita para mapear a epilepsia

Começa a funcionar até o início de 2007 o mais articulado esforço de pesquisa já realizado no país na compreensão do funcionamento do cérebro. Trata-se do programa CInAPCe (sigla para Cooperação Interinstitucional de Apoio à Pesquisa sobre o Cérebro e uma alusão ao homófono sinapse, o local de contato entre os neurônios), uma rede que reúne três dezenas de grupos em seis instituições paulistas, de áreas diversas do conhecimento que vão da neurologia à computação, da física à genética. O ponto de partida do projeto é a aquisição de quatro máquinas de ressonância magnética de alto campo, dotadas do dobro da potência dos aparelhos de geração anterior existentes no Brasil. Combinadas com outras ferramentas, essas máquinas abastecerão um grande estudo sobre os mecanismos da epilepsia na população brasileira, também voltado para o desenvolvimento de métodos de investigação científica e de diagnóstico, prevenção e tratamento da doença. Nos próximos quatro anos, o projeto vai propiciar treinamento e formação de pelo menos 300 pesquisadores, sendo 30 pós-doutores, 100 doutores, 50 mestres, 100 alunos de iniciação científica e 20 técnicos.

Os aparelhos de ressonância magnética de alto campo permitem obter imagens do cérebro com definição e resolução espacial muito maiores do que as disponíveis atualmente. Também viabilizam a obtenção de imagens num período de tempo bem mais curto. Hoje existe uma limitação para realizar exames muito longos, pois a colaboração dos pacientes dentro do claustrofóbico equipamento de ressonância resiste até um determinado ponto. Com as novas aquisições, um conjunto de exames que demorariam duas horas – e que, por isso, eram inviáveis – poderá ser feito em no máximo 40 minutos.

Cada equipamento de alto campo custa cerca de US$ 2 milhões. Um deles já foi adquirido pelo parceiro privado da rede, o Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa, vinculado ao Hospital Albert Einstein, de São Paulo. As outras três máquinas serão adquiridas com financiamento da FAPESP e chegarão ao país até o final do ano. Vão ser instaladas na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), na capital, na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto (FMRP). “Os hospitais dessas instituições concentram uma casuística de epilepsia que poucos centros do mundo dispõem para estudar”, diz o neurologista Fernando Cendes, chefe do Laboratório de Neuroimagem da FCM-Unicamp, um dos idealizadores do projeto.

Capacidade multiplicada
Com máquinas semelhantes, as quatro instituições conseguirão trabalhar simultaneamente em protocolos de pesquisa. A capacidade de recrutar pacientes de cada um dos quatro hospitais será multiplicada com o trabalho em grupo. “A decisão de comprar aparelhos idênticos resultou justamente da intenção de estimular o trabalho conjunto”, diz Luiz Eugênio Mello, pró-reitor de Graduação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também um dos coordenadores do programa. “Uma sinergia dessa magnitude não seria atingida de outra forma”, afirma.

A ressonância magnética permite captar imagens de vários tipos, desde a anatomia do cérebro até seu caráter funcional. A base teórica do método é a detecção da radiação eletromagnética emitida por núcleos atômicos submetidos à ação de um campo magnético intenso e previamente excitados por pulsos de radiofreqüência. As substâncias branca e cinzenta do cérebro possuem diferentes propriedades e concentrações de prótons de hidrogênio. Isso confere aos sinais detectados as condições de contraste necessárias para a definição das estruturas anatômicas. Também é possível estudar o metabolismo e o funcionamento cerebral através da espectroscopia por ressonância magnética, capaz de dimensionar a presença de metabólitos e neurotransmissores cerebrais. Já a ressonância magnética funcional detecta áreas de maior fluxo sangüíneo e consumo de oxigênio acoplado à ativação de determinadas regiões cerebrais específicas, o que permite mapear o funcionamento do cérebro durante a execução de determinada tarefa. A resolução do sinal depende do campo magnético da ressonância magnética e, portanto, o uso de alto campo propicia maior sensibilidade.

A chegada dos novos aparelhos nem de longe significa que outros equipamentos não serão utilizados. Ao contrário, o programa busca incentivar a pesquisa sobre o uso combinado de tecnologias com o objetivo de desenvolver ferramentas de diagnóstico melhores. Uma dessas linhas de investigação, para citar um exemplo, é o uso combinado da ressonância magnética funcional com o eletroencefalograma (EEG). Enquanto a ressonância pode fornecer imagens do cérebro durante uma crise de epilepsia, o EEG, com eletrodos em diferentes pontos da cabeça, é capaz de informar o momento exato em que a crise começou. O uso conjunto das tecnologias é desejável, mas há problemas técnicos que os pesquisadores do programa CInAPCe tentarão superar com o uso de modelos animais. O principal deles é que os campos magnéticos dos eletrodos do EEG interferem na sensibilidade da ressonância.

