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Astrofísica

Além das estrelas

Luz e ondas de choque aquecem nuvens que concentram matéria formada por prótons e neutrons

NASAA galáxia NGC 3079, no alto, em que luz e ondas de choque aquecem o gás expulso do núcleo, e a Nebulosa de Caranguejo, em que o choque esquenta o hidrogênio (em verde)NASA

Ganha força, finalmente, uma idéia concebida há pouco mais de duas décadas por duas astrônomas – a brasileira Sueli Viegas e a italiana Marcella Contini – para explicar os fenômenos químicos e físicos observados nas entranhas de gigantescas nuvens de gás e poeira que permeiam as galáxias e concentram a maior parte da matéria bariônica do Universo, formada por prótons, nêutrons e elétrons. As evidências mais recentes de que Sueli e Marcella estão certas no que diz respeito ao comportamento da matéria nessas regiões obscuras do cosmos vêm da observação de um tipo peculiar de galáxia: as galáxias com núcleo ativo, assim conhecidas por concentrarem quase todo o seu brilho numa região central pequena, o núcleo.

Em colaboração com o astrônomo Alberto Rodríguez Ardilla, do Laboratório Nacional de Astrofísica, em Minas Gerais, Sueli e Marcella analisaram a estrutura da nuvem de gás e poeira da galáxia com núcleo ativo Markarian 766, considerada relativamente próxima em termos cosmológicos: está a 150 milhões de anos-luz da Via Láctea – para se ter uma idéia dessa distância, a luz detectada hoje pelos astrônomos partiu dessa galáxia há 150 milhões de anos. Descoberta pelo astrônomo armênio Benik Markarian na década de 1960, essa galáxia apresenta uma anatomia semelhante à da Via Láctea, onde está o Sistema Solar: tem uma região central em forma de globo muito luminosa, envolta por um fino disco de estrelas. No coração dessas galáxias um poderoso buraco negro, com uma massa milhões de vezes maior que a do Sol, engole a matéria ao redor e a transforma em energia, em parte regurgitada de volta ao espaço na forma de luz. Não muito longe do monstro devorador de matéria, um anel espesso de gás e poeira abriga estrelas recém-nascidas, que alimentam o interminável ciclo de vida e morte estelar.

Sueli e Marcella conseguiram reconstituir o perfil completo da luz emitida pela região central da Markarian 766 – ou apenas Mrk 766 – a partir de dados obtidos pelo telescópio espacial Hubble e por Rodríguez, usando o telescópio do Observatório de Mauna Kea, no Havaí. Semelhante ao traçado de altos e baixos de um eletrocardiograma, esse perfil registra a quantidade de luz emitida pela galáxia e a nuvem que a envolve em diferentes faixas do espectro eletromagnético, das menos energéticas como as ondas de rádio às de energia mais alta como os raios X. “É uma espécie de assinatura de cores que permite saber a composição química da galáxia e da nuvem de gás e poeira”, explica Sueli, que no final de 2005 encerrou uma carreira de 30 anos como astrônoma no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP) e hoje vive nos Estados Unidos com o atual marido – o físico Gary Steigman, da Universidade Estadual de Ohio -, dedicando-se à divulgação científica.

No espectro de luz da Mrk 766 estavam as evidências de que Sueli e Marcella tanto buscavam para comprovar a explicação que haviam proposto bem antes para os fenômenos físicos observados nas nuvens extragalácticas de gás e poeira. Formadas essencialmente por gases de elementos químicos leves como o hidrogênio, composto apenas por um próton e um elétron, além de elementos mais pesados, como carbono e oxigênio, essas nuvens impedem que a luz do núcleo dessas galáxias chegue à Terra, assim como o nevoeiro de uma manhã fria atrapalha a visão de um motorista na estrada. Mas o bloqueio da luz não é tudo o que ocorre ali. Os corpúsculos de luz (fótons) do núcleo da galáxia transferem parte de sua energia para o gás e as partículas de poeira, aquecendo a nuvem – com a energia extra, os átomos de hidrogênio, silício e carbono, entre outros, tornam-se eletricamente carregados (íons) e emitem a luz detectada por telescópios no espaço e em Terra. Em geral astrônomos e astrofísicos atribuem a energia acumulada por essas nuvens apenas a esse fenômeno de transferência de energia chamado fotoionização. Sueli e Marcella, no entanto, pensam diferente.

