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Manning Marable

Manning Marable: A história negra viva

Entrevista 1DAVID SHANKBONE/WIKIMEDIA COMMONSDe Nova York

Há um site da Universidade Columbia, em Nova York, inteiramente dedicado ao líder negro Malcolm X, assassinado numa tarde de domingo, 21 de fevereiro de 1965, no Harlem, diante de sua mulher grávida, de três dos seus quatro filhos e de uma multidão de centenas de pessoas que aguardavam mais um de seus eletrizantes discursos. Malcolm, que um filme de 1992 do diretor Spike Lee tornou famoso no mundo inteiro, completaria 40 anos três meses depois daquela dramática tarde. O site em questão, sob o título geral “The Malcolm X project at Columbia University”, é resultado de um trabalho persistente e ambicioso do professor Manning Marable, docente de história e ciência política da Columbia, fundador do Instituto para Pesquisas em Estudos Afro-Americanos e diretor do Centro de História Negra Contemporânea da mesma universidade.

Além da construção de uma robusta versão multimídia da autobiografia do líder negro, o objetivo declarado do site é a pesquisa e o desenvolvimento de uma ampla e densa biografia dessa personagem nascida em Ohio, em 1925, e que, ainda criança, teve o pai assassinado brutalmente pela Ku Klux Klan. Já em 2009 a busca empreendida por Marable deve resultar na publicação de seu novo livro, Malcolm X: a life of reinvention.

Não se pense, entretanto que esse pro­fessor de 58 anos, um dos mais importantes scholars negros no meio acadêmico norte-americano, autor até aqui de 19 livros, é pesquisador de uma figura só. Muito longe disso, as variadas lideranças do passado e do presente que a já longa luta de afirmação dos negros nos Estados Unidos vem gestando estão todas sob o olhar atento de Marable, como se pode constatar, por exemplo, em seu livro publicado pela Civitas Books em 2005, Living black History: how reimagining the african-american past can remake America’s racial future.

Tal atenção inclui, é claro, o presidente eleito dos Estados Unidos. E Marable, por meio de sua coluna “Along the color line”, publicada em mais de 400 veículos impressos e virtuais, em seu país e também no Canadá, Reino Unido, Caribe e Índia, tratou de examinar sob todos os ângulos a candidatura de Barack Obama e conclamar seus leitores para ajudar a construir a vitória do candidato democrata. Em janeiro de 2008, por exemplo, ele dizia: “Precisamos nos mobilizar para dar apoio à eleição de Barack Obama, não só por ele ser progressista e inteiramente qualificado para a Presidência, mas também porque só sua campanha pode forçar todos os americanos a superar o silêncio centenário sobre raça que cria um profundo abismo a cruzar a vida democrática desta nação”.

Em outubro, num artigo em que examinava menos a estratégia da campanha e mais a bem traçada estratégia política do grupo de lideranças negras moderadas da qual Obama faz parte, Marable observava que foi nos debates televisivos que “milhões de perplexos americanos brancos finalmente perceberam que um afro-americano provavelmente seria eleito presidente”. E essa estonteante percepção, dizia ele, levantou uma onda de racismo, pondo abaixo a aparente neutralidade diante da questão racial com que o país parecera se acostumar nos últimos anos. Ainda em outubro, num artigo em que argumentava em favor do programa econômico do candidato democrata para reverter alguns dos piores efeitos da recessão econômica anunciada, o professor da Columbia assegurava que também por isso o voto em Obama era “absolutamente necessário e essencial para os trabalhadores negros e para todos os americanos”.

Obama eleito, no dia seguinte, 5 de novembro, Manning Marable já explicava em entrevista num programa de rádio em Nova York por que realmente contara com a vitória, ainda que o surpreendesse a rapidez com que ela se construíra no começo deste século XXI. Uma razão era a rápida transformação étnica da sociedade americana que, nos próximos 30 anos, fará efetivamente dos negros, mulatos, latinos e asiáticos-americanos a maioria da população do país. A outra era a sólida formação do grupo de lideranças negras pragmáticas, não baseadas politicamente no critério de raça, mais ao centro do espectro ideológico do que os políticos negros que emergiram do movimento dos direitos civis dos anos 1960 e 1970 e capazes de apelar diretamente aos brancos com um novo projeto geral para a nação.

