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Biotecnologia

Dueto poderoso

Enzima de mosca produzida em levedura combate bactérias danosas à fabricação de álcool combustível

LUCIANO JOSÉ SILVEIRALinhagem recombinante de levedura produtora de lisozimaLUCIANO JOSÉ SILVEIRA

Uma pequena proteína encontrada na saliva e na lágrima, chamada lisozima, mostrou em laboratório ser capaz de aumentar a eficiência do processo de produção de etanol com considerável economia para as usinas, que já manifestaram interesse pela novidade biotecnológica. Para obter esses resultados, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) produziram uma linhagem da levedura Saccharomyces cerevisiae, microorganismo responsável pela transformação do açúcar em álcool combustível, capaz de fabricar essa proteína. Com isso, a levedura ganha a capacidade de combater as bactérias que contaminam as dornas onde é realizada a fermentação do caldo de cana-de-açúcar, também chamado de mosto. “O mosto constitui um ótimo substrato para o crescimento não só da levedura, mas de vários outros microorganismos porque possui altos teores de nutrientes, além de apresentar pH e temperatura favoráveis”, diz a professora Ana Clara Guerrini Schenberg, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), coordenadora da pesquisa. Além de competir pela sacarose e outros nutrientes do mosto, as bactérias introduzem no processo produtos de metabolismo indesejáveis, principalmente ácidos orgânicos.

As  usinas normalmente adicionam antibióticos ao mosto para combater a contaminação bacteriana. Com o passar do tempo, no entanto, novos antibióticos ou combinações de medicamentos são necessários para dar conta de cepas de bactérias resistentes. Estima-se que, para cada metro cúbico de etanol produzido, são gastos de US$ 3,00 a US$ 5,00, em média, com antibióticos nas usinas. “Além do problema econômico, há o aspecto de poluição ambiental, porque tudo acaba indo para a natureza, na forma de efluentes que vão para os rios”, diz Ana Clara, especialista em genética molecular de microorganismos, que coordena em seu laboratório, no Departamento de Microbiologia, vários trabalhos com leveduras e bactérias.

Substância antibacteriana
A busca de um método alternativo ao antibiótico para controle dos microorganismos presentes na fermentação do etanol foi objeto dos trabalhos de pós-graduação de Elza Grael Marasca e Luciano José Silveira sob orientação de Ana Clara. “Pensamos que, se a própria levedura contivesse um gene codificando uma substância antibacteriana, ela mesma resolveria o problema sem precisar adicionar antibiótico ao mosto”, relata a coordenadora da pesquisa, filha do renomado físico teórico brasileiro Mário Schenberg (1916-1990). Foi escolhida para essa função a lisozima, uma enzima que não é exatamente um antibiótico, mas é altamente poderosa contra bactérias, porque degrada suas paredes celulares. “É uma proteína muito interessante, que é produzida por praticamente todos os seres vivos, mas não pela levedura”, conta. Em alguns processos industriais, como conservação de alimentos, produção de vinho e medicamentos, é utilizada uma lisozima comercial, importada, extraída da clara do ovo, num processo criado há cerca de 40 anos.

Antes de modificar a informação genética da levedura, os pesquisadores começaram a procurar na literatura se havia sido descrita alguma lisozima que suportasse a acidificação do final da fermentação alcoólica. Nessa mesma época, em 1996, a professora Sirlei Daffre, pesquisadora do Departamento de Parasitologia, que fica no mesmo prédio do Departamento de Microbiologia, tinha acabado de chegar da Suécia, onde havia desenvolvido um trabalho sobre lisozimas da mosca Drosophila melanogaster. “Por atuar no trato digestivo da mosca, essa lisozima apresenta ótimo funcionamento em pH ácido, semelhante ao encontrado no processo de fermentação alcoólica”, relata Ana Clara. O objeto de estudo de Sirlei eram os insetos e como eles se defendem das infecções, pesquisa que acabou contribuindo para a elaboração de um processo tecnológico. “Ela havia clonado o cDNA da lisozima, a parte do gene que interessa e é transformada em mensageiro dentro das células”, conta Ana Clara.

