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Diplomacia

A permanência do assento permanente

Os 90 anos da atuação do Brasil na Liga das Nações ajudam a refletir sobre a demanda atual do país pela reforma da ONU

REPRODUÇÃO: WWW.GUTENBERG.ORGPara muitos, parece o samba de uma nota só. Há poucos dias, o presidente Lula, em visita à China, voltou a defender a reforma da ONU e a democratização de seu Conselho de Segurança, o que daria chance ao Brasil de obter um assento permanente no fórum que, em 1945, era estruturado com cinco membros permanentes e seis não permanentes, composição que, em 1965, alterou-se para a forma atual com dez membros não permanentes e cinco permanentes: os Estados Unidos, a França, o Reino Unido, a Rússia e a República Popular da China (que, aliás, é contra qualquer reforma para evitar a entrada do Japão). “A ONU debate essa reforma há 15 anos e a estrutura da instituição não evoluiu em seis décadas e não é mais adaptada aos desafios do mundo de hoje. Isso é um obstáculo sério para o mundo multilateral que desejamos”, afirmou o presidente, que, após o início da crise financeira mundial, recebeu o apoio de países como Inglaterra e França em suas aspirações.

“O que está em jogo é a inserção internacional do país. Em nossa pesquisa recente junto à comunidade de política externa vimos que, de 2001 até 2008, acentuou-se a aspiração das elites brasileiras de fazer do Brasil um ator com voz na política mundial: essa convicção subiu de 74%, em 2001, para 97%, em 2008”, afirma o cientista político Amaury de Souza, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp) e coordenador da pesquisa A agenda internacional do Brasila política externa brasileira de FHC a Lula, que chega este mês às livrarias (Campus, 176 páginas, R$ 49).

“Essa reforma da ONU e a questão do Conselho de Segurança estão em pauta em nossa política externa desde o governo FHC, mas no governo Lula o Itamaraty formou a aliança com os paí­ses do G-4, que têm a mesma intenção. Esse empenho renovado, elogiado por alguns, não tem a aprovação de boa parte dos entrevistados, para os quais, embora a reforma seja desejável, na prática ela se defronta com vários obstáculos e haveria demandas mais importantes. Não se contesta a validade do objetivo, mas o grau de importância que vem sendo dado a ele”, observa Souza.

Segundo dados da pesquisa, 58% consideram a questão importante, enquanto 42% têm opinião contrária. “O apoio ao pleito brasileiro vem caindo. Em 2001 era de 76% e agora diminuiu para 54%. É preciso reconhecer, quando falamos nas prioridades ou no conteúdo dos temas de política externa, que aumentaram as divergências entre o governo e setores organizados da sociedade.” A pesquisa igualmente revelou que a opinião pública tem baixos níveis de interesse e de informação sobre questões internacionais e tende a reagir às suas oscilações de forma emocional, desinteresse que se repete no Congresso Nacional. “Há uma interação entre os líderes e o público na formação da política externa, especialmente o recurso a questões externas usadas para angariar apoio no cenário doméstico. Daí a ênfase crescente na proximidade entre as agendas externa e interna”, analisa Souza.

REPRODUÇÃO: WWW.GUTENBERG.ORGConferência de Paz de Paris: Epitácio Pessoa ganhou pontos ao ficar amigo de WilsonREPRODUÇÃO: WWW.GUTENBERG.ORG

Segundo o pesquisador, o governo Lula tem se valido muito da cobertura da mídia para reforçar na opinião pública as escolhas da chancelaria. “Essa abordagem permite que o governo recorra a posições mais extremadas na política externa para contrabalançar medidas mais ortodoxas no plano interno.” O procedimento não é inédito. “O que estes estudos mostram é que a aspiração de tornar o país um ator relevante no cenário internacional é parte da própria identidade nacional, tal como construída pelas elites brasileiras, a partir de elementos que dizem respeito à ‘ideia de um país de dimensões continentais empenhado em consolidar sua posição de liderança’”, avalia a cientista política Maria Regina Soares Lima, da PUC-Rio e professora adjunta do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

