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História

Entre Amadeus e o batuque

A política sutil de uma disputa musical dos tempos de dom João

JEAN BAPTISTE DEBRET, MARIMBA - REUNIÃO DE DOMINGO À TARDE,IEB/USP

Grupos de negros com instrumentos típicos da cultura africanaJEAN BAPTISTE DEBRET, MARIMBA - REUNIÃO DE DOMINGO À TARDE,IEB/USP

A história até parece o roteiro do filme Amadeus: um pobre músico genial de talento nato, o padre mulato José Maurício Nunes Garcia (1767-1821), sofre horrores nas mãos do seu arrogante e invejoso rival, o lusitano Marcos Portugal (1762-1830), compositor favorito de d. João VI, chegado ao Brasil em 1809 para ser seu mestre-de-capela, supostamente um criador medíocre e intrigante palaciano. No terceiro eixo desse “drama” estaria o compositor, regente e organista austríaco Sigismund Neukomm (1778-1858), “o mais brilhante aluno de Haydn”, músico a serviço de Charles Talleyrand (1754-1838), um dos articuladores do Congresso de Viena, para o qual Neukomm foi convidado a compor um réquiem apresentado em grande estilo diante de todas as cabeças coroadas da Europa. Dono de um currículo notável, o austríaco chegou ao Brasil em 1816 e passou uma temporada de cinco anos no Rio, onde deu aulas para dom Pedro e dona Leopoldina, escreveu sinfonias, missas, transcreveu modinhas para piano e voz, mas, admirador fervoroso do padre José Maurício, acabou vítima da ira de Marcos Portugal, deixando o país em 1821. Não faltou mesmo o Réquiem de Mozart como pano de fundo: em 1819, o padre e seu colega europeu se reuniram para a estreia da peça no Brasil, com Neukomm completando a obra inacabada de Amadeus.

“Essa visão da oposição entre o vilão luso, ligado à monarquia e a in­fluên­cias italianizantes, e o genial herói autodidata brasileiro causou distorções sobre a verdadeira natureza dos fatos. E a confusão só cresceu com a imagem romântica do mestre contemporâneo de Mozart, Neukomm, que teria vindo difundir a ‘grandiosa’ e ‘superior’ música germânica nos trópicos”, analisa o maestro e musicólogo Ricardo Bernardes. “Isso tudo foi bastante conveniente em momentos de autoafirmação nacional dos tempos republicanos (sendo usada por vezes até hoje), procurando validar a produção de José Maurício ligando àquela de Neukomm em uma antítese ao ‘decadente’ lusitano que tinha como modelos Marcos Portugal e, depois, Rossini.” Música como assunto de Estado” “A música, durante a permanência da família real no Brasil, foi parte de um processo maior, um dispositivo a mais nas relações de colonização. É possível pensar nas práticas musicais do período joanino a partir do ponto de vista de uma ‘construção do gosto’ e as diretrizes tomadas pelo monarca deram novo sentido à vida cultural do país, a propor mudanças e sugerir cruzamentos entre as diversas maneiras de interpretar e ouvir os sons do mundo, daquele que se modificava”, analisa o historiador Maurício Monteiro, autor de A cons­trução do gosto: música e sociedade na cor­te do Rio de Janeiro 1808-1821, doutoramento agora transformado em li­vro pela Ateliê Editorial.

JOHANN MORITZ RUGENDAS, FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO, IEB/USP

As festas dos séculos XVIII e XIX: celebrações religiosas conviviam com miscigenação das ruasJOHANN MORITZ RUGENDAS, FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO, IEB/USP

