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O lado oculto da violência

Uma em cada dez vítimas de assalto, seqüestro ou outras formas de agressão desenvolve estresse pós-traumático

LAURA DAVIÑAO inferno de José Orleans Cruz começou em um final de tarde tranqüilo sete anos atrás. Ele saiu por volta das 17h40 para buscar a mulher no trabalho e chegar a tempo da primeira aula no curso pré-vestibular que havia iniciado meses antes – duas décadas depois de concluir o ensino médio e ajudar os irmãos a estudar, planejava finalmente se formar advogado. Ao reduzir a marcha para cruzar um obstáculo, uma seqüência rápida de eventos virou sua vida de pernas para o ar e desfez seus sonhos. Quatro homens surgiram em duas motocicletas como se tivessem brotado do asfalto e cercaram seu carro. Apontando armas, ordenaram aos gritos que abrisse as portas. Cruz se tornara vítima de seqüestro, algo que pensava ser improvável acontecer a um cidadão de classe média e só atingisse os grandes empresários. No caminho para o cativeiro, levou coronhadas e foi abandonado na entrada de uma favela depois que os seqüestradores souberam que a polícia os seguia. Antes de o liberarem, bateram mais. Cruz recebeu chutes e socos e ficou caído na lama, com as pernas dormentes e a visão embaçada, sem conseguir se mexer. Só recobrou a consciência quando três pessoas o ajudaram. Um casal de namorados o levou para tomar água com açúcar e avisou a polícia. A terceira pessoa, um jovem, se propôs a resgatar o carro, mas tentou furtar o toca-CD de Cruz. “Eu estava muito fragilizado e aquele rapaz agiu daquela maneira”, conta Cruz. O desapontamento foi tão profundo que mudou sua vida. “Passei a desconfiar de todo mundo.”

Durante a recuperação em casa na semana seguinte, Cruz começou a receber ameaças de morte por telefone e aos poucos não se sentia mais seguro em lugar nenhum. Trancou-se em casa e passou quatro anos sem visitar os irmãos no bairro vizinho. Nem sequer tinha coragem de chegar ao portão. “Quando alguém se aproximava, eu suava frio e tinha palpitações”, conta. Uma vez desmaiou na calçada ao perceber um motoqueiro por perto. Preso em sua própria casa, passou a comer compulsivamente. Em pouco tempo ganhou mais de 50 quilos e se tornou diabético e hipertenso. Três anos atrás concluiu que não valia mais a pena viver. Subiu ao 15º andar do prédio para o qual se mudara e sentou no parapeito, pronto para pular. Só não se jogou porque se lembrou da mãe, que nas aulas de catecismo ensinava às crianças que o suicídio é o maior dos pecados.

Dois dias depois de escapar pela segunda vez da morte Cruz foi a uma consulta no Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), levado pela mulher, com quem está casado há 16 anos. Ali descobriu que, além das dores físicas das primeiras semanas, o seqüestro relâmpago havia deixado feridas emocionais profundas que levariam bem mais tempo para cicatrizar. O psiquiatra que o atendeu explicou que ele estava sofrendo o chamado transtorno de estresse pós-traumático, um distúrbio emocional altamente incapacitante em geral apresentado por ex-combatentes de guerra, que apenas nos últimos anos começou a ser investigado no Brasil.

Nas sessões de terapia em grupo Cruz ficou mais tranqüilo ao saber que não estava sozinho, nem era o único a não se livrar das lembranças daquela noite que insistiam em aparecer apesar de seu esforço para esquecê-las ou do pavor que passou a sentir de estranhos. Na cidade de São Paulo uma em cada dez pessoas que no último ano sofreu episódios de violência que pôs em risco suas vidas (assalto, seqüestro, agressões físicas ou abuso sexual) apresenta os sinais de transtorno de estresse pós-traumático, de acordo com o primeiro levantamento sobre a ocorrência do problema realizado no país. Coordenado pelo psiquiatra Jair de Jesus Mari, da Unifesp, esse estudo se baseou na avaliação de 2.530 moradores de diferentes regiões e segmentos socioeconômicos da capital paulista (amostra representativa da população paulistana) e foi apresentado em São Paulo no final de junho no 1º Simpósio Internacional sobre Violência e Saúde Mental. “Esses dados fornecem um argumento valioso para que se exijam políticas públicas de segurança mais eficazes”, afirma a antropóloga Alba Zaluar, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, estudiosa das causas da violência no Brasil.