A cessão do gene clonado ajudou a encurtar o caminho, mas ainda havia muito trabalho pela frente. O passo seguinte era encontrar um promotor que fizesse o gene se expressar na levedura, num processo chamado de técnica de DNA recombinante, e garantir que a lisozima fosse secretada para o meio de cultivo. Coube a Elza Marasca colocar o cDNA da drosófila sob o controle do promotor da álcool-desidrogenase 1, uma enzima da própria levedura utilizada durante o processo de fermentação. Tudo se encaixou perfeitamente. “Tanto o promotor como a levedura funcionam em perfeita sincronia durante o processo de fermentação, enquanto ocorre a produção de lisozima”, diz Ana Clara.

Fermentação alcoólica
Feito isso, era necessário verificar se o uso da linhagem de levedura recombinante produtora de lisozima em processos de fermentação alcoólica contribuiria para reduzir o uso de antibióticos. Sabe-se que a maioria dos microorganismos presentes nas dornas são sensíveis à ação da lisozima, que age preferencialmente na parede de bactérias Gram-positivas, como, por exemplo,  Bacillus coagulans e Lactobacillus fermentum. “Como nas usinas de álcool do estado de São Paulo 98,5% dos contaminantes são bactérias Gram-positivas, em tese é uma ótima escolha”, diz Gabriela Ribeiro dos Santos, pós-doutoranda que participa do projeto. “Agora temos que fazer um estudo mimetizando as condições encontradas na usina para avaliar, na prática, o efeito da levedura modificada.” Para isso será necessário ajustar a quantidade de enzima secretada com a quantidade de contaminantes existentes no processo industrial.

LUCIANO JOSÉ SILVEIRAEnzima alfa-amilase secretada pela levedura degrada amido (em azul) e forma um halo claroLUCIANO JOSÉ SILVEIRA

Ação confirmada
O primeiro passo nesse sentido foi dado. Um dos estudos feitos recentemente pelo grupo de pesquisa consistiu em inocular a linhagem original da levedura e a linhagem que produz lisozima, para efeito de comparação, em mosto não-estéril, como é utilizado na usina, mas realizado no próprio laboratório da USP. Um aspecto interessante nesse trabalho, que representa um avanço para chegar ao processo industrial e resultou em uma patente, sob a gerência da Agência USP de Inovação, é que a informação genética da lisozima foi estabilizada por meio da sua integração num dos cromossomos de uma linhagem de levedura industrial utilizada pelas usinas. “Vimos uma diferença muito significativa entre a quantidade de contaminantes nas condições originais com e sem lisozima”, relata Gabriela. Isso significa que a ação da levedura recombinante sobre as bactérias foi confirmada nos testes, mas mesmo assim os pesquisadores querem aumentar a produção da enzima para que ela responda satisfatoriamente às condições enfrentadas em escala industrial.

A levedura modificada tem apenas uma cópia do gene da lisozima integrada ao seu cromossomo. “Agora está sendo desenhada uma estratégia para amplificar o número de cópias do gene inserido na levedura”, diz Ana Clara. “Como são conhecidos alguns sítios cromossômicos da levedura Saccharomyces cerevisiae que se prestam a inserções de genes estrangeiros sem atrapalhar a vida da linhagem, podemos aumentar a capacidade de produção de lisozima sem interferir na eficiência da produção de etanol.”

Todas essas modificações estão sendo pensadas em função do interesse de empresários do setor sucroalcooleiro na levedura modificada geneticamente. Para que esse interesse seja concretizado, a primeira etapa já foi cumprida. Os pesquisadores submeteram a levedura modificada à prova de conceito, ou seja, vários testes foram realizados para comprovar que ela funciona não só nas condições de laboratório, mas também tem potencial para ser empregada no processo industrial. “Concluímos essa prova de conceito e passamos em todos os pré-requisitos”, relata Gabriela. Os empresários agora querem saber se futuramente haverá problemas com a liberação do uso de organismos geneticamente modificados (OGMs) para a produção de etanol. “Vamos encaminhar uma consulta sobre o assunto para a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para poder dar uma resposta”, diz Ana Clara.