A entrevista que se segue com Manning Marable foi feita em sua sala, num prédio da avenida Amsterdam, bem perto da avenida 119, lado Oeste, no belo campus da Columbia, num começo de tarde nublada, em 1º de dezembro de 2006. Com a decisão de publicá-la agora, enviei algumas questões ao professor sobre a vitória de Barack Obama e ele respondeu mandando seus artigos sobre o tema que julgava mais importantes. Escolhi usar alguma coisa deles na abertura e manter a entrevista original de dois anos atrás.

Para começar, gostaria de ouvi-lo a respeito de suas pesquisas sobre Malcolm X. Seu objetivo é uma grande biografia?  
Malcolm X foi um dos americanos mais importantes da metade do século XX. Mais do que qualquer outro negro americano, ele representou a população negra urbana dos Estados Unidos. Nenhuma outra figura foi mais significativa do que Malcolm X ao interpretar as políticas e a raiva do povo afro-americano entre os anos de 1950 e 1970.

E por que ele é tão significativo? 
Dentro da cultura afro-americana, Malcolm corporifica duas metáforas ou duas expressões de cultura: a do ladrão e a do pregador. A vida de Malcolm foram os conhecidos 30 anos. Na década de 40, aqui no Harlem, ele era bem conhecido pelo apelido de “Detroit Red”, um jovem gângster, um bandido que lidava com drogas e prostituição. Tinha sido preso aos 21 anos e ficara detido por sete anos e sete meses, um tempo em que se transformou: juntou-se a um obscuro grupo islâmico, o Nation of Islam, liderado por Elijah Muhammad, que conservava elementos do islamismo sunita tradicional, mas era essencialmente um culto negro, racista, defensivo e profundamente autoritário, produto de uma reação à supremacia branca nos Estados Unidos. Nesse sentido, ele simplesmente invertia a teologia do privilégio branco, acusando os brancos de serem Satã, o diabo, enquanto tornava negros os deuses. Essa teologia, que tinha em si elementos do Islã tradicional, difundia-se entre negros pobres e prisioneiros, como Malcolm, então confinado numa prisão no estado de Massachusetts. Ele uniu-se ao culto e, quando saiu da prisão, em agosto de 1952, teve uma pro­jeção meteórica como o maior porta-voz nacional de Elijah Muhammad. Em 1962 e 1963, ele se tornou extremamente proe­minente no campus das universidades americanas e na televisão como um líder negro raivoso que desafiava a não-violência de Martin Luther King e se opunha à integração racial. Ele era a favor da separação nacionalista negra, da criação de empresas e instituições totalmente negras controladas pelos próprios negros. Os negros deviam formar comunidades autônomas que eles controlariam dentro das cidades dos Estados Unidos. Visava, enfim, uma divisão racial nada diferente da que se estabeleceu entre hindus e muçulmanos quando da separação entre Índia e Paquistão em 1947, dado que os negros receberiam um certo número de estados no Sul para onde poderiam se mudar todos os afro-americanos e de onde os brancos poderiam sair. Assim teríamos uma separação de raças e dessa forma encontraríamos uma igualdade política real e genuína. Era, claro, uma visão racista, criada e construída pelos negros em resposta ao racismo dos brancos. Não era uma estratégia que Malcolm, ao fim de sua vida, apoiava ou aceitava. Mas durante aquele período de sua vida, quando Malcolm acreditava nisso, ele tornou-se uma figura muito influente na mídia e na imprensa, tanto que a cobertura jornalística gerou ciúmes e oposição dentro da Nação do Islã.