Conforto
“Mesmo que o objetivo fosse a melhoria das condições materiais que permitisse à família real e aos nobres portugueses um pouco de conforto durante sua permanência no Brasil, as iniciativas de dom João VI lançaram as bases de um processo civilizatório que culminou com a nossa independência política em 1822”, completa André Cardoso, autor de A música na corte de dom João VI, lançamento da Martins Editora. “A vinda de Neukomm e Marcos Portugal representou a continuidade de uma estilística europeia. José Maurício, o representante colonial, foi o vértice para onde convergiram as estilísticas ensaiadas pelos dois europeus. Nessa miscigenação cultural os músicos puderam contribuir para a construção de um gosto que se moldava, dentro e fora da corte, como uma das premissas para o processo de implementação de uma consciência de civilidade e nação”, observa Monteiro. “Há então nessa ideia de nação não a consciência que move o espírito da liberdade, mas um ideal de superioridade nos moldes dessa pre­tendida civilização.” Tratava-se de uma “guerra sonora” que se ligava ao projeto maior que, catalisado pela invasão napoleônica, trouxe a corte ao Brasil: a recriação no Novo Mundo de um “império florescente”, como nota a historiadora Kirsten Schultz em seu Versalhes tropical. “Para os portugueses a transferência da corte era uma chance de restaurar a integridade moral e política da nação portuguesa, vista então como decadente e corrompida, fazendo a monarquia portuguesa mais formidável do que nunca.” Daí, continua a autora, a criação, já em 1808, de uma Capela Real, para a produção e manutenção da música religiosa, pelo príncipe regente, bem ao lado de seu palácio, uma maneira de “reafirmar uma velha tradição do patronato histórico da coroa à música sacra” e prover a monarquia com uma visão de progresso, ordem e civilização, necessários para se alcançar o novo status lusitano.

JACOB HOEFNAGEL (1609)/CLAES JANSZ VISSCHER (1640)/WIKIMEDIA COMMONSMilagre
Não sem razão, Neukomm, ao chegar ao Brasil integrando uma comitiva do duque de Luxemburgo, cujo objetivo era reatar re­lações diplomáticas entre França e Portugal, foi recebido pelo conde da Barca, ex-embaixador português entre os franceses, com um convite para ficar uma temporada no país e presenciar o “milagre”: “Nós temos a esperança de fundar um Novo Império neste Novo Mundo e será interessante para você ser testemunha desse período de desenvolvimento”. Embora acostumado aos ambientes políticos europeus, o austríaco não imaginava que sua música ia de encontro ao que dom João VI preconizava como a ideologia por trás da trilha sonora de seu Novo Império. “Neukomm era um caso isolado de tradição instrumental num meio musical que valorizava, sobretudo, a música sacra e sua relação com a ópera. Antes e depois dele, a pouca música instrumental consistia de aberturas de óperas ou para cerimônias festivas, em especial religiosas. Música originalmente composta no Brasil era de igreja e de teatro”, lembra Bernardes. A Europa do mesmo século vivia seu momento de criação e proliferação de sinfonias, das formas musicais puramente instrumentais. “Se a forma sinfônica era, naquele momento da sociedade europeia, mais importante do que a missa, na organização colonial e católica do Brasil ainda predominavam as práticas religiosas”, observa Monteiro. Dessa forma, uma disputa entre músicos, aparentemente inócua e estética, pode ser reveladora de ideologias políticas: a necessidade de construir um império florescente, sem os vícios da nação portuguesa do tempo, exigia o retorno aos “bons tempos”. Ou seja, ao tempo de dona Maria I. “Foi no tempo da rainha que houve um aumento nas práticas operísticas e uma contumácia nos barroquismos religiosos. A representação da ópera era, antes de tudo, uma demonstração da pompa e do poder que cercam os reis. A ópera, com seus heróis, era a personificação do próprio rei e conferia a ele, simultanea­mente, poder e glória, benevolência e justiça”, nota Monteiro. Isso nos ajuda a compreender, entre outras coisas, o empenho de dom João VI em trazer para o Brasil, a peso de ouro, castratti, figuras em decadência na Europa moderna. Para “recriar” o novo era preciso restaurar, à altura, o velho.

JEAN BAPTISTE DEBRET, ORICONGO - ORFEU AFRICANO,IEB/USP

O Berimbau foi muito utilizado no Rio de Janeiro joaninoJEAN BAPTISTE DEBRET, ORICONGO - ORFEU AFRICANO,IEB/USP