CAIO GUATELLI/FOLHA IMAGEM Aumento da violência expõe população a distúrbio emocional comum em guerrasCAIO GUATELLI/FOLHA IMAGEM

Extrapolada para a população da maior metrópole da América do Sul, esses 10% de portadores de estresse pós-traumático correspondem a 1,1 milhão de pessoas que nos últimos 12 meses sofreram ou testemunharam situações violentas e desenvolveram problemas emocionais debilitantes o suficiente para impedi-las de seguir com a vida normal, muitas vezes levando-as a abandonar o trabalho e a alterar também o cotidiano de seus familiares. É como se a cada ano a população de uma cidade como Campinas, a segunda mais populosa do estado, adoecesse a ponto de necessitar de atendimento médico e psicológico. Quando os pesquisadores ampliaram o período analisado para a vida toda, a ocorrência de estresse pós-traumático mais que dobrou: 26% dos paulistanos – o equivalente a 2,8 milhões de pes­soas ou quase a população de Salvador, a terceira cidade mais populosa do país – apresentaram sinais compatíveis ao desse problema emocional disparado pela violência. Nem Mari nem muitos do grupo por ele coordenado, que inclui quase 50 pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Ceará, esperavam taxas tão elevadas, cerca de três vezes mais altas do que a estimada para a população norte-americana.

Iniciada em 2006 essa pesquisa não se restringe a coletar informações sobre a população paulistana. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a equipe do psiquiatra Ivan Figueira está concluindo um levantamento semelhante com 1.500 moradores de diferentes pontos da capital fluminense, dos prédios na orla aos morros cariocas. A expectativa é de que o resultado seja semelhante.

“São números de um país em guerra”, afirma Marcelo Feijó de Mello, psiquiatra da Unifesp especialista em transtorno de estresse pós-traumático e membro da rede brasileira que investiga os efeitos da violência sobre a saúde mental da população. O comentário de Mello não é apenas uma metáfora. A ocorrência de distúrbio psiquiátrico nas duas cidades brasileiras com os mais elevados índices absolutos de violência é próxima – e algumas vezes superior – à observada em países que recentemente passaram por guerras ou conflitos armados internos como Argélia, Camboja e Etiópia. Nessas nações a taxa de estresse pós-traumático na população é, respectivamente, 37%, 28%, 16%.

Só que o Brasil não está em guerra, ao menos não uma guerra declarada. “Enquanto nos Estados Unidos e na Europa a violência é decorrente de ataques terroristas ou da participação de militares em conflitos no exterior, no Brasil é conseqüência de uma espécie de guerra urbana”, comenta Mari. Ainda que seja difícil medir essa forma de violência em toda a sua extensão, estudos recentes conseguem detectar ao menos sua face mais evidente e letal: os homicídios.

AFP PHOTO/AGIF-BRUNO GONZALEZDados de mortalidade do Saúde Brasil 2006, documento compilado pelo Ministério da Saúde, indicam que um em cada 20 mortos no país é vítima de homicídio, na maioria dos casos assassinatos envolvendo o uso de armas de fogo, que tiraram a vida de quase 50 mil brasileiros apenas em 2004. É um problema que vem crescendo nas últimas décadas: o índice de pessoas que perdem a vida vítimas de agressão passou de 14,1 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes em 1980 para 27,2 por 100 mil em 2004. Três vezes superior à média mundial de homicídios calculada pela Organização Mundial da Saúde, essa taxa reflete apenas a média nacional. Em cidades brasileiras como Rio, São Paulo e Recife esse índice é bem mais elevado, em especial entre os jovens do sexo masculino, alcançando por vezes valores superiores aos de Cali, na Colômbia, que no início da década de 1990 era considerada uma das cidades mais violentas do mundo.