E por falar em oposição, em relação a Martin Luther King, como aparecia a figura de Malcolm X?
Os dois eram freqüentemente citados como contrários, o que, na minha opinião, está incorreto. Deve-se ver que tanto Malcolm quanto King evoluíram na direção um do outro ideológica e politicamente. No final de sua vida, em 1964-65, Malcolm X era completamente contrário à Guerra do Vietnã. Ele foi o primeiro americano proeminente, e, certamente, o primeiro americano negro a mostrar-se contrário à Guerra do Vietnã, que denunciava como uma guerra racista e imperialista. Foi Malcolm também quem argumentou que os negros americanos deveriam ir à ONU para apresentar sua situação ao mundo como um caso de genocídio e discriminação em vez de definir nossa luta simplesmente como uma luta pelos direitos civis. Ele dizia que era uma luta pelos direitos humanos. Finalmente Martin Luther King acolheu essas duas posições de Malcolm: em 1967 posicionou-se contra a Guerra do Vietnã e acolheu também a idéia de direitos humanos na questão da racialização nos Estados Unidos. Malcolm X também lançou o que, mais tarde, seria chamado de black power, construindo instituições negras fortes, e o controle político negro de grandes cidades com a eleição de prefeitos negros, deputados e senadores. O doutor King da mesma forma apoiava o black power, muito embora o slogan controverso o alienasse em muitos aspectos. King não se opunha à idéia da representação negra e de políticos negros e eleitos. Assim, os dois homens na verdade aproximavam-se cada vez mais em termos ideológicos e pessoais, o que acho muito significativo. Em meu livro mais recente, Living black History, que traz na capa uma foto dos dois juntos, proponho que Malcolm X seja entendido como um líder de direitos humanos que evoluiu em termos políticos e ideológicos, especialmente em questões de raça e libertação nacional.

Convergência entre Martin Luther King e Malcolm X

ROBERT LLEWELLYN /CORBIS/LATINSTOCKConvergência entre Martin Luther King e Malcolm XROBERT LLEWELLYN /CORBIS/LATINSTOCK

As posições de Malcolm tiveram mais conseqüências do que as de Martin Luther King na continuidade da história dos negros nos Estados Unidos? 
Não concordo com esse raciocínio. Eu diria que elas foram complementares em uma análise que desafia a desigualdade racial e a injustiça humana. Diria que os dois abordaram o problema do racismo de forma um pouco diferente, mas que representaram as vozes centrais na desconstrução e deslegitimização da supremacia branca e da injustiça racial.

Seus estudos voltam-se à história dos negros nos Estados Unidos no século XX, mas também se dirigem ao século XIX e a outros momentos do passado. Seria possível resumir sua visão e estabelecer uma comparação com o Brasil nessa área? 
Ah sim, escrevi muito sobre isso em Great wells of democracy: the meaning of race in american life, publicado em 2002, e também num outro livro anterior, African and Caribbean politics, publicado em Londres pela Verso, em 1987. A despeito do título, nele há referências ao Brasil. Eu proponho que o respeito às histórias dos povos de descendência africana no Brasil e nos Estados Unidos possuem grandes semelhanças, mas também diferenças profundas. As semelhanças mais significativas são as lutas pela liberdade, pelos diretos humanos e pela dignidade humana enfrentadas pelos povos de descendência africana, transcendendo os épicos históricos. Isso inclui o comércio transeconômico de escravos, a escravidão em si, a emancipação no Brasil em 1888 e nos Estados Unidos em 1865, e também o período pós-emancipação, chamado nos Estados Unidos de Reconstrução. Inclui também a luta pela liberdade e igualdade durante o século XX. Há, portanto, um paralelo no sentido de que as pessoas negras sofreram discriminação e falta de acesso a educação, habitação e saúde – todos os componentes daquilo que constitui os direitos humanos no século XXI. Mas há uma diferença fundamental, ou melhor, várias diferenças fundamentais entre as duas nações. E a mais importante delas é que, no Brasil, a história da formação do estado brasileiro – de sua sociedade política e da construção da sociedade civil – é apoiada pela consciência nacional e pela identidade nacional que superam a consciência de raça. Nos Estados Unidos, o estado foi construído sobre um claro fundamento racial.