Um método que será pesquisado é o Diffusion Tensor Imaging (DTI), que permite estudar as conexões entre áreas diferentes do cérebro através de mapeamentos constantes feitos por computador. Por meio dele, o cérebro é transformado em uma rede de fibras nervosas que conecta pedaços diferentes de seu território. “Com as novas máquinas será possível trabalhar nessa área de ponta”, diz Luiz Eugênio Mello.

Outros arranjos também serão utilizados de forma articulada, como sistemas combinados como o da ressonância funcional (fMRI) com a eletroencefalografia (EEG), ou da EEG com a magnetoeletroencefalografia, entre outros. “Técnicas como essas, no estágio em que se encontram, são já extremamente úteis para o estudo do cérebro, algumas com ampla aplicação clínica. Todas se encontram em franco desenvolvimento e existe um grande esforço científico e tecnológico no sentido de estabelecer arranjos em que essas técnicas são combinadas para aquisição simultânea de dados”, diz Roberto Covolan, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que também coordena o programa.

Existem três empresas no mundo que fabricam aparelhos comerciais de ressonância magnética de alto campo: a General Electric, a Philips e a Siemens. Cada grupo terá liberdade para comprar de quem julgar mais adequado, desde que os equipamentos possam operar em rede. Os pesquisadores do programa CInAPCe comprarão os equipamentos das empresas que permitirem a manipulação e aperfeiçoamento dos softwares por profissionais brasileiros. O contrato de parceria permitirá criar competência nacional e adequar as técnicas às necessidades da pesquisa. Isso atende a um dos grandes objetivos do projeto, que é promover o desenvolvimento tecnológico. No campus da USP em São Carlos será construído um quinto equipamento de ressonância, esse para estudo de modelos experimentais em ratos e primatas não-humanos. O estudo fisiológico desses modelos será feito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que tem tradição em pesquisa básica da epilepsia. Num exemplo da articulação, um achado da rede de máquinas de ressonância poderá ser testado num modelo experimental pelo grupo de São Carlos e o tecido do cérebro animal, em seguida, será encaminhado para a Unifesp, para estudos fisiológicos.

Internet avançada
Embora situadas em cidades distantes, todas essas equipes trabalharão simultaneamente no ambiente virtual, pois estarão interligadas por rede óptica de altíssima velocidade inaugurada no ano passado, o projeto KyaTera (Plataforma Óptica de Pesquisa para o Desenvolvimento da Internet Avançada). Como a quantidade de dados gerada será muito grande, a rede rápida permitirá sua transmissão de forma efetiva e segura. O impacto da rede na formação de recursos humanos será ponderável, segundo os organizadores do CInAPCe. “Os pesquisadores de diversas áreas vão atuar juntos e em rede, num ambiente novo, em que um terá de se esforçar para compreender a linguagem do outro”, afirma Colovan. “A rede permitirá que todos os estudantes de pós-graduação das diferentes instituições tenham treinamento, por meio de videoconferência, com os melhores especialistas de cada grupo – o que não aconteceria sem a rede”, diz Luiz Eugênio Mello. “Se a pesquisa da epilepsia já era uma área forte no Brasil, isso a tornará mais forte ainda”, completa.

Fatores múltiplos
Outra das preocupações do CInAPCe é a divulgação científica. Por isso haverá uma articulação com a Aspe (Assistência à Saúde de Pacientes com Epilepsia), que integra uma campanha global liderada pela Organização Mundial da Saúde cujo objetivo é propagar informações sobre a epilepsia e promover o acesso a tratamentos adequados.

Houve um notável progresso na pesquisa em epilepsia na última década, impulsionado pelos avanços nos métodos não-invasivos de obtenção de imagens do cérebro. Mas questões fundamentais relacionadas à doença ainda não foram esclarecidas. Na verdade, não se trata de uma doença única. Sob o rótulo de epilepsia há uma variedade de patologias que interferem na dinâmica cerebral e têm como denominador comum a eclosão recorrente de crises. “Essa multiplicidade de fatores mostra a necessidade de se articular especialistas de diferentes áreas trabalhando num projeto comum”, explica Fernando Cendes. A complexidade da atividade cerebral requer um esforço de pesquisa de caráter multidisciplinar. Por isso os centros mais avançados de países como os Estados Unidos estimulam a colaboração entre pesquisadores das ciências exatas, tecnológicas e biomédicas no estudo dos processos cerebrais. A meta sempre é buscar novas respostas sobre a dinâmica cerebral e aprimorar as ferramentas já existentes.

