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Farmacologia

Vôos de fênix

Fragmento de proteína ligado ao controle da pressão arterial pode ajudar a emagrecer e a tratar dependência química

EDUARDO CESAR Placa de dosagem de proteína: azul mais intenso indica maior concentração de proteína em que os anticorpos vão se ligarEDUARDO CESAR

Emer Ferro tentou esquecer a hemopressina, mas não conseguiu. Quando a descobriu com a bióloga Vanessa Rioli em 2003, em um dos laboratórios do quarto andar do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), pensou que era apenas mais uma molécula capaz de reduzir a pressão arterial. Ele então mediu as próprias forças, concluiu que para continuar teria de entrar em uma luta desgastante que o levaria no máximo a mais um entre dezenas de outros medicamentos anti-hipertensivos e deixou essa pesquisa de lado. Como uma fênix, essa molécula ganhou vida novamente quando duas biólogas do Instituto Butantan, Camila Dale e Rosana Pagano, insistiram para estudar as propriedades biológicas da hemopressina e mostraram que ela também servia para aplacar a dor em ratos. Nesse momento esse fragmento de proteína ganhou outra dimensão e reacendeu o interesse de Emer, que ainda não imaginava que essa molécula poderia fazer muito mais – nem que ele próprio, meses depois, ajudaria a encontrar um novo método capaz de acelerar o desenvolvimento de novos fármacos.

No final de julho de 2006, como parte de sua agenda de trabalho na Faculdade de Medicina Albert Einstein da Universidade Yeshiva, em Nova York, Emer reexaminou os resultados dos experimentos feitos com a hemopressina até então. Foi quando suspeitou que, para explicar esses efeitos sobre pressão arterial e dor, a molécula deveria agir sobre proteínas específicas da superfície celular – os receptores de canabinóides chamados CB1, acionados por compostos produzidos pelo próprio organismo ou por componentes de plantas entorpecentes como a maconha. Intrigado, atravessou Nova York e pediu ajuda a uma colega brasileira, Andrea Heimann, que estava lá pesquisando na Escola de Medicina Monte Sinai, a poucas quadras do Central Park. Como havia terminado seu trabalho antes do prazo e tinha material à mão, Andrea fez em apenas três dias os experimentos em células que tornaram a hemopressina um notável candidato a medicamento: por causa desse mecanismo de ação sobre os receptores CB1, então confirmado, poderia também ajudar as pessoas a emagrecer, a tratar o diabetes tipo 2, a reduzir a dependência de drogas e a aplacar a necessidade de fumar.

Tamanha versatilidade se deve ao fato de a hemopressina realmente bloquear os receptores de canabinóides, que regulam a fome, o bom humor e o prazer. É o mesmo efeito do rimonabanto, um fármaco já aprovado para uso contra obesidade e sobrepeso na Europa e no Brasil, mas ainda em fase de análise pelas autoridades regulatórias do governo dos Estados Unidos. O rimonabanto tem avançado lentamente nos Estados Unidos por causa dos efeitos colaterais, como o risco de depressões severas e de suicídio. De acordo com um estudo publicado em novembro na Lancet, pesquisadores dinamarqueses acompanharam 4.105 pessoas durante um ano e concluíram que esse medicamento pode causar depressão mesmo em quem nunca teve.

EDUARDO CESAR Fábricas vivas: um dos coelhos usados para produção de anticorposEDUARDO CESAR

Bom começo
Segundo Emer, a hemopressina pode passar ao largo dessas limitações por ser um peptídeo (fragmento de proteína) produzido pelo próprio organismo possivelmente a partir da reciclagem da hemoglobina, a molécula que transporta oxigênio às células do corpo. Os experimentos preliminares em animais não mostraram nenhuma toxicidade relevante nem efeito colateral aparente, além de indicarem que a hemopressina pode funcionar também por via oral, como Camila Dale e Rosana Pagano verificaram nos experimentos feitos no Butantan.

“A hemopressina começa a se tornar uma molécula interessante”, reconhece Emer. “Esse é o primeiro peptídeo natural que funciona como agonista inverso de CB1.” O que ele está dizendo, em termos mais simples, é que a hemopressina reduz a ação das formas ativas de um dos tipos de receptores de canabinóides. Essa molécula cumpre assim uma tarefa antes desempenhada apenas pelos hormônios e neurotransmissores que participam do controle da fome e do prazer. Foi uma descoberta com peso o suficiente para ser aceita para publicação na revista científica PNAS, editada pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.

Há outra razão pela qual esse fragmento de proteína, de apenas nove aminoácidos, dificilmente alcançará em pouco tempo o mesmo estágio de desenvolvimento do rimonabanto, que age sobre as mesmas proteínas de superfície das células do cérebro, do tecido adiposo, do fígado e dos músculos. Segundo Andrea, a produção em escala industrial de peptídeos como a hemopressina tende a ser mais cara e mais refinada que a de compostos químicos sintéticos como o rimonabanto. Ela e Emer acreditam que o melhor caminho para avançar é desenvolver compostos sintéticos que tenham a mesma função que o fragmento ativo da hemopressina, formado por quatro dos nove aminoácidos dessa molécula; é o mesmo caminho adotado no desenvolvimento de muitos outros fármacos. “Temos agora de trabalhar com químicos que possam encontrar uma versão sintética da hemopressina”, reconhece Andrea.

