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Especial

Darwinismo cerebral

Wikimedia commons

Acredita-se que a complexidade do cérebro humano, com milhares de tipos de neurônios diferentes, tenha permitido o surgimento de sofisticados repertórios comportamentais, como a linguagem, uso de ferramentas, percepção do “eu”, pensamento simbólico, aprendizado cultural e consciência. Dessa complexidade emergiram obras de extraordinário conteúdo tecnológico e artístico numa, relativamente curta, história cultural de nossa espécie. Isso parece indicar que a complexidade cerebral tem um propósito criativo, ao contrário de outros sistemas amplamente mais complexos porém brutos, como as galáxias e os milhares de estrelas que as compõem. Entender como a complexidade neuronal é moldada durante o desenvolvimento é mergulhar em questões fundamentais da origem da nossa espécie.

A formação do cérebro humano não é um processo otimizado. Pelo contrário, a maioria das células geradas será descartada e apenas uma pequena fração será usada. O mecanismo por trás dessa seleção é obscuro e existem evidências sugerindo que fatores extrínsecos e intrínsecos contribuam para a sobrevivência ou morte celular. Apenas as células precursoras com as propriedades corretas, no momento e local ideais, irão florescer e amadurecer em neurônios funcionais, contribuindo para a formação das redes nervosas. Nessa competição, forças de variação e seleção atuam para esculpir cada cérebro humano, cada rede neural, neurônio por neurônio, gerando a verdadeira individualidade na forma como cada um de nós recebe, processa e interage com o mundo exterior.

Vale lembrar que a seleção natural precisa de variação para gerar os diferentes tipos neuronais no cérebro. Inicialmente, cogitou-se que a variação estaria contida nos genes codificantes para proteínas. No entanto, com o sequenciamento do genoma humano, ficou claro que a quantidade de genes não seria suficiente para justificar tamanha complexidade neuronal. Com menos de 2% de genes codificantes para proteínas no genoma, fica difícil gerar informação suficiente para os milhares de tipos celulares contidos no cérebro humano. Mesmo considerando eventos moleculares como o processamento alternativo do RNA ou modificações pós-traducionais, não existe variação suficiente. A variação deve residir em outro lugar.

A falta de uma função óbvia para os outros 98% do genoma inspirou o conceito de DNA-lixo, ilustrando a ideia de que essas sequências seriam resquícios evolutivos, acumulados ao longo de milhares de anos no genoma. Como uma garagem cheia de tranqueira, o genoma parece lidar muito bem com o excesso de sequências, mas parece difícil compreender por que não se livra dele, economizando energia celular. Parte desse DNA-lixo é composta de elementos transponíveis, ou genes-saltadores, capazes de produzir cópias de si próprios, inserindo novas cópias no genoma e, eventualmente, alterando a expressão de genes próximos. A atividade desses elementos foi flagrada durante a evolução e esses parasitas genômicos ficaram conhecidos como genes-egoístas, com a única finalidade de se manterem vivos para as próximas gerações através da replicação em células germinativas dos indivíduos. A replicação em células não germinativas, somáticas, que não formarão um novo indivíduo, não seria uma estratégia de sobrevivência, pelo menos até agora…

Em 2003, durante meu período de pós-doutoramento no Instituto Salk de pesquisas na Califórnia, fizemos uma curiosa observação. Estudando como os genes eram re­gulados durante a especialização neuronal a partir de células-tronco, notamos que havia uma ativação dos elementos transponíveis tão logo a célula optasse pela diferenciação neuronal. Ao induzir as células-tronco a se diferenciarem em outros tipos celulares nada era detectado, indicando que o fenômeno era específico dos neurônios. O achado confrontava tudo que sabíamos sobre o comportamento desses elementos e sua “vontade” de passar para as futuras gerações. Afinal, o que estariam fazendo ao proliferar no cérebro?