É uma guerra urbana em que todos perdem. Perdem os que morrem e também os que sobrevivem ao bangue-bangue das metrópoles brasileiras – só na capital paulista houve 36 mil crimes violentos (assassinatos, roubos e estupros) no primeiro trimestre de 2008 – e mais tarde têm de enfrentar os efeitos colaterais da violência, como ansiedade, depressão e também o estresse pós-traumático. O avanço da violência nas últimas décadas se encarregou de trazer para as cidades um problema emocional que até meados do século passado se imaginava ser exclusivo dos campos de batalha. O que hoje os manuais diagnósticos de saúde mental tratam como transtorno de estresse pós-traumático, um quadro grave de ansiedade decorrente de uma situação extrema de estresse, com amea­ça à vida, foi descrito inicialmente no final do século XIX pelo neurologista e psicólogo francês Pierre Janet. Marcado por pesadelos, insônia, irritabilidade e lembranças recorrentes e indesejadas da situação que o gerou – ou ainda pela reação exagerada a sons e imagens associados a essa situação –, esse quadro mais tarde se tornaria conhecido como neurose de guerra ou estresse de combate e atrairia o interesse de outro renomado neurologista, o austríaco Sigmund Freud, criador da psicanálise.

Durante a Primeira Guerra Mundial, Freud e outros psicanalistas puderam monitorar combatentes que chegavam aos hospitais com paralisia, tremores, pesadelos recorrentes, perda de desejo sexual. Em comum esses pacientes haviam passado por uma situação traumática, em geral a perda de companheiros ou a proximidade da própria morte durante os combates, além de privação intensa e esgotamento físico. Por influência dos veteranos do Vietnã, o estresse de combate entraria em 1980 pela primeira vez para o manual de diagnóstico de saúde mental, o Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM), com o nome de transtorno de estresse pós-traumático.

Nas trincheiras ou nas ruas das metrópoles o transtorno de estresse pós-traumático é disparado por uma característica específica: a ameaça de morte. “Durante o episódio violento, as pessoas que desenvolvem estresse pós-traumático têm a percepção nítida de que vão morrer ou de que, no mínimo, algo se perdeu para sempre e a vida mudou”, conta o psiquiatra José Paulo Fiks, da equipe da Unifesp que realizou o levantamento em São Paulo. Do ponto de vista da psicanálise, uma ameaça extrema e imprevista como a de morte pode produzir no sujeito um impacto afetivo tão intenso que ele não consegue assimilar e incorporar à história de sua vida, explica Sidnei Casetto, professor de teoria freudiana do Departamento de Ciências da Saúde da Unifesp na Baixada Santista. Como resultado, ele passa a rever repetidamente o evento que gerou o trauma na tentativa de dar-lhe um significado e o esquecer, deixando de ser uma espécie de prisioneiro do tempo.

NARA/USA O exemplo da Primeira Guerra: combatentes adoecem ante a perda de companheiros e o risco de morteNARA/USA

Assim como Freud, muitos dos que estudam atualmente o estresse pós-traumático acreditam que o episódio violento que o dispara, na realidade, não é sua causa primordial. Sua origem estaria escondida no passado, muitas vezes em algum trauma ocorrido na infância, que seria novamente trazido à tona. “A situação recente em que a vida esteve em risco resgataria uma situação anterior, que permaneceu encapsulada”, comenta a psicóloga Mariana Pupo, também da Unifesp.

Os dados clínicos corroboram esse raciocínio. Avaliando a história de cem portadores de estresse pós-traumático atendidos no Prove, Mariana, Aline Schoedl e Marcelo Feijó de Mello constataram que metade deles havia passado por situação extremamente violenta na infância ou na adolescência: 48% sofreram abuso sexual antes dos 18 anos. Feito  em parceria com Linda Carpenter e Lawrence Price, da Universidade Brown, nos Estados Unidos, esse trabalho mostrou ainda que o risco de desenvolver estresse pós-traumático está intimamente relacionado à fase da vida em que ocorreu o abuso. Vítimas de violência sexual na adolescência (entre 13 e 18 anos) apresentaram risco dez vezes maior de desenvolver transtorno de estresse pós-traumático na vida adulta do que as que haviam passado pela mesma situação antes dos 12 anos. Já o abuso sexual na infância (até os 12 anos) aumentou a probabilidade de desenvolver depressão numa fase posterior da vida, segundo artigo a ser publicado em breve na Child Abuse and Neglect.

O levantamento com 2.530 moradores de São Paulo indicou também que nem sempre são os eventos violentos considerados mais graves, a exemplo dos assaltos à mão armada ou de seqüestros com tortura como o vivenciado por José Orleans Cruz anos atrás, que disparam o estresse pós-traumático. A maior parte dos casos identificados na capital paulista decorre de agressão doméstica (brigas entre casais, violência contra os filhos ou abuso sexual cometido por cônjuge ou parente), segundo o psiquiatra Sergio Baxter Andreoli, responsável pelos dados epidemiológicos do estudo na cidade de São Paulo.

