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Medicina

Mais danos da fumaça

Cigarro prejudica o funcionamento e os músculos do coração

MIGUEL BOYAYANOs efeitos da fumaça de cigarro não se limitam aos mais conhecidos, como a intensificação do risco de infarto e de câncer de pulmão, laringe e boca. Pesquisas recentes em animais de laboratório, realizadas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, mostraram que essa fumaça pode ser ainda mais deletéria, sobrecarregando e enrijecendo o músculo cardíaco, o miocárdio, a ponto de deformar o coração e alterar seu funcionamento. Outro estudo, na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, indicou que a fumaça, agindo sobre as células do nariz, impede a formação dos cílios que filtram as impurezas do ar que entram pelas narinas.

Os experimentos em animais ajudam a avaliar com precisão os riscos à saúde para os 20 milhões de fumantes no Brasil, o equivalente a 16% da população acima de 18 anos, que talvez não possam mais fumar em espaços públicos no estado de São Paulo a partir de agosto, de acordo com uma lei ainda em debate. “Vários estudos têm mostrado que pessoas expostas à fumaça de cigarro apresentam um maior risco de desenvolver sinusite crônica e, ainda, que a exposição à fumaça de cigarro piora a evolução de pacientes operados de sinusite crônica”, comenta Edwin Tamashiro, que detalhou as alterações da fumaça sobre o desenvolvimento dos cílios em um artigo publicado em abril na revista American Journal of Rhinology and Allergy. Outros estudos servem de alerta, como o realizado na Unifesp mostrando que a prática de exercício físico pode intensificar os danos provocados pela exposição à fumaça de cigarro, em vez de os impedir, como era esperado.

“No ser humano, as repercussões do tabagismo sobre as coronárias são mais drásticas e com efeitos mais rápidos que as verificadas sobre o miocárdio”, comenta o cardiologista Paulo Tucci, professor da Unifesp. Ele explica desse modo por que os outros efeitos são menos conhecidos e menos estudados, mas não menos preocupantes. Todo ano cerca de 5 milhões de pessoas – metade delas nos países em desenvolvimento – morrem no mundo inteiro devido às mais de 50 doenças associadas ao hábito de fumar cigarros, visto hoje como uma forma de dependência química e psicológica. A névoa esbranquiçada que ajudou a compor o estilo de Humphrey Bogart em Casablanca, de Rita Hayworth em Gilda e de tantos outros personagens no cinema resulta da combinação de cerca de 4 mil substâncias tóxicas, das quais 250 são prejudiciais ao organismo, e 50, especificamente, cancerígenas.

Para conhecer melhor os efeitos da fumaça de cigarro e prever o que poderia se passar também no organismo humano, os pesquisadores submetem ratos à fumaça de cigarros durante horas em câmaras fechadas. “No rato normal, o diâmetro da cavidade do ventrículo esquerdo aumentou e a capacidade de contração do coração diminuiu”, diz Sérgio Paiva, pesquisador da Unesp de Botucatu, com base em resultados de experimentos obtidos em 2003. “Essas alterações pioram em animais submetidos a um infarto agudo do miocárdio.” Os animais infartados que tiveram de respirar muita fumaça de cigarros apresentaram uma dilatação no átrio esquerdo e no ventrículo esquerdo, as cavidades do coração que bombeiam sangue oxigenado para todo o corpo. Em princípio não seria nada grave, porque o lado esquerdo do coração de pessoas que praticam esporte com regularidade também é mais volumoso que o de pessoas sedentárias. O problema é que os danos são mais amplos e mais profundos no caso dos ratos, principalmente os que tiveram de praticar alguma atividade física e respirar muita fumaça de cigarro.

Em estudos mais refinados, com quatro grupos de ratos (o de controle, o de treinados, que tiveram de nadar duas horas por dia, o de fumante, que respirou durante duas horas na câmara com a fumaça de 40 cigarros, e o de treinados fumantes), o coração mostrou-se mais pesado e o miocárdio com menor velocidade de contração e de relaxamento no grupo dos treinados fumantes, em comparação com os do grupo controle. Os treinados fumantes também apresentaram uma redução de 50% na força dos músculos papilares, que controlam a válvula mitral, que impede o refluxo de sangue do ventrículo para o átrio esquerdo. Além disso, nesses animais o volume do núcleo das células do miocárdio praticamente dobrou, indicando um aumento na síntese de DNA.