Dois anos depois, após lutar contra a resistência natural do paradigma vigente, conseguimos demonstrar que os neurônios possuíam genomas únicos. Ao contrário do atraente conceito de que todas as células do corpo possuem o mesmo genoma, e que as diferenças seriam meras consequências da regulação gênica, havíamos juntado evidências fortes o suficiente para demonstrar que isso não era o caso no cérebro. Cada neurônio parecia ser único, cada um apresentava novas inserções no genoma, impactando genes próximos. Essa atividade amplificaria o efeito da regulação gênica, gerando uma enorme variação celular e aumentando o repertório de tipos celulares capazes de serem formados por um dado grupo de genes. Esse mecanismo de variação e flexibilidade parece contribuir para a originalidade de cada cérebro, explicando por que mesmo gêmeos geneticamente idênticos apresentam personalidades características.

Filosoficamente, os dados estariam apontando para uma parcela de “acaso” na formação de cada personalidade. Novos dados do nosso laboratório mostram que a atividade dos elementos transponíveis está alterada no cérebro autista ou em síndromes com o espectro autista. A visão de mundo é diferente em pessoas portadoras de autismo, sugerindo uma alteração nas redes neuronais. Ora, o aumento da variabilidade neuronal seria capaz de produzir indivíduos fora da curva normal, com qualidades diferentes. Organismos fora da curva teriam mais chances de se adaptar a novos ambientes ou de reagir contra mudanças drásticas no ambiente. Além disso, existiriam eventuais indivíduos prodígios na população, com uma capacidade cognitiva superior. E talvez sejam indivíduos assim que aumentem a capacidade criativa da espécie humana, favorecendo a dominação de novos territórios, por exemplo. Nesse sentido, os elementos transponíveis continuariam sendo genes – egoístas, pois ao manipular a mente humana acabam por aumentar as chances reprodutivas da espécie.

Curiosamente, durante a evolução dos primatas, observa-se uma impressionante correlação entre a adaptação humana e o surgimento de novas sequências transponíveis. Evidências de alterações climáticas globais sugerem que ambientes mais frios, secos e com maiores variações devem ter ocorrido cerca de 3 milhões de anos atrás. As alterações bruscas acabaram por diminuir o suprimento de comida e água, pressionando fortemente a adaptação de nossos ancestrais a novos ambientes. Interessantemente, novas famílias de elementos transponíveis no genoma surgem na mesma época em que os humanos adquirem o bipedalismo, apresentam um aumento da massa cerebral e apresentam as primeiras evidências de uso de ferramentas, consciência ou motivação artística.

Por outro lado, o fenômeno de inserções somáticas no cérebro pode não passar de um resquício evolutivo. Tanto o cérebro como o sistema reprodutivo passaram por grandes modificações durante a evolução. A expressão genética desses dois órgãos é relativamente parecida e os dois possuem diversas vias de sinalização em comum. Nesse contexto não parece novidade encontrar fenômenos moleculares presentes somente nesses órgãos. Se esse for realmente o caso, a atividade dos elementos transponíveis no sistema nervoso é descartável e não possui contribuição alguma para as redes neuronais, cognição ou comportamento. É plausível, mas fica faltando responder por que o genoma ficaria carregando essa tranqueira toda a troco de nada.

Qualquer que seja a função do mosaicismo genético dos neurônios, é preciso cautela no desenho dos experimentos que permitirão investigar o fenômeno. Atualmente é impossível usar técnicas clássicas de nocaute genético para eliminar os genes saltadores do genoma. São vários deles que estão ativos no genoma. Além disso, estão espalhados pelos cromossomos. Vai ser preciso bastante criatividade para buscar situações experimentais onde a hipótese possa ser testada. Qualquer que seja o resultado encontrado, só vai ser real se fizer sentido sob a ótica evolucionária.

Alysson Renato Muotri é neurocientista, professor da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia, San Diego (UCSD).

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