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Biologia celular

Ação na surdina

Pequenas proteínas, antes consideradas resíduos, ajudam a regular as células

LORE KUTSCHERA/WIKIMEDIARaiz de maconha (Cannabis sativa)LORE KUTSCHERA/WIKIMEDIA

Duas variedades de uma pequena proteína chamada hemopressina podem estimular a fome e as sensações de prazer do mesmo modo que os componentes de plantas entorpecentes como a maconha, enquanto outra variedade de hemopressina tem o efeito oposto. Pesquisas realizadas em São Paulo e em Nova York mostraram que essas microproteínas, conhecidas como peptídios, podem fazer muito mais, são bastante variadas e, diferentemente do que até mesmo os especialistas pensavam, não são resíduos sem função no interior dos trilhões de células do organismo.

Em apenas um tipo de célula extraída de rim humano as equipes dos farmacologistas Emer Ferro na Universidade de São Paulo (USP), Lloyd Fricker na Escola de Medicina Albert Einstein e Lakshmi Devi na Escola de Medicina Monte Sinai, ambas em Nova York, identificaram e sequenciaram 116 microproteínas que ajudam a regular o funcionamento celular e facilitam a interação de proteínas – o grupo de hemopressinas, produzidas nos neurônios, é por enquanto o mais intensamente estudado.

“Além de regularem o funcionamento interno da célula, esses peptídios podem modular estímulos extracelulares”, diz Emer, com base em estudos publicados no ano passado e neste ano na revista Journal of Biological Chemistry. Como desde 1983 havia apenas relatos isolados de peptídios intracelulares com funções biológicas, essa é possivelmente a primeira vez que essas moléculas aparecem em variedade tão grande e são analisadas em conjunto. Em vista do que podem fazer – e aparentemente devem fazer muito mais em outras células –, essas moléculas indicam que o funcionamento das células e do organismo não depende só de moléculas gigantes como o DNA, o RNA e as proteínas, mas também dessa multidão de intermediários antes anônimos, quase 50 vezes menores que uma proteína como a hemoglobina, que transporta oxigênio às células.

Por que ninguém antes deu atenção a esses peptídios, se são muitos e abundantes no interior da célula? Por duas razões, segundo o pesquisador da USP. A primeira é que os espectrômetros de massa, os equipamentos que identificam os peptídios, são relativamente recentes, além de caros. A segunda é que ninguém os levava a sério. Emer conta que ele próprio, em 2006, teve de convencer Fricker de que as cerca de mil moléculas que ele, Fricker, tinha extraído do cérebro de ratos não eram os chamados artefatos – uma palavra elegante usada no meio científico para designar qualquer tipo de erro – nem pedaços de outras moléculas. Produzidas continuamente no interior das células como resultado da fragmentação de proteínas, elas eram, sim, moléculas completas que ajudavam outras – e o organismo – a funcionar.

Emer entrou nessa linha de pesquisa em 1989 ao ver que enzimas chamadas oligopeptidases concentravam-se no interior das células, mas os peptídios sobre os quais agiam estavam no lado de fora. Nessa época já era conhecido um dos mecanismos de limpeza das células, o proteossomo, que continuamente tritura proteínas com defeitos ou velhas demais para funcionar direito. Uma proteína com 700 aminoácidos, os blocos que formam essas moléculas, pode ser desfeita em pelo menos 35 partes. Emer não se conformava com a possibilidade de 34 dessas partes serem matéria-prima inerte, à espera de outras proteínas de que pudessem participar, e só uma das partes ter uma função e aderir à superfície das células, evitando que o organismo identifique a proteína daquele tipo específico como algo que deva ser destruído. “Não fazia sentido”, pensou. Para ele, a célula não desperdiçaria peptídios; só não tinha ainda como provar o que estava pensando.