E qual seria? O que comprova isso? 
Posso dar um exemplo. A primeira lei aprovada pelo governo dos Estados Unidos quando o Congresso se reuniu pela primeira vez, isto é, a lei mais importante, a da imigração de 1790, definia a cidadania americana exclusivamente para pes­soas brancas e livres. Em outras palavras, para ser considerado um membro do estado era preciso ser branco, preferivelmente um homem branco e com propriedades. Até 1920, nenhuma mulher podia votar nos Estados Unidos. Podiam votar todos os brancos que tinham propriedades até os anos 1790, e daí até os anos 1830 todos os homens brancos acima de 21 anos, independentemente da renda ou de suas propriedades. A raça definia a cidadania e o acesso ao voto. A raça definia quem podia fazer parte de um júri ou mesmo apresentar provas em um tribunal. Aos negros, se fossem escravos, não era permitido sequer apresentar provas. Os negros foram definidos como propriedades nos Estados Unidos por aproximadamente 250 anos e a maioria dos afro-americanos não votava em eleições presidenciais americanas até 1968. E isso porque a lei de direitos civis e a lei de direito ao voto só foram aprovadas, respectivamente, em 1964 e 1965. Os negros nominalmente tinham direito ao voto e uma minoria nos estados do Norte e do Meio-Oeste, além da Costa Oeste, podia votar, mas os negros no Sul não. Eles não podiam levar, praticar ou garantir seus direitos constitucionais pelo voto. Portanto, o estado democrático foi racialmente preconfigurado. Já no Brasil – e não estou minimizando a centralidade ou a importância da discriminação racial no país –, de forma muito semelhante ao que ocorreu em Cuba, a consciência nacional transcendeu a questão da identidade racial para a maioria dos brasileiros, mesmo para os brasileiros negros, que, até muito recentemente, definiam sua própria identidade nacional fora de um contexto racial. Nos Estados Unidos isso jamais foi verdade: era preciso ser branco para ser americano. Afro-americanos não eram considerados, através da maior parte da história americana, sequer pessoas, sujeitos, éramos propriedades. E esta é uma enorme diferença. Há uma segunda grande diferença que reforça isso. É que nos Estados Unidos houve uma guerra civil e no Brasil não houve. E isso é, historicamente, extremamente importante. A Guerra Civil foi o conflito fundamental da história americana. Seiscentos e cinqüenta mil americanos foram mortos e 2 milhões foram feridos numa população de 38 milhões de pessoas. Pode-se ver como essa guerra foi poderosa. E seu foco era se o país deveria ou não manter a escravidão, permanecer meio escravo e meio livre. No final da guerra, os negros ganharam sua liberdade técnica, os homens negros conquistaram o direito ao voto por um certo tempo, direito revertido uma dúzia de anos mais tarde. Portanto, foi preciso uma guerra para acabar com a escravidão. Enquanto isso, no Brasil, a escravidão tornava-se crescentemente uma instituição econômica disfuncional. Até os próprios senhores de escravo começaram a se agitar por alguma espécie de fim da escravidão que lhes desse uma compensação. Olhavam o modelo da Índia Ocidental, dos britânicos, observavam como os plantadores do Caribe receberam compensação financeira e sentiam cada vez mais que a propriedade de escravos como forma econômica de exploração do trabalho não era tão produtiva ou competitiva quanto o modelo do livre mercado. Os economistas já criticavam o Brasil, sua dependência da escravatura, e começaram a atribuir muito do atraso do país a essa dependência. Isso não aconteceu nos Estados Unidos, foi preciso uma guerra. Na memória do conflito, mesmo numa eventual visão da televisão ou de um filme americano, percebe-se quão poderosa é a imagem do Sul no Partido Republicano, mesmo hoje quando se tornou o partido do lixo Dixie. Todos os racistas, sulistas brancos, que odiavam os direitos civis, que odiavam Martin Luther King, juntaram-se no Partido Republicano nos anos 1960, 1970 e 1980, sob [Ronald] Rea­gan. E isso é o cerne, o coração da ideologia do Partido Republicano. Se alguém quer entender o Iraque tem que entender a segregação de Jim Crow e se quer entender Abu Ghraib precisa entender os linchamentos dos negros no Sul. Não há diferença: é a mesma bestialidade, o mesmo racismo, o ódio, a demonização e a estigmatização experimentados pelos negros americanos que eles dirigem agora a todos que se lhes opõem. Eles apenas exportaram  a mesma informalidade para o resto do mundo. E é a mesma gente. Um dos mestres da arquitetura da supremacia branca é, uma vez mais, Trent Lott, senador pelo Mississippi, o segundo na escala de poder do Partido Republicano no Senado [o senador renunciou em novembro de 2007].