Não será a primeira vez que ela desafia a sorte. Quatro anos atrás, prestes a terminar o doutorado, Andrea ouviu uma bronca da mãe ao comunicar que deixaria não só o laboratório de 1.200 metros quadrados no décimo andar do Instituto do Coração, ao lado da avenida Paulista, mas também a perspectiva de batalhar por uma carreira acadêmica, em razão, primordialmente, da escassez de vagas para novos pesquisadores. Já alguns colegas até a chamaram de insensata quando souberam que ela havia se tornado a sócia principal da Proteimax, uma pequena empresa de biotecnologia instalada nos fundos de uma casa de um condomínio residencial em Cotia, na Grande São Paulo.

Andrea agora dá o troco ao mostrar que produz ciência de qualidade e domina uma técnica que pode facilitar bastante a seleção de compostos de interesse farmacológico por meio de anticorpos produzidos por dez coelhos brancos, malhados e marrons. Esses anticorpos têm a forma de um Y, como qualquer outro anticorpo que o organismo produz para combater tumores, vírus ou bactérias. São peculiares, porém, por se ligarem aos receptores de superfície celular preferencialmente quando são acionados por hormônios como a adrenalina, por neurotransmissores como a serotonina, por peptídeos como a hemopressina e, na retina, pela própria luz. Uma vez ativados, esses receptores assumem outra forma e acionam a chamada proteína G. É uma proteína estratégica para as informações fluírem pelo organismo, porque ela amplia os sinais recebidos do exterior para o interior das células. Os anticorpos ajudam a mapear essas conexões e a selecionar os compostos que devem ou não despertar a proteína G.

Andrea, claro, começou devagar, com muitas dúvidas, medos e apenas sete anticorpos, cada um deles capaz de se ligar a moléculas específicas. Quase não tinha equipamentos nem reagentes quando reencontrou uma farmacologista de origem indiana, Lakshmi Devi, que estuda a proteína G e os mecanismos bioquímicos de dependência de drogas. Três anos depois de terem se conhecido, quando veio ao Brasil para um congresso de farmacologia, Lakshmi lhe abriu as portas de seu laboratório, na Escola de Medicina Monte Sinai, em Nova York. Era lá que Andrea trabalhava, verificando se os sete primeiros anticorpos faziam exatamente o que ela queria, enquanto Emer reexaminava os experimentos com a hemopressina na Universidade Yeshiva, onde estava a convite do farmacologista Lloyd Fricker.

EDUARDO CESAR À mão: anticorpos para os receptores CB1EDUARDO CESAR

Exportações
Em 2007 Andrea e Lakshmi apresentaram os anticorpos de conformação específica como uma nova ferramenta para identificar os compostos capazes de acionar a proteína G em um artigo publicado no Journal of Biological Chemistry. Esse trabalho chamou a atenção de Michael Melnick, biólogo da Universidade de Stanford com doutorado em Harvard que havia fundado e dirigido a Cell Signaling Technology, uma empresa pioneira no desenvolvimento de anticorpos para a pesquisa de câncer. “Acredito que os anticorpos da Proteimax serão extremamente úteis na pesquisa básica e em muitas doenças em que os receptores da proteína G estão envolvidos”, comenta Melnick, que mostrou interesse em se associar de algum modo à empresa brasileira. Quase metade dos medicamentos atualmente em uso aciona receptores de superfície acoplados à proteína G.

O trabalho publicado no Journal of Biological Chemistry trouxe também os primeiros pedidos de exportação e facilitou um acordo com a Assay Designs Inc. (ADI), dos Estados Unidos, para distribuição dos anticorpos produzidos e purificados na Proteimax. De lá para cá, devidamente equipada, Andrea pode verificar em Cotia a eficiência de compostos por meio de anticorpos específicos – em membranas de neurônio – nos mesmos três dias que os testes da hemopressina lhe tomaram em Nova York.

Dos sete iniciais, hoje são 35 anticorpos, mas a equipe da Proteimax, formada pela própria diretora e pelas biólogas Laura Leticia de Souza e Bianca Alves Pauletti, confia que poderá chegar a 50 em mais seis meses de trabalho. Elas criaram o que Emer chama de plataforma de análise molecular, que poderia reduzir em anos o trabalho de seleção de compostos químicos com potencial uso terapêutico.

De cada experimento, Fricker, que trabalhou dois meses no laboratório de Emer como pesquisador visitante, obtém centenas de novos peptídeos que poderiam ser mais estudados. O problema é escolher quais merecem ser realmente mais bem avaliados.

“Precisávamos de um método de seleção rápida e compatível com análises em larga escala”, comenta Emer. Antes ele empregava outro método de trabalho, fundamentado na expressão de genes luminescentes derivados do vaga-lume. Essa abordagem mostrava se o peptídeo era biologicamente ativo, mas não identificava a que receptor se ligava. Já se valendo da seleção com os anticorpos de conformação específica, enquanto planeja testes mais rigorosos de toxicidade e ação da hemopressina, Emer identificou 14 novos peptídeos que se ligam a um ou outro receptor de canabinóides (CB1 ou CB2) e às vezes aos dois e também às enzimas que regulam a pressão arterial. Ainda é uma possibilidade muito distante, mas nada nos impede de imaginar um só composto que possa nascer daí e controlar a pressão arterial, a vontade de fumar e a fome ao mesmo tempo.

Projeto
1.
Biologia molecular celular de oligopeptidases (nº 04/04933-2); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Emer Ferro – ICB/USP;
Investimento US$ 271.000.00 e R$ 270.000,00 (FAPESP)
2. Anticorpos de conformação específica (nº 04/14258-0); Modalidade Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe); Coordenadora Andrea Heimann – Proteimax; Investimento US$ 147.158.16 e R$ 113.720,10 (FAPESP)

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