Música era, nesse ponto, um assunto sério para dom João. “O rei tem uma sofreguidão na música que se canta na Capela, que até não quer emprestar para outras festas que se fazem por fora, não indo ele assistir. Quando soube que haviam cantado em Lisboa o Réquiem escrito por Marcos para as exéquias da rainha, o rei foi pelos ares, prometendo mandar para Angola quem repetisse isso”, escreveu, em 1819, o músico da Capela Imperial. Igualmente, preocupou-se em “limpar” a música dos mestiços que, até sua chegada, dominavam o cenário musical. “Havia no Brasil uma quase total inexistência da figura do mecenas, seja a Igreja, seja o nobre. Aqui predominou o fato profissional corporativo, as irmandades, as congregações de leigos, os profissionais liberais que se reuniam em torno de determinada devoção”, explica Cardoso. “Predominava o pensamento de que a atividade musical, por ser um trabalho ‘braçal’, uma atividade ‘mecânica’, não era função digna de brancos. Não se pensava no músico como artista. Até a vinda de dom João VI, cerca de 90% dos músicos eram mestiços e estavam ligados às irmandades, sob a égide de seu santo protetor, como o padre José Maurício”, completa Monteiro. No período joanino, a situação muda radicalmente: 72,6% dos músicos eram de origem europeia e, no plano social, houve uma predominância paulatina dos músicos brancos sobre os músicos mestiços. Mas a realidade nacional era implacável com o projeto ideal do império renovado nos trópicos.

“Imagino os cantores castrados saindo de uma bela execução de uma ópera ou de uma missa de Neukomm ou Marcos Portugal na Câmara e Capela reais e depois, ao colocar os pés na rua Direita, serem absorvidos pelos sons diversos de lundus e batuques que eram o universo de José Maurício. Aqui Apolo teve de sucumbir a Dionísio: se o primeiro foi soberano quando se fazia música europeia, o ambiente era do segundo”, diverte-se Monteiro. O mesmo se dava no confronto entre estéticas. O meio musical carioca era difícil e dependia muito do gosto pessoal do rei sobre a música adequada ao Novo Império que, para ele, como no tempo de dona Maria I, ligava a música sacra com a música de teatro, distante do paradigma romântico da superioridade da música “pura” dos mestres Haydn e Mozart. “Era uma sutil limiaridade entre o sacro e o profano muitas vezes pouco compreensível às audiências modernas, que esperam mais ‘solenidade’ em obras sacras. Há nelas grande teatralidade e o uso de elementos profanos. Era uma música brilhante e operística que foi combatida pela geração romântica como concessão aos modismos e gosto frívolo de uma época submissa à ópera italiana”, observa Bernardes. “É preciso entender que, com a chegada da família real, houve adaptações de estilo a uma linguagem teatral, ao gosto do monarca, num Brasil colonial em que a celebração litúrgica era o grande evento social.”

Gosto
Daí, portanto, a mudança de estilo observada nas obras de José Maurício com a chegada do rei. “A mudança talvez resida em muito no gosto musical de dom João VI, que, não satisfeito com o repertório da antiga Sé, manda vir músicos da Capela Real de Lisboa e reorganiza o arquivo com obras originais. Essas obras, que deveriam atender ao estilo que era praticado em Lisboa, haviam avançado para a linguagem operística de Marcos Portugal. Esse era o padrão musical para dom João VI e os músicos portugueses, que o celebravam como compositor de estilo moderno”, avalia Bernardes. Longe de apenas “vítima” do “terrível” Marcos Portugal (um grande compositor, infelizmente, ainda hoje jogado ao limbo por causa da disputa em que era “antipatriótico não falar mal dele”), José Maurício pegou para si o melhor dos dois mundos, de Portugal e de Neukomm, continuando a se agarrar, nota o pesquisador, ao fundamento da ópera italiana e da música vocal: a beleza do canto que deveria arrebatar o ouvinte, sem medo de ligar teatro e igreja. Aquela, afinal, era disputa de “gente graúda”. “Mando-vos uma missa cantada de Neukomm que, como súdito austríaco e discípulo de Haydn, merecerá suas graças. O meu marido é compositor, também, e faz-vos presente de uma Sinfonia e um Te Deum, compostos por ele. Na verdade são um pouco teatrais, o que é por culpa do seu professor (Marcos Portugal), mas ele os compôs sem o auxílio de ninguém”, escreveu, em 1821, Leopoldina, mulher do futuro dom Pedro I, ao seu pai, o imperador austríaco Francisco I. Era a tradição germânica em confronto com o italianismo. Mas de pouco adiantava o descontentamento da consorte, pois a música necessária era a dos tempos do grande Portugal. “A época da transmigração da corte para o Brasil foi também o período de transferência dos comportamentos da nobreza cortesã, das funções e linguagens. No Brasil, guardadas as proporções, repetiram-se essas práticas”, afirma Monteiro. E quanto a Neukomm? Foi no Brasil que criou mais da metade de sua produção sinfônica e camerística; aliás, atribui-se a ele o mérito de ter trazido esse gênero para o país, que praticava com frequência na casa do embaixador da Rússia, Langsdorff. Igualmente, nota Bernardes, é uma virtude sua ter composto a quase totalidade das obras puramente instrumentais criadas no Brasil colonial.