“O voluntarismo brasileiro por si só não leva a nada. O tema percorre a história brasileira desde a Liga das Nações”, lembra a pesquisadora. “A primeira manifestação do país em buscar o reconhecimento pelas grandes potências e seu direito de participação em pé de igualdade se deu justamente na constituição da Liga, há exatos 90 anos. Ainda que no final tenha prevalecido o princípio oligárquico da exclusividade, o Brasil se esforçou para obter um assento permanente na organização”, continua. Curiosamente, essa primeira tentativa de ganhar espaço na comunidade internacional foi igualmente invocada pelo chanceler Celso Amorim para novamente justificar a pretensão atual a um assento permanente, dessa vez no Conselho de Segurança da ONU, organização que sucedeu a Liga das Nações. “As grandes mudanças só acontecem nos momentos de crise. Foi preciso a Primeira Guerra Mundial para a criação da Liga das Nações e a Segunda Guerra para se criar a ONU. Graças a Deus, esperemos que não seja preciso uma terceira guerra, mas há uma crise profunda que exige uma mudança nas estruturas decisórias do mundo.”

O Brasil foi o único país da América do Sul a participar da Primeira Guerra Mundial e com isso garantiu sua presença na Conferência de Paz de Paris (que gerou o Tratado de Versalhes) e o convite para participar da comissão de dez membros que redigiu o Pacto da Liga das Nações, à qual aderiu. Com apoio dos EUA, em especial do presidente Wilson, ganhou a chance de ser, dentre os países de “interesses limitados” presentes na conferência, um dos quatro membros temporários do Conselho da Liga. “Isso foi interpretado pelo governo brasileiro como uma grande vitória, sinal de que o país era reconhecido como um parceiro das grandes potências no gerenciamento da nova ordem mundial do pós-guerra”, explica Eugênio Vargas Garcia, professor titular do Instituto Rio Branco e autor de O Brasil e a Liga das Nações.

REPRODUÇÃO DO LIVRO CARICATURISTAS BRASILEIROS, DE PEDRO CORRÊA DO LAGO, EDITORA SEXTANTE ARTES“Quando se qualificou para tomar parte da Conferência de Paz de Paris e ao tomar um assento, ainda que rotativo, no Conselho da Liga das Nações, o Brasil dava à sua política externa uma projeção transatlântica, rompendo os limites da região americana”, analisa Letícia Pinheiro, pesquisadora e professora do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. “Esse episódio marca uma das primeiras manifestações de um traço distintivo da nossa política internacional: a percepção das elites sobre um suposto direito de reconhecimento pela comunidade internacional do diferencial do país na hierarquia mundial.” Teria sido em razão dessa percepção, continua Letícia, que o Brasil se empenhou obsessivamente para assegurar um assento permanente na Liga.

“Quando os EUA deixaram a Liga em 1920 porque o Senado americano não quis ratificar o Tratado de Versalhes, o Brasil se tornou o único país americano no Conselho e assumiu implicitamente a condição de porta-voz do continente. O governo de Epitácio Pessoa exultava com o status alcançado pelo país, na crença de que estava influindo diretamente nas grandes questões internacionais”, explica Garcia. O que era esperança virou, a partir de 1923, objetivo diplomático fundamental no governo Artur Bernardes. “O Brasil quer tanto esse lugar na Liga porque, provavelmente, não tem o menor conhecimento dos problemas europeus atuais. O que eles querem é apenas indicar brasileiros notáveis para postos importantes no Conselho e, com isso, aumentar o orgulho nacional”, dizia o representante britânico.

Efetivamente, o Brasil ficara “mal acostumado” com o tratamento recebido na sua participação na Conferência de Paris, graças ao talento diplomático inesperado do então senador pela Paraíba, Epitácio Pessoa, que foi designado como líder da delegação brasileira em detrimento de Rui Barbosa. O Águia de Haia era então visto como o candidato óbvio ao posto exatamente por sua participação fulgurante em Haia, em 1907, quando condenou o caráter oligárquico da hegemonia das grandes potências e inaugurou uma nova era na diplomacia brasileira da defesa das relações multilaterais de igualdade entre os países. “A atuação histórica do Brasil no plano multilateral, na Liga ou na ONU, tem convergência total com o pensamento barbosiano que tinha como meta a democratização do acesso às grandes decisões mundiais como preconizado ainda hoje”, nota Garcia. “O questionamento do papel da gestão exclusiva da ordem mundial pelas grandes potências, iniciado em Haia, em 1907, adquiriu clareza conceitual na perspectiva brasileira por ocasião da Conferência de Paz”, observa o professor e embaixador Celso Lafer, em seu estudo A identidade internacional do Brasil.

