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Ambiente

As poderosas águas dos rios

Turbinadas pelo aquecimento global, variações no regime de chuvas na bacia do Prata podem tumultuar a circulação marinha no Sul e Sudeste

ESTAÇÃO ESPACIAL INTERNACIONAL Março de 2004: o furacão Catarina aproxima-se do sul do BrasilESTAÇÃO ESPACIAL INTERNACIONAL

Não é exagero imaginar que as chuvas que caem todo verão sobre a cidade de São Paulo escoem pelo rio Tietê, ganhem o rio Paraná e depois o rio da Prata até entrar em volumes monumentais no Atlântico Sul. Essa grandiosa massa aquática pode provocar mudanças intensas na circulação e nas características físicas e químicas das águas da plataforma continental, a ponto de interferir na produtividade pesqueira e no clima das regiões próximas ao litoral. Por ter baixa salinidade e ser mais leve que as águas marinhas, a água do Prata permanece nas camadas superficiais formando uma pluma de baixa salinidade – uma faixa de água doce em meio ao mar, com largura de 50 a 150 quilômetros (km) e extensão de até 1.500 km, que se estende da foz do Prata até as imediações de Cabo Frio, no sudeste brasileiro.

Oceanógrafos brasileiros, uruguaios, argentinos, chilenos e norte-americanos reunidos em um consórcio internacional de pesquisa conhecido como SACC (The South Atlantic Climate Change Consortium) trabalham há mais de dez anos para entender essa relação entre ar, terra e água na região do Atlântico Sul sob influência da pluma de baixa salinidade formada pelo deságüe do rio da Prata. A conclusão a que chegaram é que a bacia do Prata funciona, ainda que em uma proporção cinco vezes menor, como o rio Amazonas, que despeja no Atlântico um volume de água equivalente à baía de Guanabara a cada segundo. No oceano, sob ação dos ventos e do movimento de rotação da Terra, essa massa de água flui para o norte ao longo da plataforma continental por longas distâncias até se misturar completamente com as águas oceânicas. A interação entre as águas do continente e as do mar tem conseqüências ainda pouco conhecidas no processo de mudanças climáticas, mas os estudos já realizados, com base em modelos matemáticos, sugerem fortemente a possibilidade de alterações no regime de chuvas, chovendo mais em alguns lugares e menos em outros, em todo o Brasil – da Amazônia aos pampas.

Efeito ampliado
Confrontando imagens de satélite com os dados obtidos em cruzeiros oceanográficos e por meio de modelagem numérica, os pesquisadores concluíram que dois fatores contribuem de modo decisivo para a descarga do rio da Prata aumentar e desestruturar a circulação marinha logo à frente: o volume da precipitação na bacia hidrológica drenada pelos rios Paraná e Paraguai e o regime de ventos no Atlântico Sul. O tumulto marinho provocado pelas águas que saem do Prata é muito maior do que o imaginado, tanto em termos de complexidade quanto em relação à área geográfica que ele atinge, e interfere em duas engrenagens – ambas climáticas – no Atlântico Sul. “Toda vez que ocorre um El Niño intenso a quantidade de água que chega ao rio da Prata pode dobrar porque chove mais sobre a parte central da América do Sul”, explica Edmo Campos, pesquisador do Instituto Oceanográfico que coordena esse consórcio de pesquisa desde sua fundação, em 1996. “Se isso for aliado a um regime também atípico de ventos, soprando de sudoeste, toda água doce é empurrada em direção ao litoral do Brasil”.

Algumas vezes a pluma de água doce do Prata provoca fenômenos que demoram para ser explicados. Campos conta que nos anos 1970 outro professor do Oceanográfico, Yasunobu Matsura, já falecido, detectou uma mancha de água de baixa salinidade em Santos, litoral paulista. “Ele não sabia o que era, mas sugeriu que o desaparecimento dos cardumes de sardinha que ocorreu naquele tempo provavelmente estava relacionado com aquela massa de água de origem desconhecida”.

Não seria a massa de água doce vinda do Prata, empurrada para o norte pelos ventos? Campos acredita que sim. Segundo ele, a pluma de água de baixa salinidade poderia resultar da combinação de maior descarga do rio da Prata e do vento e interromper o afloramento de uma massa de água rica em nutrientes chamada Acas (água central do Atlântico Sul). Esse corpo de água origina-se no extremo sul da Argentina e segue para o norte descrevendo um giro anti-horário na região subtropical do Atlântico Sul. Essa água normalmente afunda no meio do caminho e depois ressurge nas proximidades de Cabo Frio, trazendo do fundo do mar os nutrientes que mantêm a cadeia alimentar. Mais água doce na superfície, em razão de um El Niño mais intenso, pode impedir o bombeamento dessa água rica em nutrientes para regiões próximas à superfície. Em conseqüência, haverá menos alimento para os peixes que vivem em zonas mais rasas nas proximidades do litoral.