Grupos específicos da população parecem correr maior risco de desenvolver estresse pós-traumático que os demais. Em 2004 Deborah Maia e Ivan Figueira, da UFRJ, analisaram a ocorrência de estresse pós-traumático entre policiais da tropa de elite de Goiás. Dos 155 policiais que participaram do estudo, 9% apresentavam no momento da entrevista os sintomas que caracterizam o quadro de estresse pós-traumático – e outros 16% manifestavam parte dos sinais, que se tornaram conhecidos da população no esgotamento apresentado pelo Capitão Nascimento, do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), interpretado pelo ator Wagner Moura no filme Tropa de elite, de José Padilha. Esses policiais com sintomas de estresse pós-traumático relatavam se encontrar com a saúde mais debilitada e ter passado por mais consultas e internações médicas que os demais, como detalharam os pesquisadores em artigo publicado em 2007 no Journal of Affective Disorders.

2ND LT. JACOB HARRIS/NARA/USA Segunda Guerra: devastação material e psicológica2ND LT. JACOB HARRIS/NARA/USA

Durante um assalto à mão armada, seqüestro ou estupro, o impacto emocional da violência pode ser tão intenso que a vítima manifesta um recurso extremo de defesa. Como se congelasse instantaneamente, o corpo paralisa, sem forças para reagir ou gritar. Comum entre presas ante seus predadores – a exemplo de um rato atacado por uma águia –, essa reação involuntária pode ajudar a  predizer como evoluirá o tratamento do indivíduo, em geral baseado em sessões de psicoterapia associadas ao uso de medicamentos antidepressivos que agem sobre o neurotransmissor serotonina e ajudam em 80% dos casos. Em um estudo com 23 pessoas vítimas de violência urbana (na maioria dos casos assalto à mão armada), publicado recentemente no Journal of Affective Disorders, dez desenvolveram paralisia e responderam pior ao tratamento com antidepressivos, constataram Figueira e a psiquiatra Adriana Fiszman, da UFRJ.

O trabalho dos grupos coordenados por Jair Mari e Ivan Figueira não se restringe a verificar os índices de estresse pós-traumático nas populações das principais metrópoles brasileiras. As equipes de São Paulo e do Rio também buscam compreender melhor aspectos ainda obscuros desse transtorno emocional: as alterações que provocam no funcionamento do organismo muitos anos depois do episódio violento; a identificação de fatores biológicos e ambientais que predispõem ao desenvolvimento do estresse pós-traumático ou protegem dele; além de tratamentos medicamentosos e psicológicos mais eficientes.

Analisando amostras de saliva coletadas durante a entrevista com a população da capital paulista, Marcelo Feijó Mello constatou que as pessoas com sinais de transtorno do estresse pós-traumático também apresentavam um desequilíbrio hormonal importante, semelhante ao observado em estudos realizados em outros países. Provavelmente em conseqüência do estresse e da ansiedade prolongada provocados pelo episódio violento, o organismo delas produz níveis mais baixos do hormônio cortisol, associado ao estresse. Parece contraditório, mas não é. Esse resultado sugere que elas se tornaram mais sensíveis à ação desse hormônio. Por essa razão, taxas menores na corrente sangüínea provocam efeitos mais exacerbados, como as palpitações e o alerta redobrado que Cruz sentia ao avistar um motoqueiro. Esse efeito, que pode fazer a diferença entre a vida e a morte por preparar o organismo para escapar de um agressor, é extremamente danoso quando dura mais que alguns instantes porque provoca a morte de células cerebrais.

Os resultados ainda são preliminares, mas essa morte celular parece afetar uma área cerebral associada à aquisição da memória, o hipocampo. A anatomista Andrea Jackowski comparou imagens de ressonância nuclear magnética do cérebro de 55 pessoas vítimas de violência em São Paulo (35 haviam desenvolvido estresse pós-traumático e 20 permaneciam saudáveis) e observou uma redução de até 10% no volume do hipocampo, possivelmente associada à morte celular. “Ainda não sabemos dizer se o estresse pós-traumático provoca a diminuição do hipocampo ou, ao contrário, se as pessoas que já apresentavam hipocampo menor eram mais propensas a desenvolver o problema”, explica Andrea.