Mozart
Apesar disso, não há registros de execuções de suas sinfonias e muito poucas referências à apresentação de suas missas, cujo estilo era muito diverso do “sacro-operístico” em voga. Para a festa da Irmandade de Santa Cecília, em 1819, ele ajudou José Maurício a executar o Réquiem de Mozart, para o qual escreveu um Libera me domine, que concluía a obra inacabada. Em matéria escrita no Allgemeine Musikalische Zeitung, em 1820, Neukomm elogiou efusivamente o talento do padre: “O concerto não deixou nada a desejar. Todos os talentos se conjugaram para receber, com dignidade, o estrangeiro Mozart neste novo mundo”. Ele não teve o mesmo sucesso. “O discípulo preferido de Haydn, Neukomm, achava-se então como diretor da Capela do Paço. Para suas missas, porém, compostas inteiramente no estilo dos mais célebres mestres alemães, ainda não estava de todo madura a cultura musical do povo”, observaram os naturalistas Spix e Martius em Viagem pelo Brasil. O austríaco partiu, então, para novos desafios. “Neukomm criou a primeira obra de música séria a empregar no Brasil (e, talvez, no mundo) temas da música popular do país. É assim que nasce de sua pena um capricho para piano basea­do num lundu brasileiro, uma dança de escravos particularmente sensual e, por isso, proibida pelas autoridades. Ele também transcreveu e harmonizou 20 modinhas de Joaquim Manoel da Câmara, um poeta-músico negro que nunca estudou música. É graças a Neukomm que podemos ter acesso à sua música”, conta a musicóloga Luciane Beduschi, que acaba de defender seu doutoramento sobre o compositor na Sorbonne, de cuja banca faz parte a pesquisadora brasileira Helena Iank.

Ela também é responsável pela recuperação de Cânone enigmático a oito vozes escrito por Neukomm pouco antes de partir do Brasil e dedicado ao Rio de Janeiro. “O enigma do Cânone ilustra um documento pessoal em que o músico revela o estado de espírito em que ele se encontrava quando deixou o país em 1821.” Neukomm volta para a Europa apenas dez dias após a partida de dom João VI, segundo a pesquisadora, temeroso do clima de tensão instalado no país. “O texto do Cânone é um diálogo sobre música sacra entre dois rivais, no qual Neukomm é um dos personagens e os outros simbolizam os que se opunham à sua escola. No final, ele afirma que, se para ser reconhecido precisasse se adaptar a um estilo que repudiava, preferia deixar o Brasil”, observa Luciane. “O que é que soa tão alegremente no templo, como se hoje fosse a festa de Baco? Com estes tão alegres encantos para os ouvidos a gente resiste bem horas e horas. Se vós cantais de maneira tão alegre a morte, como soa então o vosso canto de júbilo?”, pergunta Neukomm na peça. “O que quer esse imbecil? Nós, que cantamos tão alegremente, oh, isto faz com que sejamos venerados pelos nobres e pelos pobres. E nos dá a glória e o dinheiro e todos os que resistem à nossa maneira empobrecem e apodrecem por aqui”, replicam os rivais. “Então eu pego a minha mala e vou-me embora”, desabafa o austríaco. O Cânone é construído todo sobre a letra C.a.ca.p.r.i.pri capricornia, carioca, corcovado: vado, addio”. “Não seria demasiado imaginar que a palavra ‘C.a.ca.’ com que ele inicia o Cânone fosse mais do que uma simples repetição da primeira sílaba de capricornia”, nota a pesquisadora.

Um mau humor justo, mas uma mágoa desnecessária, pois, se seu projeto “germânico” não vingou, tampouco o sonho joanino de retomada de um império lusitano nos trópicos, ao som das velhas e boas “óperas sacras e profanas” dos tempos de dom João V e dona Maria I, foi bem-sucedido. “O nosso mélange musical foi também uma demonstração sonora de nossa diversidade cultural, onde violinos europeus soavam junto aos tambores afro-americanos e aos chocalhos ameríndios”, nota Monteiro. Amadeus misturou-se ao batuque.

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