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Evolução

Aos pés dos dinossauros

Pequenos lagartos contemporâneos dos grandes répteis se escondem nas florestas brasileiras

GABRIEL SKUK SUGLIANO/UFAL E MIGUEL TREFAUT RODRIGUES/USPEm sentido horário: Coleodactilus septentrionalis, C. meridionalis e C. amazonicus GABRIEL SKUK SUGLIANO/UFAL E MIGUEL TREFAUT RODRIGUES/USP

Lagartos pouco maiores que a unha do polegar, coletados em 16 estados do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste, mostram que o território brasileiro abriga espécies ainda vivas de animais cujos antepassados conviveram com os dinossauros. Também sugerem que a diversidade biológica do país pode ser bem maior do que o imaginado e que as análises genéticas podem revirar o conhecimento que parecia difícil de ser contestado. Os zoólogos e os geneticistas não imaginavam que chegariam a tanto estudando cinco espécies de lagartos do gênero Coleodactylus trazidas da Amazônia, da Caatinga, do Cerrado e da Mata Atlântica.

À primeira vista as cinco espécies são parecidas entre si, mas geneticamente são diferentes. Análises de DNA realizadas na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, revelaram diferenças mesmo dentro de uma só espécie e indicaram que os primeiros representantes do gênero Coleodactylus teriam surgido há 72 milhões de anos. Esse resultado remete a uma época muito mais longínqua que estimativas anteriores, que chegavam a, no máximo, 2 milhões de anos.

“Os grandes dinossauros devem ter esmagado centenas de Coleodactylus”, diz o zoólogo da USP Miguel Trefaut Rodrigues. Ele assina com Silvia Geurgas, da USP, e Craig Moritz, de Berkeley, um artigo recente na Molecular Phylogenetics and Evolution com esses resultados. Os Coleodactylus, que formam o grupo dos menores lagartos do mundo, com quatro centímetros da cabeça à cauda, sobreviveram nas florestas até seus descendentes, trilhões de gerações depois, chegarem aos dias de hoje provavelmente sem modificações corporais nos últimos 40 milhões de anos.

“O tempo de origem e diferenciação das espécies a que chegamos joga por terra tudo o que sabíamos sobre os Coleodactylus”, reconhece Rodrigues. A classificação que até agora servia sem problemas havia sido proposta há 40 anos pelo zoólogo da USP Paulo Vanzolini com base em características morfológicas. Para Vanzolini, Coleodactylus meridionalis, encontrada hoje na Mata Atlântica e na Caatinga, seria uma espécie-irmã (muito próxima) de C. septentrionalis, achada nas savanas de Roraima, da Venezuela, do Suriname e da Guiana. Como essas duas espécies viviam muito longe entre si, separadas pela Floresta Amazônica, que abrigaria uma espécie mais recente, C. amazonicus, Vanzolini imaginou que uma floresta contínua poderia ter ocupado toda a região por onde hoje se espalham Amazônia, Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica. As populações de uma espécie ancestral de Coleodactylus teriam se espalhado por essa floresta gigantesca e se diversificado à medida que a vegetação se fragmentasse, em resposta a variações cíclicas de temperatura.

As análises genéticas confirmaram que a espécie Coleodactylus amazonicus realmente é diferente das outras – tão diferente a ponto de constituir uma linhagem evolutiva praticamente independente das demais espécies de Coleodactylus, que teria tomado forma logo após o surgimento do grupo, há cerca de 70 milhões de anos, na mesma época em que outros gêneros dessa família de lagartos da América do Sul e da América Central começaram a se ramificar. A partir daí, porém, a história é outra. Geneticamente, C. meridionalis, da Mata Atlântica e de áreas florestais da Caatinga, é mais próxima de C. brachystoma, do Cerrado, do que de C. septentrionalis, das savanas amazônicas. Em termos mais abrangentes, espécies mais próximas geograficamente – e não as mais parecidas morfologicamente – são também as mais aparentadas.

O parentesco entre esses lagartos deve se embaralhar mais à medida que os biólogos associem cada espécie com as peculiaridades geográficas dos ambientes em que vivem. As cinco espécies devem se tornar ao menos 17. “Não existe uma espécie única para toda a Amazônia ou para toda a Mata Atlântica ou para todo o Cerrado”, assegura Silvia. “Para a Amazônia, vou sugerir cinco, porque os dados moleculares indicam que se trata de entidades evolutivas separadas, que não cruzam mais.” Os estudos moleculares indicam que a maioria das espécies teria distribuição geográfica muito mais restrita, embora mais de uma possa eventualmente compartilhar o mesmo território.

Uma hipótese a ser testada com os Coleodactylus é se os rios funcionariam como barreiras para diferenciação de espécies. Anos atrás, Kátia Pellegrino, hoje na Universidade Federal de São Paulo, Rodrigues e outros biólogos mostraram a validade dessa idéia com uma espécie de lagartixa da Mata Atlântica, a Gymnodactylus darwinii. As populações dessa espécie encontradas ao norte e ao sul do rio Doce, que drena áreas de Minas Gerais e do Espírito Santo, antes consideradas próximas, não se mostraram mais tão próximas, uma tem 38 e outra 40 cromossomos.

Um rio, várias espécies
Rodrigues, com sua equipe, verificou há mais tempo que o São Francisco isolou populações e favoreceu o surgimento de novas espécies, já que nas areias quentes das margens direita e esquerda, separadas por não mais de 300 metros no norte da Bahia, vivem lagartos com sutis diferenças entre si. São as chamadas espécies-irmãs, que tinham se isolado e passado por uma história evolutiva própria, só agora esclarecida. Comparando trechos do DNA de dez populações de lagartos do gênero Eurolophosaurus, José Carlos Passoni, Maria Lúcia Benozzati e Rodrigues, todos da USP, mostraram este ano na Molecular Phylogenetics and Evolution que esses animais também devem ter aparecido há mais tempo do que imaginavam, embora a origem deles não recue tanto quanto à dos Coleodactylus. De acordo com as análises genéticas, uma das espécies, a Eurolophosaurus divaricatus, um lagarto de 25 centímetros de comprimento que vive na margem esquerda do São Francisco, teria surgido há 5,5 milhões de anos. Os habitantes da margem oposta seriam mais recentes, o E. nanuzae com 3,5 milhões de anos e o E. amathites com pelo menos 1,5 milhão de anos.

Mesmo assim, a origem estimada desses lagartos é mais remota do que os modestos 15 mil anos antes calculados com base em dados geomorfológicos. Teria sido nessa época que o rio, à medida que o relevo se modificava, teria desviado seu curso do interior para o mar. As lagoas internas em cujas margens os lagartos tomavam sol podem ter se desfeito ou o rio incorporado parte da margem esquerda ao seguir para leste e não mais para oeste. Os biólogos esperam que um dia as histórias do rio e dos lagartos possam coincidir.

O Projeto
Sistemática e evolução da herpetofauna neotropical (nº 03/10335-8); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Miguel Trefaut Rodrigues – USP; Investimento R$ 900.191,26

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