Imprimir PDF Republicar

Difusão

O conhecimento socializado

Com a marca inédita de 6 milhões de acessos mensais, biblioteca SciELO vai estudar o perfil de seus usuários

SANDRO CASTELLIA biblioteca eletrônica SciELO Brasil alcançou um patamar inédito de visibilidade: a cada mês, são realizados por meio da internet 6 milhões de consultas a artigos de revistas científicas brasileiras abrigadas em sua base de dados. A multiplicação dos acessos se dá num ritmo veloz – há três anos, contavam-se não mais do que 200 mil downloads de artigos por mês. Para compreender o fenômeno, o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), responsável pela operação da biblioteca, vai esquadrinhar cada um dos acessos nos próximos meses. “Calculamos que entre 400 e 600 mil acessos mensais provêm de outras bases acadêmicas”, diz Abel Packer, diretor da Bireme e coordenador operacional da SciELO, cuja sigla em inglês significa Biblioteca Científica Eletrônica On-line. “Ainda temos pouca informação sobre a origem da maioria dos acessos”, afirma.

A expansão da popularidade da biblioteca virtual, criada em 1997 e que hoje reúne 158 publicações científicas brasileiras com conteúdo totalmente aberto e gratuito, está relacionada ao sucesso de sites de busca na internet como o Google, que remetem facilmente os internautas aos artigos. Hoje a coleção SciELO tornou-se uma das dez fontes de informação mais acessadas por usuários do Google Scholar, ferramenta do Google especializada em pesquisa acadêmica. Mas se sabe que uma parte dos acessos vindos dos buscadores da internet, além do Google Scholar, não tem origem nobre. Algumas palavras-chave de interesse de quem busca pornografia na rede, como ‘clitóris’, por exemplo, geram um número significativo de pesquisas. Outros termos, como ‘futebol’, também geram uma profusão de consultas. É possível que parte desses acessos seja acidental e não se traduza na leitura dos artigos.

O levantamento que irá mapear a origem dos acessos deve ficar pronto até o final do ano. Mas, desde já, é possível observar que a biblioteca, criada com o objetivo de tornar visível a pesquisa acadêmica feita e publicada no país, está conquistando um perfil e uma importância maiores do que os concebidos por seus criadores: surgiu graças a uma parceria celebrada em 1997 entre a Bireme, que é vinculada à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e à Organização Mundial da Saúde (OMS), e a FAPESP. E conta também com a parceria e apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) desde 2002. De um lado, há que se destacar o desempenho impressionante para uma base de dados que reúne majoritariamente artigos em língua portuguesa. “Aquela preocupação que temos desde os primórdios da internet, de que havia pouca informação em língua portuguesa na rede, começa a ser resolvida de forma sistemática”, diz Abel Packer. “O melhor da produção científica em português está ali”. Dados de 2005 da organização União Latina mostram que quase 2% do conteúdo da internet está em português, ante 45% em inglês. Em segundo lugar, deve-se ponderar que, embora muitos acessos não tenham finalidade acadêmica, os internautas estão consultando informação de qualidade – para ingressar na SciELO, uma revista científica deve cumprir uma série de requisitos alcançáveis só pelas publicações de primeira linha, em relação à qualidade de conteúdo, à originalidade das pesquisas, à regularidade da publicação, entre outras.

“Instrumento de educação”
“Embora não seja sua função original, a SciELO está se tornando uma grande universidade pública virtual, um instrumento de educação que fornece informação para todo mundo que precisa”, diz o astrônomo João Steiner, diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP) e editor da revista Estudos Avançados, uma das mais visitadas da base SciELO. A trajetória dessa revista é reveladora da evolução da biblioteca. A publicação ingressou na base em março de 2004. Desde então, o IEA mobilizou-se para digitalizar todos os números anteriores, desde a criação da revista em dezembro de 1987, e colocá-los integralmente na SciELO. Apesar do ingresso recente, está em 18º lugar entre os títulos mais consultados da história da SciELO. Quando se analisam os dados mensais, a publicação mostra um desempenho crescente. Foi a terceira revista mais acessada em maio, com 233.533 consultas, e alcançou o segundo lugar em junho, com 230.899 consultas.

Os temas “realidade brasileira”, “Brasil” e “Amazônia” são os mais acessados nas buscas dos internautas. O perfil dos três textos mais lidos dá uma medida do que é popular na internet. O primeiro é o artigo “Clonagem e células-tronco”, publicado em meados de 2004, de autoria da professora de genética da USP Mayana Zatz. O segundo é o ensaio “Globalização: novo paradigma das ciências sociais”, assinado pelo sociólogo Octávio Ianni (1926-2004) e publicado em meados de 1994. O terceiro, “A trajetória do negro na literatura brasileira”, foi escrito pelo professor da Universidade Federal Fluminense Domício Proença Jr. e publicado no início de 2004.

