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Física

Esculturas móveis

Simulações de computador explicam como nascem e evoluem as dunas gigantes de Marte

NASANem sempre congeladas: parte das dunas marcianas pode ter surgido nos últimos milêniosNASA

Mais do que simples montes de areia, as dunas são esculturas talhadas pelo vento que preservam em suas curvas a história do clima de um planeta. No caso de Marte, um dos vizinhos da Terra no sistema solar que mais tem atraído a atenção dos pesquisadores nos últimos anos, as dunas revelam um passado com tempestades de vento fortes e rápidas, que se repetem em intervalos de cerca de cinco anos. Analisando as características da atmosfera e do solo do planeta vermelho e comparando-as com o que conhecem sobre as dunas terrestres, o físico pernambucano Eric Parteli e o alemão Hans Herrmann conseguiram reproduzir em computador as formas das dunas marcianas. Em um trabalho a ser publicado na Physical Review Letters, eles dão os primeiros passos para explicar como se formam e evoluem as dunas de Marte, contribuindo para desfazer um mistério que há quase três décadas intriga físicos e astrônomos: saber se elas estão de fato congeladas ou se movem.

Até meados da década de 1990, físicos e astrônomos achavam improvável que a atmosfera atual do planeta vermelho, cem vezes mais rarefeita que a da Terra, permitisse o surgimento dos vastos campos de dunas marcianos, que estão entre os maiores do sistema solar. Se fosse verdade, as dunas de Marte seriam relíquias de bilhões de anos atrás, quando a atmosfera do planeta era mais densa e os freqüentes impactos de meteoros ainda não haviam expulsado seus gases para o espaço. Só recentemente essa idéia começou a ser revista com as imagens mais nítidas e de maior resolução obtidas pela missão Mars Global Surveyor, da agência espacial norte-americana (Nasa), que entre 1997 e 2006 monitorou continuamente a atmosfera e a superfície marcianas.

Passado e presente
As novas imagens – algumas delas revelando formas de dunas não encontradas na Terra – chamaram a atenção de Herrmann, professor da Universidade Federal do Ceará e da Escola Politécnica de Zurique, na Suíça. Especialista na física de dunas terrestres, o físico alemão resolveu testar em Marte o modelo matemático que desenvolve desde 2000 e já havia reproduzido com boa precisão a maneira como surgem e se movem as dunas do deserto do Marrocos e de Jericoacoara, no litoral cearense. Com esse modelo, na realidade um programa de computador, Herrmann queria descobrir se seria possível as dunas marcianas surgirem sob as condições atmosféricas atuais.

Em 2004 Herrmann e Parteli, então seu aluno de doutorado, começaram a analisar os dados da Mars Global Surveyor em busca de informações que permitissem simular o ambiente de Marte. Conseguiram descobrir a densidade do ar e o tamanho dos grãos de areia, mas faltava saber a força da interação do vento com esses grãos. Como não dispunha desse dado, a dupla de físicos simulou essa interação com a mesma magnitude que ela ocorre na Terra, mas nada apareceu na tela do computador. Só quando eles aumentaram dez vezes a intensidade da interação nasceram as dunas virtuais. “A partir desse resultado, começamos a procurar uma explicação para o palpite bem-sucedido”, diz Parteli, atualmente pesquisador visitante da Universidade de Stuttgart, na Alemanha.

NASACampos de Marte: dunas em forma de lua crescente foram esculpidas por ventos vindos de uma só direçãoNASA

Usando as equações do modelo, Parteli e Herrmann conseguiram calcular como os grãos de areia são lançados ao ar pela ação do vento em Marte. E constataram que os ventos marcianos parecem ser mais eficientes que os terrestres. Uma ventania na Terra levanta os grãos de areia a poucos centímetros do chão e os carrega por uns 10 metros, enquanto em Marte ventos com a mesma intensidade são capazes de erguer os grãos a quase 1 metro de altura e levá-los dezenas de vezes mais longe, por causa do ar mais rarefeito e da baixa gravidade. Sob as condições marcianas, todo o efeito é multiplicado por dez. Os grãos viajam dez vezes mais rápido e, ao caírem, ejetam dez vezes mais grãos do solo, formando véus de areia rente ao chão como os que costumam castigar os pés e os tornozelos de quem visita as dunas do Nordeste brasileiro.