Essas diferenças históricas entre Brasil e Estados Unidos criaram diferentes estratégias de sobrevivência entre escravos e seus descendentes e, inclusive, diferentes estratégias culturais. No Brasil, por exemplo, onde o racismo é mais velado, a necessidade dos escravos de se expressarem em termos religiosos, mas fugindo à repressão do governo e às perseguições policiais (que, entretanto, ocorreram por muito tempo), terminou por levá-los a estabelecer algumas correspondências entre seus cultos originais e os cultos católicos e a criar uma nova religião negra e brasileira, o candomblé. Muito mais adiante, alguns grupos começaram a incorporar em suas práticas também elementos do espiritismo kardecista, e o resultado foi um candomblé modificado em nova religião, a umbanda. Aqui nos Estados Unidos, onde o racismo se constituiu tão abertamente, e o ódio dos brancos se expressou com tanta força, os negros criaram suas expressões religiosas dentro das religiões brancas, protestantes. Mas se observo hoje uma igreja no Harlem, posso ver ali, no poder que o canto e o corpo têm no culto, algo que me lembra muito o que se passa no candomblé, por exemplo. 
Está correto, eu conheço o candomblé. De certa forma, a presença do corpo e da voz nesses termos ocorreu nos Estados Unidos por meio do pentecostalismo. Os pentecostais foram fundados no Templo Azusa, em San Diego, Califórnia, em 1905, em grande parte por afro-americanos. E a fé pentecostal ou sagrada tem grande ênfase na posse física de Deus por uma pessoa. Assim, há movimentos físicos profundos, cantos, excitação e entusiasmo no culto, muito diferente do que se dá nas igrejas episcopais, anglicanas ou metodistas. Agora há milhões de brancos nos Estados Unidos que são pentecostais. Mas eles são largamente conservadores em termos políticos, não se engajam em associações progressistas ou de esquerda, em uniões de comércio ou organizações políticas. Acreditam na máxima do “dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”. Mas a maioria da fé negra é radical e progressista em sua expressão e conteúdo porque a igreja negra era a única instituição permitida pelos senhores brancos para os negros. Lhes era permitido utilizar um dia da semana para comungar com Deus, tocar música, dançar e cantar para Deus. E essas expressões religiosas foram o lugar para a afirmação da identidade e da consciência. Foram também o embrião das lideranças negras. Depois da Guerra Civil, quem se tornou a liderança lógica da comunidade negra foram, claro, os pastores. Eram eles que concorriam a cargos públicos, que se elegiam e se tornavam legisladores no Congresso. E não surpreende que, no século XX, o primeiro candidato negro a presidente, de certo modo bem-sucedido, porque não conseguiu a Presidência mas ainda influenciou o debate nacional, tenha sido Jesse Jackson, um pastor. No começo do século XX, o congressista negro mais poderoso era Adam Clayton Powell Jr., do Harlem, um pastor da Igreja Batista Abissínia. E ocorre que o próprio doutor King era um pastor. Sua identidade como cristão negro, no papel de organizador da igreja como uma instituição de resistência ao racismo, à pressão racial, criou uma tradição que é em geral progressista e esperançosa em desafiar a desigualdade e a repressão governamental. Assim, há uma rica tradição progressista, mas há também a tradição conservadora no âmbito das igrejas pentecostais.