SANDRO CASTELLI“Todos são grandes artigos, sinal de que os usuários buscam conteúdo de qualidade”, diz Steiner. “Mas é preciso ser cuidadoso na interpretação dos dados, pois o número de consultas não é um indicador adequado de impacto ou de qualidade”, afirma. O desempenho da publicação mais acessada de toda a biblioteca, os Cadernos de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz, mostra que fatores extra-acadêmicos influenciam a popularidade dos artigos. O primeiro e o terceiro artigos mais consultados são de uma mesma autora, Maria Cecília Mynaio: “Violência social sob a perspectiva da saúde pública” (1994) e “Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade?” (1993). São ensaios tidos como fundamentais para quem trabalha com saúde pública. Mas os editores da revista acham plausível afirmar que o segundo artigo mais acessado, “Musculação, uso de esteróides anabolizantes e percepção de risco entre jovens fisiculturistas de um bairro popular de Salvador, Bahia”, de Jorge Iriart e Tarcísio de Andrade, seja muito procurado porque o tema é popular na internet. “Pessoas interessadas em musculação podem estar reforçando a procura pelo artigo”, diz Reinaldo Souza dos Santos, editor-associado dos Cadernos de Saúde Pública.

Há categorias de revistas mais acessadas que outras, como as do campo da saúde pública. Os números acumulados de nove anos de SciELO mostram que, depois dos Cadernos de Saúde Pública da Fiocruz, com 3,3 milhões de consultas, vem a Revista de Saúde Pública, da Faculdade de Saúde Pública da USP, com 3,2 milhões de downloads. Publicações da área de educação, como Educação e Sociedade, do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES), fundado por professores da Faculdade de Educação da Unicamp, a 7ª do ranking, também são muito procuradas. “Quem movimenta esses números são comunidades de pesquisadores e profissionais  carentes de informação”, diz Packer.

Ciência perdida
Essa produção acadêmica encaixa-se, de certa forma, na tese de W. Wayt Gibbs, que em 1995, num artigo na revista Scientific American, pontificou sobre a existência de uma “ciência perdida do Terceiro Mundo”, não indexada em bases de dados internacionais, mas de grande interesse regional. Referia-se à produção em áreas como saúde pública, agronomia e educação. Com o advento da SciELO, que oferece o conteúdo das melhores revistas brasileiras com acesso aberto, a ciência perdida deixou de ser invisível.

O modelo vem sendo seguido por outros países. Logo após o lançamento da SciELO Brasil em 1997, o Chile (atualmente com 56 títulos) adotou a metodologia e deu início à expansão da Rede SciELO nos países ibero-americanos, que conta com coleções nacionais certificadas na Espanha (26 títulos), Cuba (19 títulos) e Venezuela (16 títulos). Outros países, como Argentina, Colômbia, Costa Rica, México, Peru, Portugal e Uruguai, estão em processo avançado de desenvolvimento das suas coleções. A SciELO também opera coleções temáticas internacionais como nas áreas de saúde pública e ciências sociais.

A revista Química Nova, publicação da Sociedade Brasileira de Química, é um exemplo peculiar. Em 3º lugar no ranking geral da SciELO, com mais de 2 milhões de acessos, a revista tem sua popularidade associada a um conjunto de fatores. O mais importante deles, segundo a editora Susana Torresi, professora do Instituto de Química da USP, é o prestígio da publicação – classificada como Internacional A pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes). “Mas desde que a revista entrou na base SciELO aumentou a procura de pesquisadores de áreas afins, como geoquímica, alimentos e engenharia agrícola, para publicar artigos na Química Nova”, afirma.

Os editores também observaram que um número maior de pessoas, entre estudantes e pesquisadores de outras áreas, passou a consultar a revista. Não por acaso, os artigos de revisão, que atualizam a literatura internacional sobre certos assuntos, são os mais populares. A Química Nova tem uma particularidade que também explica a procura: é a única grande revista nacional de química cujos artigos são escritos em português. “Mas se trata de uma revista acadêmica, que dificilmente vai inspirar interesse de público leigo”, diz Susana.

Números temáticos costumam ser mais consultados do que uma edição comum, pois têm repercussão mais duradoura. A revista São Paulo em Perspectiva, da Fundação Seade, ocupa o 19º lugar no ranking das mais acessadas, com mais de 930 mil consultas desde 1997. Mas exibe um desempenho mais impressionante em outro ranking, o dos fascículos de cada publicação mais procurados. A revista é uma publicação temática. Cada número reúne artigos de profundidade de um determinado assunto. “As edições não perdem a atualidade. Só publicamos artigos estruturantes, sem análises conjunturais”, diz Aurílio Sérgio Caiado, editor da publicação. O fascículo mais visitado da base SciELO, com quase 150 mil acessos, é a edição de junho de 2000 da revista da Fundação Seade. Trata-se da coletânea Educação: cultura e sociedade.

No estudo que a Bireme fará sobre os acessos à SciELO, será avaliado se o crescimento recente do número de acessos por meio da internet fez as revistas serem mais citadas em outras publicações científicas. Ainda não há indícios de que isso esteja acontecendo de forma sustentável. “Mas há relatos de casos de publicações que melhoraram seu fator de impacto depois de disponibilizarem seu conteúdo gratuitamente na internet”, afirma Rogério Meneghini, professor aposentado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo e coordenador científico da SciELO.

Republicar