Mas o chanceler Domício Gama não quis colocar seu cargo em risco dando tanto poder a Barbosa. “Pessoa provou ser de grande valia ao Brasil na conferência por ter cultivado uma boa relação com o presidente Wilson. Foi uma ótima tacada, pois o americano foi um grande defensor dos interesses brasileiros”, conta o historiador Michael Streeter, da London University, autor do recém-lançado perfil da participação de Pessoa em Paris e no início da Liga, parte da série Makers of the Modern World, em que o brasileiro figura ao lado de biografias de figuras de peso como Wilson, Clemenceau e Lloyd George, entre outros. Com habilidade, a delegação brasileira resolveu impasses econômicos importantes junto às grandes potências, como a manutenção da posse de 46 navios alemães confiscados no Brasil em 1917 e o reconhecimento, pela Alemanha, de uma dívida da venda de café. “O sucesso dessas gestões permitiu que a delegação brasileira, chefiada pelo futuro presidente Epitácio Pessoa, cuidasse, na Conferência de Paz, não apenas desses interesses específicos do Brasil, mas igualmente dos ‘interesses gerais’ inerentes à criação da nova ordem internacional pós-Primeira Guerra”, assevera Celso Lafer. O sucesso valeu a Pessoa uma vitória nas eleições presidenciais de 1919, sem que ele, como candidato, deixasse de trabalhar em Paris. Recebendo a notícia por telegrama, achou que era uma brincadeira de amigos. Mas Pessoa saiu do Brasil como delegado e voltou como presidente. E, de quebra, ele e o país ganharam uma entrada para participar da constituição da Liga, que se esperava seria, a partir de 1920, o instrumento para garantir a democracia na relação entre as nações.

Apesar do brilho de Pessoa, não se pode, porém, esquecer a atuação brilhante de João Pandiá Calógeras (1870-1934), parte in­­tegrante da delegação brasileira e que foi o primeiro a chegar a Paris. Lá articulou a diplomacia brasileira e, quando Pessoa voltou ao Brasil para assumir a Presidência, foi ele que passou a chefiar a missão. Permaneceu ainda algum tempo na Europa, representando o Brasil em alguns encontros internacionais e chefiando a missão comercial que esteve na Inglaterra em 1919. Na vol­ta ao Brasil, foi nomeado ministro da Guerra do governo de Epitácio Pessoa, tornando–se o único civil a ocupar esse cargo na história republicana do país.

A diplomacia brasileira apostou todas as suas fichas na suposta nova ordem mundial. Julgava que a Liga seria o centro decisório, a condutora do futuro da política mundial. Para o Brasil, o multilateralismo da Liga era o fim da política de poder tradicional nas relações internacionais. Mas para as grandes potências do Velho Mundo o multilateralismo era a continuação da geopolítica por outros meios”, analisa Braz Baracuhy, professor titular de teoria das relações internacionais no Instituto Rio Branco. Era a coexistência do velho e do novo na política internacional, observa o diplomata, que misturava o idealismo dos valores liberais dos EUA com a política pragmática e excludente das potências europeias, apesar do discurso em contrário. “Criavam-se dois tabuleiros, paralelos e superpostos: acima do tradicional, em que os grandes da Europa praticavam há séculos a política do poder, estava a nova instância multilateral.” O Brasil acreditou que era o tabuleiro superior que vigorava, enquanto seus colegas da Liga ainda jogavam pelas regras do clássico tabuleiro do poder assimétrico.

Com a saída dos EUA da Liga, a elite brasileira abriu sua candidatura ao assento permanente, na crença de que se vivia uma nova ordem internacional com uma concepção liberal de mundo. “As dificuldades enfrentadas pelas potências médias, como o Brasil, para obter no plano internacional o reconhecimento formal de um status diferenciado provém dos dilemas da aceitação, pelos Estados representados, da legitimidade inerente ao reconhecimento de uma representatividade regional, problema que o Brasil enfrentou na década de 1920, na Liga das Nações”, escreveu o embaixador Celso Lafer. “E tem enfrentado, junto com outras potências tidas como médias, as discussões sobre a reforma do Conselho de Segurança. Penso que esse reconhecimento formal é de difícil viabilização no espaço multilateral”, pondera Lafer. Em 1926, a obsessão do governo Bernardes pelo assento permanente acabou levando o Brasil a sair da Liga quando teve sua candidatura preterida pela Alemanha, antiga potência inimiga que fora “perdoada” pelas grandes potências europeias no Tratado de Locarno.