Essas informações, porém, não garantiam que as condições atmosféricas recentes do planeta vermelho teriam permitido o surgimento de dunas nos últimos milhares de anos. Ainda era preciso descobrir com que velocidade os ventos sopram por lá. Parteli e o físico cubano Orencio Durán, também da Universidade de Stuttgart, demonstraram em um artigo publicado em janeiro deste ano na Physical Review E que a velocidade do vento fica gravada no formato das próprias dunas, determinando o tamanho mínimo que as dunas em forma de lua crescente – as chamadas barcanas – podem alcançar.

Comuns tanto na Terra como em Marte, as barcanas se formam onde o vento sopra sempre na mesma direção e há relativamente pouca areia. Analisando imagens de barcanas de duas regiões vizinhas ao pólo norte marciano e as da cratera Arkhangelsky, no hemisfério sul, Durán e Parteli constataram que esses três grupos de dunas foram esculpidos por ventos de aproximadamente 125 quilômetros por hora. Ao inserir esses dados no programa de computador, Herrmann e Parteli viram se formar barcanas dez vezes mais altas que as encontradas na Terra, sinal de que Marte abriga as dunas gigantes. Era o indício que faltava de que realmente as dunas marcianas podem ter se erguido nos últimos milhares de anos.

Ventos raros
Mas como teriam se formado recentemente se parecem congeladas? Parteli pode ter encontrado a resposta quando analisou a freqüência com que ventos tão fortes sopram em Marte: possivelmente uma vez a cada cinco anos e durante apenas meio minuto. Com essa freqüência, uma barcana com 200 metros de extensão levaria 4 mil anos para se deslocar apenas 1 metro, uma velocidade de deslocamento extremamente baixa em comparação com a das dunas terrestres, que podem se mover de 5 a 20 metros ao ano.

As imagens da Mars Global Surveyor parecem confirmar essa previsão. O geólogo Kenneth Edgett, da empresa norte-americana Malin Space Science Systems, analisou uma a uma as imagens registradas por essa sonda espacial e concluiu que apenas pequenos trechos de areia devem se mover atualmente em Marte. “Há boa evidência de que nem todas as dunas estão endurecidas”, afirma Mary Bourke, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, que recentemente constatou que pequenas dunas no pólo norte encolheram e desapareceram em menos de dois anos. A maior parte das dunas, no entando, estão mesmo congeladas como aquelas que Mary descobriu em 2005 no interior da cratera Kaiser.

Depois de reproduzir as barcanas marcianas, Herrmann e Parteli tentaram modelar outros tipos de dunas, semelhantes às que se formam na Terra quando o vento vem de duas direções diferentes, que se alternam ciclicamente. Com ventos de 125 quilômetros por hora, eles conseguiram reproduzir outras três formas de dunas marcianas. Com base nessas simulações, os físicos calcularam que em Marte os ventos fortes que originam as dunas devem mudar de direção somente uma vez em algumas dezenas de milhares de anos. Esse longo intervalo sugere que a mudança na direção dos ventos esteja associada ao movimento de precessão do planeta, que oscila como um pião durante o percurso de 51 mil anos ao redor do Sol – ora expondo mais o hemisfério norte, ora o hemisfério sul, ao calor.

O modelo matemático que Herrmann e Parteli desenvolveram a partir do estudo das dunas terrestres pode também ajudar a entender a atmosfera e algumas características da superfície de outros astros do sistema solar, como o planeta Vênus ou Titã, a maior lua de Saturno. “Podemos ajustar esse modelo para esses corpos”, diz Parteli. Mas talvez não seja muito simples. “A atmosfera de Vênus e de Titã é mais densa que a terrestre”, comenta o físico pernambucano, “e ainda não se compreende muito bem como ocorre o transporte dos grãos nessas circunstâncias”.

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