Há muita contestação a suas propostas teóricas e a seus trabalhos aqui na Universidade Columbia?
Não sei, não tenho conhecimento de pessoas que me contestem. Bem, mas eu não me preocupo nada com as críticas, e sim em fazer o trabalho que quero fazer. Estamos perseguindo projetos intelectuais, a vida de Malcolm, e um projeto que chamamos de African and criminal justice. Se você procurar em nosso website “raça, crime e justiça”, verá que temos um curso para jovens negros e hispânicos em Rikers Island, a maior prisão dos EUA, logo ali no East River. Usamos o hip hop e a poesia falada para fazer com que os jovens de 15, 16 e 17 anos escrevam sobre suas experiências na prisão e sobre o papel do complexo industrial carcerário na destruição de suas vidas e de suas famílias. Promovemos a organização e o treinamento de eleitores [ele se refere ao Voter education, treinamento de eleitores, com informações sobre funcionamento do processo eleitoral, contagem de votos, uso de cédulas, formas de se registrar para obter o equivalente ao título de eleitor nos EUA etc.]. Dou aulas regularmente na prisão de Sing Sing, também em Nova York. Não me preocupo em nada com o que as pessoas não gostam no meu trabalho.

O senhor se define teoricamente como marxista. Imagino que ser um professor negro e marxista na Universidade Columbia, estudando uma personalidade tão controversa quanto Malcolm X, esteja longe de ser uma posição confortável, não? 
Mas você deve se lembrar que, por muitos anos, Edward Said esteve aqui. E ele foi por muitos anos do conselho nacional da Organização para a Libertação da Palestina. Seu livro sobre orientalismo criou o campo de conhecimento que é chamado nos Estados Unidos de cultural studies. Muito antes, cem anos atrás, houve aqui na Columbia um professor como Joel Spingarn [professor de literatura comparada na Columbia de 1899 a 1911, judeu, ativista dos direitos civis e grande incentivador da publicação de escritores negros nos anos 20]. Portanto…

Qual o seu sentimento sobre o futuro dos negros aqui nos Estados Unidos? É possível chegar a uma situação de igualdade real, ao fim efetivo de todo comportamento racista, a uma democracia de verdade nesse sentido? Você acredita nisso? 
Penso que nossa situação é complicada aqui nos Estados Unidos em função daquilo que em meus textos chamo de racismo daltônico [color-blind racism]. Isso mostra que os sinais que costumavam significar branco e preto na era Jim Crow foram derrubados [Marable refere-se às leis Jim Crow, leis racistas que vigoraram de 1876 a 1965 nos estados do Sul e vizinhos, entre elas as que exigiam que as escolas públicas e a maioria dos locais públicos, inclusive trens e ônibus, tivessem instalações separadas para brancos e negros. Oficialmente elas foram revogadas pela Lei dos Direitos Civis de 1964]. Leis foram aprovadas determinando direito ao voto, acesso ao emprego sem discriminação de raça. Leis de ação afirmativa foram aprovadas (por breve período e agora estão sendo desmanteladas). No entanto, apesar das mudanças no regime político, a realidade da desigualdade racial continua a se ampliar para milhões de negros. Como isso é possível? Bem, sob aquilo que chamo racismo daltônico, há três instituições básicas que reforçam o processo de racialização: desemprego em massa, encarceramento em massa em prisões e perda em massa dos direitos eleitorais. Cada uma dessas coisas reforça as outras. No Harlem, as taxas reais de desemprego de homens negros adultos estão entre 40 e 50%, incluindo os subempregados, quero dizer, aqueles que buscam emprego em tempo integral, mas só encontram empregos de meio período. O desemprego em massa rouba os direitos dos prisioneiros: em 1980 havia meio milhão de americanos na prisão, hoje são 2,3 milhões. Mas isso subestima o número real. Se contados os que estão em cadeias, os que se encontram em condicional e os que estão em observação, o número é 6 milhões, metade deles negros e um quarto latinos, hispânicos. E para todos há a perda do direito eleitoral. Na eleição presidencial de 2000, na Flórida, 800 mil residentes não puderam votar porque foram condenados por um crime – 40% deles eram negros. George Bush foi eleito por menos de 550 votos. Oitocentos mil não puderam votar. Oitocentos mil! Eles são cidadãos do país, pagam impostos ao governo e não podem votar nunca mais. No estado do Mississippi, um terço de todos os homens negros perdeu o direito eleitoral, são privados do voto para sempre porque tiveram uma única condenação por crime. De modo que, se você violar a lei aos 18 anos de idade, cumprir sua pena e sair aos 21 anos, você ainda não vai poder votar quando tiver 70 anos. Isso é uma democracia? Como justificar isso? Portanto, com a perda do direito eleitoral e o encarceramento em massa, os pobres, os desempregados, as minorias raciais, negros, mulatos e hispânicos são expulsos das instituições políticas do país. Portanto, há uma profunda crise da democracia nos Estados Unidos, um governo crescentemente autoritário e repressivo, o uso da violência e da força extrema pelos aplicadores locais da lei. Há alguns dias [começo de dezembro de 2006], um carro com três jovens negros desarmados foi alvejado 50 vezes pela polícia. E eles estavam desarmados. Esse tipo de rotina de violência ocorre em cidades de todos os Estados Unidos.