Os estudos para produção de etanol coordenados pela pesquisadora tiveram início durante os anos de implementação do Proálcool, o programa brasileiro criado no final de 1975. A idéia era produzir álcool combustível a partir do amido presente na mandioca, e não de açúcares simples, como a sacarose e a glicose encontradas no caldo de cana. Ocorre que a levedura Saccharomyces cerevisiae, cujo nome deriva de Sacaro, açúcar, e myces, fungo, consegue metabolizar a glicose e a sacarose, mas não o amido, que é uma molécula complexa com várias unidades de glicose dispostas em cadeias lineares e ramificadas. Isso significa que em todos os processos envolvendo substratos amiláceos, como cevada, arroz, mandioca ou milho, para produzir etanol, há necessidade de fazer um tratamento enzimático prévio.

Para abreviar a etapa de tratamento prévio do substrato e diminuir os custos do processo de fermentação de amiláceos, o grupo de pesquisa deu início a um programa de melhoramento genético da levedura S. cerevisiae há quase 25 anos. “Foram feitos vários trabalhos para dotar a linhagem da levedura com a capacidade de degradar o amido e processar o açúcar da mandioca na fase de fermentação para transformá-lo em álcool”, relata Gabriela, que se dedicou ao assunto em sua dissertação de mestrado. Como o amido é uma molécula ramificada, ele precisa de um complexo de enzimas amilolíticas para ser totalmente degradado.

Molécula complexa
A primeira conquista feita pelo grupo, publicada na revista Nature Biotechnology em 1986, foi conseguir que a levedura produzisse e secretasse para o meio de cultivo um gene que codifica a alfa-amilase fabricada no pâncreas de camundongo. A alfa-amilase age sobre as cadeias lineares do amido, quebrando essa complexa molécula em moléculas menores, formadas de duas ou mais unidades de glicose, de forma que a levedura ainda desperdiça boa parte do açúcar contido no amido. Num próximo passo do melhoramento, Gabriela colocou o gene de mais uma enzima na levedura, o da glicoamilase de uma outra espécie de levedura. A glicoamilase ajuda a alfa-amilase a degradar o amido e levá-lo até a molécula de glicose. “Uma ajuda a outra nesse processo, mas o aproveitamento ainda não foi de 100%”, diz Gabriela. “Na verdade, experimentos em escala piloto, realizados no Departamento de Engenharia Química da USP, mostraram que o fator limitante da eficiência de fermentação era justamente a atividade de glicoamilase”, completa.

Novas construções então se sucederam para que a levedura pudesse expressar glicoamilases mais potentes e, acima de tudo, de forma estável e numa levedura industrial. Hoje o laboratório possui algumas linhagens industriais recombinantes, das quais se destaca uma que apresenta o gene da glicoamilase em cinco cópias. As novas linhagens deverão ainda ser avaliadas em escala piloto, empregando o amido da mandioca, uma matéria-prima barata e abundante no Brasil, como fonte alternativa ao açúcar proveniente da cana.

Microorganismos programados para remover metais
Bactérias e leveduras capazes de remover metais pesados dos efluentes resultantes da mineração estão sendo produzidas, com ferramentas da engenharia genética, pelo grupo de pesquisa coordenado pela professora Ana Clara Guerrini Schenberg. O projeto foi encomendado há dois anos e meio pela Companhia Vale do Rio Doce, líder mundial no mercado de minério de ferro e segunda maior produtora global de manganês e ferroligas. “O importante é encontrar um microorganismo adequado para executar determinada função”, diz Ana Clara. “Quando eles não funcionam exatamente como queremos, podemos melhorar as características desses microorganismos.” Como a biorremediação de metais é uma área nova, o projeto está dividido em vários subprojetos.
Um dos participantes, Ronaldo Biondo, está construindo uma bactéria que consegue se ligar aos metais pesados para facilitar a tarefa de removê-los dos efluentes de mineração. Ao mesmo tempo, a pesquisadora Gabriela Ribeiro dos Santos está construindo um sistema suicida para essas bactérias para, quando a tarefa for cumprida, elas não causarem riscos a outros organismos presentes na natureza. “Estou trabalhando no desenvolvimento de um sistema genético que provoque a morte da bactéria, mas que, como uma bomba-relógio, só entre em ação depois de cumprida a etapa de biorremediação pelo microorganismo”, diz Gabriela.
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