“Havia naquele tempo a impressão de que o multilateralismo substituiria a velha lógica geopolítica de poder vigente. Não foi o que aconteceu, e o que imperou foi a preo­cupação com a segurança europeia e com a ordem, que fez com que se desse prioridade à Alemanha”, avalia Letícia. “Se pensarmos, porém, no período mais recente em que o Brasil baseia sua demanda em argumentos de justiça e democracia, não se pode deixar de levar em conta que o pleito a um assento permanente não estaria em contradição com a tese da igualdade jurídica dos Estados”, continua. O que a diplomacia nacional argumenta, observa a pesquisadora, é que, desde que as grandes potências jamais abriram mão de seu poder de veto, ou seja, já que há uma imperfeição no sistema que nunca será corrigido, a ampliação do Conselho de Segurança corrigiria, em parte, esse déficit democrático, ajudando a equilibrar a representação entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento. É preciso, porém, tomar cuidado para não repetir velhos enganos. “Curiosamente, os argumentos para sustentar a pretensão brasileira são semelhantes àqueles arrolados na década de 1920, ou seja, ‘a condição de membro permanente daria maior representatividade moral e política ao Conselho”, nota Maria Regina.

Creio que “os serviços prestados” pelo Brasil dificilmente serão formalmente reconhecidos, mediante uma atribuição a priori pela comunidade internacional de um status próprio como o de membro permanente do Conselho. O peso próprio do Brasil, a sua especificidade como “potência média de dimensão continental” apta a lidar com “interesses gerais”, precisa ser adquirido e conquistado em cada situação, desafio permanente para a condução da nossa política externa”, analisa Celso Lafer. Ainda assim, nota Garcia, a crise atual e os novos rumos da política internacional, ao contrário do passado, podem estar a favor do Brasil. “Há uma tendência de desconcentração do poder global, cujos problemas exigem um tratamento multilateral, coletivo, e não é mais possível desconsiderar a contribuição dos grandes países emergentes. O Brasil está sendo chamado a colaborar e são os líderes estrangeiros que pedem ao país para ter uma participação mais ativa. Não havia nada disso na década de 1920.”

Letícia Pinheiro concorda, mas faz uma ressalva: “O Conselho é algo fortemente simbólico e um assento permanente, com certeza, eleva o país ao patamar de membro de um diretório tradicional de grandes potências. Mas o fato de estarmos no G-20, com o destaque que alcançamos em virtude até de necessidades estratégicas dos EUA e potências europeias, compensa, ainda que não totalmente, a ausência do Brasil no Conselho”. A pesquisadora também adverte que é preciso “promover maior debate sobre o tema para buscar respaldo e legitimidade pública para a demanda, sob pena de enfrentar oposição doméstica se a candidatura vier a ser aceita”. Nesse ponto, os números não mentem como revela a pesquisa recente de Amaury Souza. “É o foro da Onu, no âmbito do Conselho de Segurança, o mais apropriado para o Brasil exercitar sua competência diplomática no trato dos ‘interesses gerais’ da comunidade internacional?”, pergunta-se o professor Lafer. “O Brasil tem revelado capacidade de articular consenso. O país se comporta, por sua História e experiência de inserção no mundo, segundo uma leitura grociana da realidade internacional. Isso dá ao Brasil a credibilidade do soft-power, ne­­­­­cessária para o exercício da virtu­de aristotélica da justiça do meio-termo. Este papel de mediação não é um dado, mas um desafio de cada conjuntura diplomática”, completa o pesquisador e diplomata. A história não se repete, mas sempre tem lições a dar.

Livros citados e artigo
LAFER, C. A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira. Perspectiva, 151 páginas.
LIMA, Maria Regina S. Aspiração internacional e política externa. Revista Brasileira de Comércio Exterior. n. 82. Jan.-mar. 2005. Rio de Janeiro, Funcex.
MAGNOLI, D. (org.). História da paz e história das guerras. Editora Contexto.

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