E o que fazer para aumentar a participação dos negros no processo político? 
Já pensei e li muito sobre esse assunto. A questão mais crítica que devemos abordar é o esforço político para transformar essas leis eleitorais repressoras, para restaurar o direito ao voto de 6 milhões de americanos, quase todos pobres, da classe trabalhadora, negros ou mulatos, que foram arrancados de sua cidadania e de seus direitos eleitorais. Isso é cada vez mais importante.

Parece-lhe bom o voto compulsório, como no Brasil?  
Eu preferiria mudar o dia da eleição para sábado e domingo, num fim de semana, para que mais pessoas tivessem acesso. Não me oponho ao voto compulsório, mas, é claro, a classe dominante nos Estados Unidos ficaria horrorizada com uma coisa dessas. Eles não querem que as pessoas votem, querem que os ideólogos das oligarquias controlem o cenário político.

Então há que se trabalhar por décadas para se conseguir uma mudança… 
Sim. Mas acredito que muito da liderança terá que vir dos setores mais oprimidos. Acredito que terá que vir dos jovens, das mulheres, de muitas pes­soas pobres, dos prisioneiros. Isso é parte do motivo pelo qual faço um trabalho educacional dentro das prisões, porque, assim como Malcolm X, acredito que as visões da maior depressão irão oferecer aos indivíduos, mulheres e homens, a maior visão social.

Gostaria ainda de lhe perguntar de que forma seu projeto sobre Malcolm X, portanto, o trabalho de pesquisa acadêmica, pode influenciar a atividade política nesse sentido. Porque, acredito, seu projeto não é apenas de estudo, mas de um estudo voltado para a ação. Qual é o elo, enfim, entre seu projeto e sua visão política nesse caso?
Malcolm X dá corpo a uma política radical e independente e ao cultivo e desenvolvimento de uma liderança com a visão centrada no desafio do poder e das instituições brancas nos Estados Unidos. Em Living black History, eu documentei como e por que a visão de Malcolm era tão importante. E não simplesmente para visões históricas. Claro que eu gostaria de completar essa biografia dentro dos próximos anos e mudar para outro projeto, mas acredito que Malcolm X representa uma espécie de modelo. Não que eu esteja tentando sugerir que Malcolm era perfeito, bem longe disso. Ele cometeu erros, como todos os líderes políticos, mas podemos aprender muito com seu exemplo, sua coragem e visão social e com a vitalidade de sua visão. Com sua visão, podemos aprender muito sobre a capacidade de resistir a Abu Ghraib, a guerras no Iraque, aos exemplos do Katrina… os corpos negros mortos deixados flutuando no rio Mississippi… Aprendemos a analisar e a entender o verdadeiro significado do governo em ação, porque os negros foram as vítimas e simplesmente foram deixados para morrer, o mundo inteiro testemunhou isso, o mundo testemunhou o crime cometido pelo estado sob Bush.

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