Em 1993 Emer assistiu a um seminário na Escola de Medicina Monte Sinai em que um especialista em reconhecimento de proteínas, Stephen Burley, apresentava uma proteína, a Tata box binding protein, que abraçava o DNA em pontos específicos, como se fosse uma sela sobre um cavalo, regulando outras proteínas que interagem com o DNA. Para ele, esse tipo de encaixe mostrou não só mais um refinamento do funcionamento do DNA, mas também que moléculas pequenas como os peptídios poderiam apresentar uma mobilidade muito maior que as proteínas ou que o próprio DNA e ajudar a regular o funcionamento celular.

Finalmente, as respostas
Em 2003, dez anos depois, Vanessa Rioli, bióloga da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que participava da equipe de Emer, identificou um desses peptídios, a hemopressina (ver Pesquisa FAPESP nº 84, de fevereiro de 2003). De imediato eles viram que a hemopressina atuava sobre proteínas que controlavam a pressão arterial e, mais tarde, com a ajuda de outra bióloga, Andrea Heimann (ver Pesquisa FAPESP nº143, de janeiro de 2008) sobre as proteínas que regulavam a fome e o prazer. “A hemopressina era uma prova de que peptídios produzidos no interior da célula não estavam à toa dentro das células”, celebra Emer.

Na época seu grupo já havia encontrado cerca de 30 peptídios do mesmo porte que a hemopressina, com 5 a 17 aminoácidos, e funções que ainda tinham de ser demonstradas. Dúvidas antigas – como a que havia surgido 20 anos antes, sobre as oligopeptidases, uma enzima que parecia distante do suposto alvo – ganhavam respostas. “Tudo começou a se encaixar”, diz ele. “A enzima e os peptídios sobre os quais agia estão no interior da célula, não mais separados, um dentro e outro fora.”

Estudos mais recentes mostraram que a hemopressina não é uma, mas pelo menos quatro e com funções até mesmo opostas – duas dessas variações podem aumentar e uma reduzir a atividade das proteínas sobre as quais atua o princípio ativo da maconha (as funções da quarta forma de hemopressina ainda não foram estudadas). Uma dúvida sobre essa molécula que persistiu durante anos: como a hemopressina pode ser gerada em neurônios a partir de fragmentos de outra molécula, a hemoglobina, produzida nas células vermelhas do sangue? A resposta chegou este ano, por meio de um estudo feito na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla) mostrando que neurônios poderiam fabricar as cadeias alfa e beta, dois dos blocos que formam a hemoglobina. Assim, nos neurônios esses blocos formariam a hemopressina e nas células do sangue, a hemoglobina.

Os peptídios intracelulares têm tido boa acolhida. Desde o ano passado, quando começaram a sair os artigos que os descreviam, Emer apresentou-­-os aos colegas do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, onde trabalha, e a outros pesquisadores em congressos na Holanda, no Japão e em Israel. Neste mês de maio ele vai falar em um seminário nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Estados Unidos, ao lado de Fricker e Lakshmi, os coordenadores dos outros grupos com quem investiga os peptídios intracelulares. O título da apresentação de Fricker – Non-classical bioactive peptides and microproteins: are they the next big small thing? (Microproteínas e peptídios bioativos não clássicos: são eles a próxima pequena grande coisa?) – sugere que essas pequenas moléculas ainda darão muito o que falar.

O projeto
Biologia molecular celular de oligopeptidases (nº 04/04933-2); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Emer Ferro – ICB/USP; Investimento US$ 271.000,00 e R$ 270.000,00 (FAPESP)

Artigos científicos
BERTI, D. A. et al. Analysis of intracellular substrates and products of Thimet oligopeptidase (EC 3.4.24.15) in human embryonic kidney 293 cellsJournal of Biological Chemistry. 12 mar. 2009 (on-line).
CUNHA, F. M. et al. Intracellular peptides as natural regulators of cell signalingJournal of Biological Chemistry. 2008, 283 (36), 24.448–59.
GOMES, I. et al. Novel endogenous peptide agonists of cannabinoid receptorsFASEB Journal. 2 abr. 2009 (on-line).

 

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