Ainda não está claro por que o exercício físico ampliou, em vez de impedir, como se esperava, os efeitos da fumaça do cigarro – uma das possibilidades é que a hipertrofia do coração possa ser uma resposta conjunta dos estímulos gerados pelo exercício físico e pela fumaça de cigarros. Houve avanços, porém, nas hipóteses sobre os mecanismos de ação da fumaça. “Para o coração”, diz Tucci, “o grande vilão parece ser o monóxido de carbono”. Resíduo da fumaça de cigarro – e também da fumaça de carros e indústrias –, o monóxido de carbono (CO) age de dois modos sobre a hemoglobina, a molécula que distribui oxigênio a todas as células do corpo. O CO liga-se mais facilmente que o oxigênio à hemoglobina, assim ocupando as vagas que seriam do oxigênio (cada molécula de hemoglobina consegue transportar quatro átomos de oxigênio por vez). Além disso, aumenta a afinidade do oxigênio pela hemoglobina; em consequência, a hemoglobina não soltará o oxigênio tão facilmente ao passar pelas células.

Já no interior das células do miocárdio, na medida em que mais fumaça de cigarro percorre as vias respiratórias e influencia as ligações do oxigênio com a hemoglobina, ocorrem alterações nas proteínas que medeiam a ação de íons de cálcio, que regula a contração dos músculos cardíacos. “A contração do miocárdio será menor quanto menos cálcio entrar na célula”, diz Tucci, que demonstrou em 2006 a associação direta entre a quantidade de cálcio iônico e os batimentos cardíacos (ver “Os canais do coração”, Pesquisa FAPESP nº 122). Como resultado dessas alterações, “o coração perde capacidade de bombear sangue para o corpo”.

MIGUEL BOYAYANEm ratos infartados, portanto, com insuficiência cardíaca, o sangue venoso, que chega aos pulmões rico em gás carbônico, vai congestionar os capilares sanguíneos próximos ao pulmão e até mesmo transbordar para os alvéolos pulmonares, que deveriam conter apenas ar, em vez de logo trocar gás carbônico por oxigênio e voltar a circular. “No organismo de quem fuma”, diz o pesquisador da Unifesp, “o volume de sangue retido no pulmão e no coração, que equivale normalmente a 5% do total em circulação no organismo, pode chegar a 25%”. Como resultado desse congestionamento, o oxigênio que chega aos pulmões com o ar vai demorar mais para entrar na circulação sanguínea e chegar a todas as células do corpo que precisam dele para produzir a energia que as mantém vivas.

Efeitos sobre a gravidez
Foi também usando as câmaras fechadas com paredes de vidro que Débora Damasceno e sua equipe verificaram na Unesp de Botucatu que a fumaça de cigarro pode também prejudicar o desenvolvimento de fetos, que nascem com peso abaixo do normal quando as ratas prenhes respiram continuamente ar com fumaça de cigarro. Em um estudo publicado este ano na Reproductive BioMedicine Online, Maricelma Souza, sob sua orientação, observou que a placenta estava maior e os fetos nasciam menores como provável efeito separado e cumulativo de dois problemas, o diabetes e a exposição prolongada à fumaça de cigarros. “A maior preocupação é que, embora as ratas da linhagem usada nesses experimentos sejam muito resistentes, em 20 dias já apresentaram danos”, diz Débora. “É muito assustador. Talvez as mulheres possam ter prejuízos até mais graves, embora não se possa afirmar com certeza.”

Dos experimentos surgem novas hipóteses para verificar efeitos ainda pouco explorados sobre o organismo feminino. Uma delas, que começa a ser examinada pela equipe de Débora, é que os componentes da fumaça de cigarro – em especial o benzoalfapireno, cujos danos ao organismo começam a ser estudados mais intensamente – possam atuar sobre os hormônios produzidos pelos ovários e, desse modo, ser uma das causas de abortos naturais também em mulheres. De acordo com um estudo do Instituto Nacional do Câncer (NCI) dos Estados Unidos publicado em outubro de 2008, o Brasil apresenta um dos maiores índices de mulheres que fumam durante a gravidez (6,1%), depois do Uruguai (18,3%) e Argentina (10,3%).

