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Biossegurança

Em compasso de espera?

Ministro do STF, em voto histórico, defende pesquisas com células-tronco embrionárias

O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou em março o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (Adin) proposta em 2005 pelo ex-procurador-geral da República Cláudio Fon­teles, que contesta o uso em pesquisa de células-tronco embrionárias. Na Adin, Fonteles argumenta que a Lei de Biossegurança, promulgada há 3 anos, ao autorizar o uso em pesquisa de em­briões em estágio de blastocisto – com até 5 dias de fecundação -, fere o artigo 5º da Constituição Federal que garante o direito à vida.

O ministro relator, Carlos Ayres Brito, e a então presidente do STF, Ellen Gracie, votaram a favor das pesquisas, que, assim, já conta com dois votos dos 11 ministros do tribunal. O julgamento foi, no entanto, interrompido por pedido de vista do ministro Carlos Alberto Direito. “A matéria é extremamente controvertida, de alta complexidade. É preciso fazer uma reflexão mais profunda para que possam ser sopesados todos os argumentos”, justificou Direito. Pelo regimento do STF, quem pede vista tem prazo de 10 dias, prorrogáveis duas vezes por igual período, para devolver o processo, que poderá ter que enfrentar fila antes de ser concluída a votação.

Quando começa a vida?
A contestação do ex-procurador-geral da República suscitou a primeira au­diência pública da história do STF, que, em maio do ano passado, convidou 22 cientistas para responder à pergunta que está no cerne do questionamento de Fonteles ao tribunal: quando começa a vida? A audiência, de caráter “instrutório”, teve como objetivo subsidiar o voto que o ministro relator apresentou, em março, aos demais membros da Corte, proferido a partir de um documento com 74 páginas.

O ministro Celso de Mello considerou a Adin a causa mais importante já julgada pelo STF e o ministro Ayres Brito suspeita que é a primeira vez que um tribunal constitucional enfrenta o questionamento do uso científico-terapêutico de células-tronco embrionárias, o que confere à decisão um caráter de “interesse de toda a humanidade”.

Em seu voto, Ayres Brito sublinhou, desde logo, que a Constituição brasileira guarda “um silêncio de morte” sobre quando começa a vida humana. “Quando fala da ‘dignidade da pessoa humana’, é da pessoa humana naquele sentido ao mesmo tempo notarial, biográfico, moral e espiritual. E quando se reporta aos ‘direitos da pessoa humana’… está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Gente. Alguém. De nacionalidade brasileira ou então estrangeira, mas sempre um ser humano já nascido e que se faz destinatário dos direitos fundamentais à vida”. Para o ministro, a questão está em saber que “aspectos ou momentos” dessa vida estão efetivamente protegidos pelo direito infraconstitucional, e “em que medida”.

Reporta-se ao Código Civil, que protege, desde a concepção, os direitos do nascituro – definido como “ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno” -, à proibição do aborto e à legislação que autoriza o aborto terapêutico – nos casos em que a gravidez, por exemplo, resulta de estupro – para demonstrar que, do ponto de vista da lei, o bem jurídico a ser tutelado está sempre no interior do corpo feminino. “Não em placa de Petri, cilindro metálico ou qualquer outro recipiente mecânico de embriões que não precisaram de intercurso sexual para eclodir”, enfatizou Ayres Brito.

Reconhece que a possibilidade de “algo” se tornar uma pessoa humana já é suficiente para “acobertá-lo, infraconstitucionalmente, contra tentativas esdrúxulas”. Mas sublinha: “O embrião é o embrião, o feto é o feto, e a pessoa humana é a pessoa humana. Esta não se antecipa à metamorfose dos outros dois organismos. É o produto final dessa metamorfose”.

A aritmética do amor
Em seu argumento, não nega o que qualifica de desconcertante aritmética do amor, em que um mais um é igual a um: o início da vida humana coincide com o “preciso instante da fecundação” de um óvulo por um espermatozóide. Mas destaca o papel definitivo do útero materno para garantir o futuro do novo ser: “Se toda gestação humana principia com um embrião igualmente humano, nem todo embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana”. É o caso dos embriões a que se refere a Lei de Biossegurança, derivados da fertilização sem o acasalamento humano – “fora da relação sexual” -, do lado externo do corpo da mulher, e do lado de dentro de provetas ou tubos de ensaio.