O programa CInAPCe começou a ser gestado no final dos anos 1990, com um objetivo mais amplo e um espectro de pesquisadores mais restrito. A idéia original era criar uma rede de pesquisa interdisciplinar dentro da Unicamp para adquirir tecnologia de ponta e estudar a dinâmica cerebral. “A complexidade inerente à atividade cerebral requer que a pesquisa nessa área cubra um amplo espectro de atividades, utilizando desde técnicas recentemente desenvolvidas pela genética molecular até sofisticados métodos para mapeamento funcional do cérebro humano”, diz Covolan. A intenção de restringi-lo à Unicamp foi posta de lado no ano 2000, quando os principais articuladores do projeto, os professores Covolan e Cendes, apresentaram a idéia ao então presidente da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, hoje diretor científico da Fundação, e ao diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Mário Saad. Foram aconselhados a envolver mais instituições e a criar uma rede de pesquisa além dos limites da Unicamp. Procuraram outras universidades e, no final daquele ano, lançaram a idéia da rede estadual.

Escolha natural
Já o objeto de estudo foi limitado para tornar o projeto mais tangível. A escolha do tema epilepsia foi natural. A doença era o assunto mais estudado pelos participantes do projeto. Ao mesmo tempo, a escolha não comprometia a idéia original. “Uma boa parte do que os pesquisadores aprenderam sobre as áreas do cérebro, como as responsáveis pelo movimento e pela linguagem, foi a partir de cirurgias de epilepsia”, diz Cendes. “O mapeamento de funções corticais antes e durante a cirurgia de epilepsia oferece uma oportunidade única de estudar as funções cerebrais in vivo. Situações em que a epilepsia também altera a memória permitirão buscar respostas sobre o próprio processo de formação da memória”, explica ele.

A epilepsia ataca 1% da população mundial, sendo que 80% dela vive em países em desenvolvimento. A incidência maior em nações pobres é atribuída a razões variadas, desde a casuística elevada de doenças infecciosas que afetam o cérebro, como é o caso da neurocisticercose e a meningite, às lesões na cabeça provocadas por acidentes de automóvel e complicações no parto.

Em 2001 o programa foi levado à FAPESP, mas precisou superar dois obstáculos. O primeiro foi a explosão da cotação do dólar em 2002, que obrigou a Fundação a congelar importações por um período de tempo. No final de 2003 a situação normalizou-se e o projeto retomou seu curso. O segundo desafio foi estabelecer uma configuração ideal para uma iniciativa de caráter inédito e multidisciplinar. Não foi uma tarefa fácil. Foi preciso chegar a um acordo, por exemplo, sobre o tipo de máquina que deveria ser comprado. Até que se alcançasse um consenso sobre ter quatro máquinas de alto campo idênticas trabalhando em rede outros tipos de equipamentos foram cogitados, como o magnetoencefalógrafo ou a tomografia por emissão de pósitrons, mas postos de lado.

Três avaliadores internacionais, Brian Meldrum, professor de neurologia experimental do King’s College, de Londres, Bruce Pike, do Centro de Imagem do Cérebro McConnell, em Montreal, e Ana Nobre, da Universidade de Oxford, auxiliaram a criar diretrizes. “A discussão girou em torno do arranjo que renderia melhor para todos. Alguns grupos tinham experiência e interesse em certas tecnologias e foi preciso alcançar um consenso”, diz Luiz Eugênio Mello. Cada instituição participante deveria contar com um pesquisador da área de ciências exatas e outro da área de biológicas no comando de cada proposta, pré-requisito para garantir a multidisciplinaridade.

O longo tempo usado no desenvolvimento do projeto não foi desperdiçado. Durante esse período, ele foi discutido à exaustão entre seus participantes. “Foi um tempo de noivado antes do casamento que permitiu que todos nos conhecêssemos”, diz Fernando Cendes. “Fomos aprendendo a falar uma mesma linguagem. É um projeto que já nasce amadurecido”. O programa foi idealizado para durar quatro anos. Mas a idéia é que, ao final desse período, desdobre-se em diversos projetos sobre a dinâmica cerebral que se beneficiem da expertise e da infra-estrutura desenvolvidas para o programa CInAPCe.

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