A extensão da pluma do rio da Prata é um fenômeno sazonal – tende a ser maior no inverno que no verão – e pode ter sérias conseqüências para quem vive ao longo do litoral. “Durante o inverno, ao fluir para o norte, essa água originalmente mais fria rouba calor da atmosfera e altera o padrão da circulação atmosférica local. Isso pode alterar o regime de chuvas, com conseqüências indiretas em uma variedade de atividades sociais e econômicas”, diz Campos. Como o fenômeno Enos (El Niño – Oscilação Sul) tende a se intensificar com o aquecimento global, o clima no sul da América do Sul poderá se modificar bastante, com mais chuvas em alguns lugares e secas em outros. Os pesquisadores começam a olhar com mais atenção para os pampas, cujos agricultores podem ser bastante atingidos por essas mudanças no ritmo das chuvas.

Os oceanógrafos querem conhecer melhor os mecanismos do seqüestro de carbono, um dos fenômenos associados ao aquecimento global no Atlântico Sul. O aquecimento global é causado pelo excesso de carbono em circulação na atmosfera. Com mais quantidade desse gás no ar, será que a bomba de seqüestro de carbono representada pelo oceano não estaria ficando meio entupida? Os mares são bons reservatórios de carbono porque trocam gases com o ar: sai oxigênio e entra gás carbônico.

Há indícios de que esse balanço gasoso pode afetar diretamente a produtividade de biomassa do oceano – por exemplo, a produção de fitoplâncton, os organismos arrastados pelas correntes marinhas vistos como os maiores responsáveis pela produção de oxigênio, por meio da fotossíntese. Os pesquisadores identificaram uma interferência direta do maior aquecimento atmosférico no sul da África do Sul, em uma região do Atlântico próxima de onde os navegadores europeus da época das caravelas faziam a volta para seguir rumo às Índias. Na região próxima ao cabo da Boa Esperança, a água que vem do oceano Índico mistura-se com a do Atlântico. A falta de troca de água entre os dois oceanos, como previsto, poderia alterar a temperatura e a salinidade do Atlântico Sul e o regime de chuvas nas regiões continentais da América do Sul e da África.

Se as próximas pesquisas confirmarem também outra conclusão – o deslocamento de uma região que liga o Atlântico Sul e o Norte, chamada Zona de Convergência Intertropical (ITCZ, na sigla em inglês), fundamental para regular o clima no Brasil -, a relação entre o aquecimento da Terra com a Amazônia e o Nordeste brasileiro pode ficar mais complexa. Segundo Campos, a alteração do padrão climático ao redor da América do Sul poderá levar mais chuva para o Nordeste do Brasil enquanto a Amazônia pode se tornar uma floresta menos encorpada e menos úmida.

Nordeste chuvoso?
Essa argumentação provém da análise de um índice que relaciona temperaturas da superfície do mar no Atlântico Tropical chamado modo gradiente do Atlântico, antes conhecido como dipolo. Quando esse índice é positivo, as temperaturas superficiais do Atlântico Tropical Norte costumam ser mais altas que o normal, enquanto as do Atlântico Tropical Sul são mais frias. Se negativo, ocorre o oposto. Campos ressalta que a quantidade de chuvas que cai sobre o Nordeste brasileiro é altamente relacionada com esse índice: chove mais quando o índice dipolo é negativo. Esse grupo acredita que essa relação entre as duas áreas do Atlântico tem uma importância maior que o fenômeno El Niño, que ocorre no oceano Pacífico, na determinação do regime de chuvas no Nordeste do Brasil e de uma região da África conhecida como Sahel, situada entre o deserto do Saara e as terras mais férteis ao sul.

Um conhecimento mais aprofundado sobre esses comportamentos do tempo poderá ajudar a melhorar a previsão climática e a impedir tragédias como a de março de 2004. Foi quando um pequeno ciclone que começou a se formar no Atlântico Sul deixou de ser um fenômeno comum na região, ganhou força por causa da elevada quantidade de calor na superfície do oceano e se tornou um furacão – o Catarina, o primeiro furacão que chegaria até o litoral brasileiro. Sem um sistema eficiente de monitoramento do oceano, os pesquisadores e técnicos não conseguiram prever que a quantidade de calor era mais que suficiente para que o ciclone fosse mais alimentado ainda. Além da destruição material e de pelo menos duas mortes, 3 mil pessoas tiveram de deixar suas casas quando os ventos fortes chegaram. “Um sistema de monitoramento mais detalhado seria fundamental para acompanharmos mais de perto esses fenômenos”, diz Campos. Como os dados do grupo que ele dirige atestam, com o aquecimento global haverá mais calor na superfície do Atlântico Sul e episódios extremos como o furacão Catarina poderão se tornar mais freqüentes e mais intensos nos próximos anos.

O Projeto
Levantamento oceanográfico em larga escala na plataforma continental sudeste da América do Sul (LAPLATA) (nº 04/01950-3); Modalidade Auxílio Individual a Pesquisa; Coordenador Edmo J. D. Campos – IO/USP; Investimento R$ 130.776,43 (FAPESP), US$ 178.000,00 (United States office of Naval Research) e US$ 900.000,00 (Inter-American Institute for Global Change Research)

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