“A energia transferida à nuvem apenas pela fotoionização pode ser de dezenas a centenas de vezes menor do que a que observamos”, afirma Sueli. “Algo mais fornece energia para essas nuvens atingirem temperaturas de alguns milhões de graus”. Há pelo menos 20 anos Sueli e Marcella, da Universidade de Tel-Aviv, em Israel, têm uma boa idéia do que pode ser esse algo mais. A astrônoma brasileira já desconfiava que a fotoionização fosse insuficiente para gerar toda a energia das nuvens extragalácticas quando Marcella, especialista em um fenômeno chamado choque, a procurou no início da década de 1980.

Juntas desenvolveram um programa de computador que simula as condições das nuvens de gás e poeira chamado SUMA – soma, em italiano, e também as iniciais de SUeli e MArcella -, que adiciona à fotoionização o efeito das ondas de choque. Numa época em que não existiam computadores pessoais e muito menos laptops, tiveram de se virar com o que havia de mais avançado na USP: um computador Burroughs, programado por meio de cartões de papel perfurados. “O SUMA era um programa tão extenso que tínhamos de colocá-lo em funcionamento apenas nos finais de semana, caso contrário a universidade pararia”, lembra Sueli. Descrito em um artigo publicado em 1984 na Astronomy and Astrophysics, o SUMA funciona hoje até mesmo nos computadores mais simples, desses que se usam para acessar a internet.

Como imaginaram que esses dois efeitos estivessem associados? Nada muito complicado. Sabiam que, em certo grau, a luz do núcleo dessas galáxias contribuía para aquecer a nuvem de gás e poeira. Também sabiam que a nuvem não é homogênea – e sim um aglomerado de nuvens menores que se deslocam em um meio muito menos denso. “Essas características indicavam que a chance de ocorrer ondas de choque nessas regiões é muito grande”, afirma Sueli. Só não imaginavam que a velocidade de deslocamento dessas nuvens fosse tão alta: no caso da galáxia Mrk 766, as nuvens se movem a velocidades entre 100 quilômetros por segundo e 500 quilômetros por segundo, como atestam Sueli, Marcella e Rodríguez em artigo da Monthly Notices of the Royal Astronomical Society de dezembro de 2005, uma das mais importantes revistas da área. “Na região da nuvem mais próxima do núcleo da Mrk 766 predomina o efeito da fotoionização, enquanto na mais distante o principal efeito é causado pelo choque”, explica Sueli. Conhecer de modo mais preciso a energia total dessas nuvens é essencial para se calcularem propriedades físicas como temperatura, densidade e composição química do gás dessas regiões – dados que permitem estimar a evolução química das galáxias e, em última instância, do próprio Universo.

A comprovação de que o choque e a fotoionização atuam em conjunto não se restringe ao caso da Mrk 766. Sueli, Marcella e Rodríguez notaram resultados semelhantes ao analisar outra galáxia com núcleo ativo, a Ark 564. Quem mais se aproximou desses resultados foi a equipe do astrônomo Michael Dopita, da Austrália, que criou um programa que só leva em conta o efeito do choque, mas deixa de lado o da fotoionização. Apesar de haver contestações à interpretação das duas astrônomas para os fenômenos observados nessas nuvens, Sueli segue confiante: “Com o aumento do número de observações mais precisas dessa região central das galáxias, a aceitação de nossa interpretação fica mais e mais próxima”.

O projeto
Evolução e atividades de galáxias; Modalidade Projeto Temático; Coordenadora Sueli Viegas – USP; Investimento R$ 2.247.008,35 (FAPESP)

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