Esse é outro achado aparentemente contraditório. Mas já é de esperar que não haja resposta simples para uma enfermidade que pode ser provocada por diversos fatores e que envolve um órgão tão complexo como o cérebro. Se o centro associado à aquisição da memória é menor nos portadores de estresse pós-traumático, eles não deveriam se lembrar menos do que se passou? Na verdade não. É que eventos de forte conteúdo emocional – um revólver engatilhado apontado para a cabeça, por exemplo – acionam também outra área cerebral chamada amígdala, responsável pela aquisição da memória de eventos desagradáveis. Em uma pessoa saudável, o funcionamento da amígdala é inibido pelo córtex frontal, a região mais anterior do cérebro, situada próximo à testa. Andréa tenta agora identificar se as pessoas com estresse pós-traumático também apresentam uma redução no volume do córtex frontal, o que explicaria o funcionamento exagerado da amígdala e o estado de hipervigilância.

Em uma vertente pouco usual nos estudos de doenças psiquiátricas, a geneticista Camila Guindalini está analisando cerca de 1.500 amostras de saliva coletadas durante as entrevistas com os moradores de São Paulo de pessoas vítimas de violência que desenvolveram ou não estresse pós-traumático. Ela tenta identificar alterações específicas nos quase 21 mil genes humanos que afetam o funcionamento do sistema nervoso central e possam favorecer o desenvolvimento do estresse pós-traumático ou mesmo aumentar a resistência a esse distúrbio emocional. Estudos internacionais sugerem uma contribuição de aproximadamente 30% dos fatores genéticos para o desenvolvimento do estresse pós-traumático – os outros 70% ficariam por conta do ambiente (condições socioeconômicas, educacionais e suporte social). Camila também pretende ver como se comportam na população brasileira variações em genes específicos ligados ao funcionamento de neurotransmissores ou ao desenvolvimento de células cerebrais e à fixação da memória. “Com uma amostra tão grande, conseguiremos identificar efeitos pequenos provocados pelos genes”, diz. Ainda que não expliquem tudo, podem ajudar a entender o problema.

Enquanto não se chega a um quadro mais claro sobre possíveis fatores biológicos associados ao estresse pós-traumático, capazes de levar a mudanças nos tratamentos atuais, a equipe da Unifesp testa uma terapia psicológica alternativa em grupo de pessoas no qual os antidepressivos e as terapias psicológicas mais usuais não surtiram o efeito desejado. Em vez de expor o indivíduo a situações semelhantes àquela que gerou o trauma, como propõe a terapia cognitivo-comportamental, a equipe de Rosaly Braga Campanini tenta restaurar, com a chamada terapia interpessoal de grupo, os laços sociais (na família, no trabalho e na comunidade) que os portadores de estresse pós-traumático em geral perderam. Até o momento as 30 pessoas que passaram por sessões semanais de terapia interpessoal apresentaram melhora importante, com redução das lembranças do trauma e recuperação da relação com familiares e amigos.

Apesar dos avanços, Mari afirma que ainda é preciso trabalhar muito mais para tentar compreender por que a maior parte das vítimas de violência não desenvolve estresse pós-traumático ou conseguir alternativas de tratamento que devolvam aos portadores desse distúrbio emocional a vida em sociedade como aconteceu com José Orleans Cruz. Hoje recuperado, Cruz voltou a dirigir e retomou os passeios com a mulher. Toda semana vai à feira, comer pastel e olhar os produtos barraca por barraca. Até já faz planos para o futuro. Pretende se aposentar em alguns anos e retornar para Itapagé, no interior do Ceará, de onde, com os pais e irmãos, veio adolescente para São Paulo. “Vou criar ovelhas”, diz. “Quero esquecer a cidade grande e o que aconteceu comigo.”

Os Projetos
1.
Transtorno do estresse  pós-traumático: epidemiologia, fisiopatologia e tratamento (04/15039-0); Modalidade Projeto Temático; Co­or­de­na­dor Rodrigo Affonseca Bressan – Unifesp; Investimento R$ 1.060.744,27 (FAPESP).
2. O Impacto da violência na saúde mental da população brasileira; Modalidade Instituto do Milênio; Co­or­de­na­dor Jair de Jesus Mari – Unifesp; Investimento R$ 4.204.400,00 (CNPq)

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