Não se trata, portanto, de interromper uma gravidez humana – “já que nenhuma espécie feminina engravida a distância” -, o que descaracterizaria crime de aborto. “Esse modo de irromper em laboratório e permanecer confinado in vitro é, para o embrião, insuscetível de progressão reprodutiva”. Assim, o embrião viável, obtido pela fecundação in vitro, “empaca nos primeiros degraus do que seria a sua evolução genética… por se achar impossibilitado de experimentar as metamorfoses de hominização que adviriam de sua eventual nidação”.

Concluída essa parte de sua argumentação, Ayres Brito invoca uma série de artigos da Constituição para afirmar que há base constitucional para um casal de adultos recorrer a técnicas de reprodução assistida e que a lei também prevê o planejamento familiar fundado nos princípios da dignidade humana e da paternidade responsável. “Não importa para o direito o processo pelo qual se viabilize a fertilização do óvulo feminino. O que importa é possibilitar ao casal superar os percalços de sua concreta infertilidade e, assim, contribuir para a perpetuação da espécie humana”. Acrescenta ainda que, tendo em vista o “inex­cedível modelo jurídico de planejamento familiar”, o recurso da fertilização in vitro não obriga a nidação no corpo da mulher de todos os óvulos fecundados. “Até porque tal aproveitamento, à revelia do casal, seria extremamente perigoso para a vida da mulher que passasse pela desdita de uma compulsiva nidação de grande número de embriões. Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradante, em contrapasso ao direito fundamental que se lê no inciso II do artigo 5º da Constituição”. E completa: “O grau de civilização de um povo se mede pelo grau de liberdade da mulher”.

Regra constitucional solidária
À luz desses limites legais, o ministro argumentou que restariam à Lei de Biossegurança três alternativas: condenar os embriões “à perpetuidade da pena de prisão em congelados tubos de ensaio”, deixar que os estabelecimentos médicos de procriação assistida “prosseguissem em sua faina de jogar no lixo tudo quanto fosse embrião não requestado para o fim da procriação humana”, ou autorizar o seu uso em pesquisa, conforme previsto em seu artigo 5º. Lembra a regra constitucional – de “inspiração fraternal ou solidária”, prevista no parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição federal – que transfere para a lei ordinária a possibilidade de sair em socorro da preservação da saúde do indivíduo, “primeira das condições de qualificação e continuidade de sua vida”. Socorro que se traduz na legislação que dispõe sobre a morte encefálica para autorizar doações de órgãos. O cérebro humano, para a lei, é uma espécie de divisor de águas: aquela pessoa que preserva as suas funções neurais permanece viva para o direito. “Quem já não o consegue transpõe de vez as fronteiras desta vida de aquém-túmulo”, afirmou, citando Mário de Andrade.

A legislação que autoriza as doações de órgãos e o artigo 5º da Lei de Biossegurança, que dispõe sobre o uso de células-tronco embrionárias, formam, segundo o ministro, o paralelo perfeito. Ao embrião, “faltam-lhe todas as possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas que são o anúncio biológico de um cérebro humano em gestação. Numa palavra, não há cérebro. Nem concluído, nem em formação”.

E, finalmente, em resposta à indagação suscitada pelo ex-procurador geral  “Onde começa a vida?”, afirma, “e já agora não mais por modo conceitualmente provisório, porém definitivo, a vida humana já rematadamente adornada com o atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte cerebral”.

Para Ayres Brito, a escolha da Lei de Biossegurança não significa desprezo ou desapreço pelo embrião in vitro, “menos ainda um frio assassinato”. Trata-se de uma “firme disposição” de superar o infortúnio alheio. Nesse ponto, em que ele invoca as conquistas do “constitucionalismo fraternal”, o seu voto ganha um tom comovente: as vítimas de síndromes ou distrofias, que depositam esperanças de futuro nas pesquisas com células-tronco, ganham nome.

“Como se não bastasse toda essa argumentação em desfavor da procedência da Adin sub judice, trago à ribalta mais uma invocação de ordem constitucional”, afirmou. Invocou mais uma vez a Constituição para lembrar que a saúde é “direito de todos e dever do Estado” e que a ciência também faz parte do “catálogo” dos direitos fundamentais da pessoa humana. E cita o parágrafo 1º do artigo 218 da Constituição: “A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências”.

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