Edwin Tamashiro também obteve resultados claros na USP de Ribeirão Preto avaliando os efeitos da fumaça de cigarro sobre as células com cílios que revestem as vias respiratórias, do nariz aos pulmões. “Os cílios das células do epitélio respiratório são importantíssimos na defesa primária do organismo”, diz. “Graças ao batimento ciliar é que conseguimos depurar impurezas e microrganismos que inalamos todos os dias.” Ele demonstrou in vitro que a exposição à fumaça de cigarro atrapalha o processo de formação de cílios em células em maturação, sugerindo que o organismo poderia se tornar mais suscetível a infecções causadas por vírus e bactérias transmitidas pelo ar.

Resultados aparentemente paradoxais sobre os efeitos do tabagismo, porém, são comuns. A equipe de Débora verificou que tanto o diabetes quanto o tabagismo, separadamente, causavam danos no DNA de filhotes de ratas expostas à fumaça. Em outro experimento, examinando o DNA de filhotes de mães diabéticas fumantes, ela esperava que os efeitos se somassem, mas não: os danos foram menores. Nesse caso é difícil imaginar o que propor às mulheres grávidas fumantes, porque, como outros experimentos em animais mostraram, parar de fumar no meio da gravidez pode levar à síndrome de abstinência. Débora reconhece que a recomendação de associações médicas internacionais para as mulheres evitarem os danos da fumaça – parando de fumar ou evitando respirar fumaça cinco anos antes de engravidar – é um tanto inviável.

Na Unesp, Paiva havia notado em 2005 o que chamou de efeito paradoxal da fumaça de cigarro: ratos que respiraram muita fumaça e depois sofreram um infarto induzido apresentaram sobrevida maior que os do grupo controle, que haviam apenas sofrido infarto. “Talvez a fumaça crie um precondicionamento contra a falta de oxigênio, protegendo o coração contra o mal pior, o infarto, que se aproxima”, cogita Paiva.

Um resultado inesperado veio de outro experimento: o betacaroteno, substância que deveria proteger o organismo contra doenças crônicas, eliminava o efeito protetor do cigarro. Capaz de eliminar resíduos chamados de radicais livres, o betacaroteno, encontrado na cenoura, no mamão e na manga, protegeu o coração de ratos normais, de acordo com um estudo de 2006 na Toxicological Sciences. Em outro estudo, na Arquivos Brasileiros de Cardiologia em 2007, o betacaroteno agravou os danos da fumaça no coração de ratos que sofreram um infarto agudo do miocárdio induzido e foram depois expostos à fumaça de cigarros.

Experimentos com animais de laboratório são úteis porque ajudam a formular hipóteses sobre o que pode acontecer com pessoas, mas devem ser tomados com moderação porque, entre outras razões, “o que se faz é um superestímulo e por pouco tempo”, diz Tucci. “Temos de considerar os resultados experimentais sob uma ótica não terrorista.”

Os projetos
1. Efeitos da exposição à fumaça do cigarro e da suplementação da dieta com beta-caroteno sobre a comunicação intracelular em cardiomiócitos de ratos (nº 05/52568-4); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Sergio Alberto Rupp de Paiva – Unesp; Investimento R$ 110.885,88
2. Mecanismo de ajuste da cinética do cálcio no miocárdio seguindo-se à dilatação ventricular súbita (nº 05/55980-3); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Paulo José Ferreira Tucci – Unifesp; Investimento R$ 110.885,88
3. Avaliação da genotoxicidade na prenhez de ratas com diabete de intensidade moderada (nº 06/06056-4); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Débora Cristina Damasceno – Unesp; Investimento R$ 119.103,28

Artigos científicos
PORTES, L.A. et al. Swimming training attenuates remodeling, contractile dysfunction and congestive heart failure in rats with moderate and large myocardial infarctions. Clinical and Experimental Pharmacology & Physiology. v. 36, p. 394-399. 2009.
LIMA, P.H.O. et al. Levels of DNA damage in blood leukocyte samples from non-diabetic and diabetic female rats and their fetuses exposed to air or cigarette smoke. Mutation Research. v. 31, p. 44-49. 2008.
CASTARDELI, et al. Exposure time and ventricular remodeling induced by tobacco smoke exposure in rats. Medical Science Monitor. v. 14, p. 62-66. 2008.

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